O recente livro “Que Bobagem!”, de Natália Pasternak e seu marido Carlos Orsi, acaba por fazer um grande favor à Psicanálise brasileira, ou no Brasil, que se via acossada desde o surgimento da mal-dita “graduação” (Bacharelado) em Psicanálise há um par de anos atrás: diversos psicanalistas brasileiros se puseram a trabalhar e a explicar publicamente a epistemologia da Psicanálise e a posição da Psicanálise nas epistemologias.
Nisso, podemos incluir o professor da Unicamp Mário Eduardo da Costa Pereira, que demonstrou num debate com um dos autores do livro que mesmo no campo das chamadas “neurociências” a Psicanálise é sustentável. Ou Christian Dunker, mais uma vez, apontando as fragilidades dos cognitivismos, agora rebatizado de “baseado em ‘evidências’”. Ainda vimos Luciano Mattuela propondo que se debata o livro no campo estritamente psicanalítico (convite a que Pasternak declinou no último momento). E, por fim, este que vos escreve, na entrevista ao Desaforo de São Paulo, de onde o presente ensaio deriva.
Mas esse problema é anterior a tudo isso, e deveria ser uma questão para as Psicologias em geral, e não apenas para a Psicanálise – trata-se do que um bom behaviorista radical chamaria de “retorno do mentalismo pela porta dos fundos”. Daí que é necessário voltar a ideia de Revoluções Freudianas. Revolução aí não é tomada no sentido político institucional ou partidário, embora não deixe de ser político em outro sentido.
O sentido das Revoluções Freudianas
Chamo de Revoluções Freudianas tanto os gestos fundadores do próprio Freud tanto para a Neurologia moderna — a hipótese dos neurotransmissores, por exemplo, ou a crítica ao localizacionismo na concepção das afasias, ou a idéia de neuroplasticidade no seu livro sobre paralisia lateral infantil — quanto a partir da Psicanálise para as ciências em geral — não apenas as “humanas”, diga-se de passagem, uma vez que a Psicanálise se ocupa da relação entre produção, saber e verdade — e a Psicologia em particular, que é a formulação do inconsciente enquanto campo — que o inconsciente existe, sabemos desde sempre, mas o mesmo se pode dizer sobre a gravidade: o que nos faltava era uma teoria de campo topológica e algebrizável para um e para outro.
Mas também por Revoluções Freudianas me refiro à série que o próprio Freud cria ao elencar as “feridas narcísicas” que as ciências causam a nós, humanos: a primeira sendo a Revolução Copernicana, a partir da qual a Terra não é o centro de coisa nenhuma; a segunda, de Darwin, a partir da qual não há teleologia na evolução que leve necessariamente ao Homo Sapiens como espécie privilegiada; e por fim ele mesmo, Freud, a partir de quem “o eu não é senhor em sua própria casa”.
Depois de Freud, outros epistemólogos propõem essa triangulação: Foucault fala de Nietzsche, Freud e Marx em seu “teatro filosófico” — mas é quase sempre esquecido que Burhus Frederich Skinner, um adversário histórico da Psicanálise, também inclui Freud na sua série de gestos externalistas fundamentais: o primeiro sendo Newton, o segundo sendo Darwin, e o terceiro sendo Freud justamente ao formalizar o inconsciente como “internalidade do lado de fora”, acabando de uma vez por todas com a querela do introspeccionismo que atravancou o desenvolvimento das Psicologias até a virada do século XIX para o século XX — na escuta do inconsciente, não é o que o paciente supõe que sabe de si que conta, mas sim aquilo que ele não sabe nem domina que aparece em seu discurso: a intervenção é no nível da sintaxe, e não da semântica.
Nesse sentido, é como se todo o campo cientificizável da Psicologia tivesse de ser freudiano, ainda que se negue como tal, e nesse sentido a Psicanálise é a garantidora da cientificidade de qualquer outra Psicologia, mesmo que esta assim não reconheça.
Não por acaso, eu me recordo de alguns behavioristas que não apenas passam por uma psicanálise com psicanalistas, como pedem supervisões clínicas a psicanalistas. Vale lembrar que a Psicanálise a que Skinner se opõe é a mesma a que Lacan se opõe: a psicologia do ego norte-americana e a psicanálise pós-freudiana ou neo-freudiana ligada a International Psychoanalytic Association — uma corrupção da letra freudiana que poderíamos chamar de “contra-revolucionária”.
Desta forma, tinha-se um campo comum de debate entre a Psicanálise, o Behaviorismo Radical, a Psicologia Soviética — de Luria, Vygotsky, Leontiev, Liubliskaia etc –, a Psicologia Analítica de Jung, a Epistemologia Genética de Jean Piaget, a Gestalt de Berlim, a Terapia Sistêmica de Palo Alto, Califórnia, etc. Porém, com o surgimento das tais “terapias cognitivas comportamentais” esse campo (democrático, diga-se de passagem) se fratura: é literalmente como se se aceitasse terraplanistas para discutir astrofísica!
Ademais, esse mero termo, “terapia cognitivo comportamental” é uma tripla corrupção de sua significação original: como os skinnerianos sempre lembram, “comportamento” aí não tem a radicalidade externalista do behaviorismo radical; “cognitivo” nada tem a ver com o estudo, ao seu modo antimentalista, das faculdades mentais superiores da Gestalt de Berlim e seus herdeiros; e tampouco se trata de uma “terapia” no sentido de que não há uma dialética entre investigação e intervenção (que não, não é um privilégio da psicanálise), mas sim uma pedagogia manualizada que anula o sujeito do desejo (ou do comportamento, capaz de contra-controle, no sentido skinneriano).
O terraplanismo psíquico não é neutro
Recentemente, as tais TCCs passaram a se chamar de “baseado em evidências” – como se todas as outras Psicologias não o fossem! Não é baseado nas evidências com o chimpanzé Sultão, nas Ilhas Canárias, que Wolfgang Köller desenvolve a idéia de pensamento como comportamento molar? Não é baseado em evidências das provas operatórias que Piaget desenvolve uma teoria filogenética das aquisições científicas? Os behavioristas não fazem mais experimentos com ratos e pombos, colhendo evidências no laboratório? E por fim, atos falhos, sonhos, chistes, lapsos, a própria transferência clínica não são evidências? Então quais seriam tais “evidências”?
Ademais, ciências não são feitas de evidência bruta: as evidências mais imediatas, se não forem interpretadas ao colocá-las em série, apontam para uma terra que pode ser plana – é só pela interpretação de evidências em série que se pode afirmar a esfericidade do planeta mesmo sem, ou antes de, tê-lo visto de fora. É justamente a função da interpretação que as TCCs e as PBEs negam.
E tal terraplanismo psíquico não é neutro: ele está a serviço dos planos de saúde privados, da indústria farmacêutica psiquiátrica, mas também da retirada da capacidade subversiva dos sujeitos – e talvez ele seja fruto do surgimento de diversas graduações em Psicologia privadas e de baixa qualidade. No campo da Psiquiatria, tal terraplanismo mental frutifica pela má formação dos psiquiatras em psicodinâmica e fenomenologia: a Psiquiatria tornou-se, há muito tempo, a burocracia da farmacologia sindrômica.
Mais do que terraplanismo, ouso dizer que a negação em bloco da pertinência da Psicanálise em parte no campo das ciências é uma forma de “movimento anti-vacina”: de todas as formas de psicoterapia, a única que continua tendo efeitos de modificação do sujeito após o fim ou interrupção do tratamento é uma psicanálise – fato notado numa copiosa meta-análise de artigos, mas que já era afirmado por qualquer psicanalista desde Freud e principalmente por qualquer psicanalisando que tenha passado por uma psicanálise.
O Discurso do Cientista
Isto talvez decorra do que Hugo Albuquerque, baseado em Mao Zedong, chamou de “Discurso do Cientista”. Gostei da expressão por enfatizar que o discurso é do cientista (e não “da ciência”), daquele que faz semblante de agenciar A ciência — tomada como toda e unívoca, fálica –, mas que justamente só pode sustentar tal posição apoiando-se numa verdade não-toda. Matematicamente não há tal discurso, que se elencam em número de 4 + 1 (o que não é o mesmo que 5) a partir da posição lógica que seus entes algébricos ocupam, de modo a articular o que Freud chamou de “profissões impossíveis”: o Discurso do Mestre (o impossível de governar), do Universitário (a impotência do ensinar), o do Psicanalista e o da Histérica.
Comumente, se diz no mundo lacaniano que a ciência é histérica: produz mestres ao inquirir os cientistas como seu outro, estes produzem um saber, mas tal saber falha ao tentar dar conta do objeto no lugar da verdade que sustenta a divisão subjetiva do primeiro agente – mas o Discurso do Cientista seria outra coisa: um misto de discurso do universitário, do mestre e do capitalista reduzindo a importância do discurso da histérica e sem querer passar justamente pelo discurso do psicanalista. Evitando giros e trânsitos, o cientista como mitologia moderna não é o intelectual amplo, capaz de transpor de um campo a outro, formas funcionais de pensar, pesquisar e intervir, mas sim o nerd que impõe um só modo de produzir saber a despeito da condição não-todo da verdade.
Mas vá lá, suponhamos que a Psicanálise não seja ciência — e daí? A Arquitetura também não é, e tampouco, como dizia o grande positivista (vejam vocês…) Claude Bernard, a Medicina: esta é uma arte prática que produz duas ciências, a Patologia e a Fisiologia, e se apoia nessas duas mesmas ciências. E, parafraseando Milton Santos (vencedor do Prêmio Vautrin Lund): “seria uma perda que a Geografia quisesse ser apenas ciência, abdicando de ser também arte” – o mesmo se pode dizer sobre a Psicanálise, tanto mais por esta ser uma cartografia dos desejos.
Sobre os autores
é psicanalista, graduado em Psicologia pela UFBA pós-graduado lato senso (especialização) em Saúde Mental pela Escola Estadual de Saúde Pública da Bahia. Usa @lucasjerzy no Instagram.