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Contrate quem luta, núcleo digital do MTST

Contrate quem luta

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O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) existe há 26 anos e a consolidação de sua prática militante ganhou papel central nos últimos anos no meio virtual. Agora, o núcleo de tecnologia do movimento está disponibilizando esse conhecimento para os trabalhadores - e não contra eles como as Big Tecs fazem.

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ela manhã, ao chegar no serviço, Fernando pega seu celular e checa as mensagens no WhatsApp. Começa dando bom dia aos companheiros, mostra a eles uma foto do seu serviço mais recente e comenta o andamento da obra. Ao longo do dia, enquanto trabalha, espia aqui e acolá no telefone – é quase certo que uma mensagem do “Contrate Quem Luta” esteja lá para lhe dizer qual o serviço dos próximos dias.

“Recebo o contato do cliente, seu nome, seu endereço aproximado e a necessidade do serviço, tudo pelo WhatsApp. O Contrate mudou minha vida profissional porque me proporcionou uma ponte que eu não tinha com clientes precisando dos serviços que eu presto”, conta Fernando Amaral, que trabalha com construção civil e faz parte do “Contrate Quem Luta”, aplicativo desenvolvido pelo Núcleo de Tecnologia do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) que conecta prestadores de serviço que façam parte do Movimento às oportunidades de trabalho nas áreas de construção civil, manutenção, tarefas domésticas e muitas outras. 

Mas como era a vida antes dessa inovação? Fernando conta: “Antes desse aplicativo, eu alternava fases boas com muito trabalho com fases sem absolutamente nada. Só pegava serviço por indicação. Agora sempre aparece algo novo para fazer”. Felizmente, esse salto de qualidade na rotina do trabalho não se restringe a Fernando. Hoje, na Grande São Paulo, cerca de 230 outros prestadores de serviço recebem diariamente pedidos que vão de pequenas faxinas a reformas completas – e sem pagar um centavo de seus orçamentos para a plataforma. Essa capacidade de  direcionar a tecnologia em prol do bem estar do trabalhador, em vez de gerar lucros para poucos, faz o Núcleo de Tecnologia do MTST crescer e se tornar uma referência em militância digital no Brasil.

Enfrentando um problema histórico com teclado e mouse

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undado em 2019 dentro das fileiras de um dos maiores movimentos populares do país, o coletivo reúne trabalhadores como engenheiros de software, designers e analistas de sistemas para bater de frente com a hegemonia ideológica do Vale do Silício no mundo da Tecnologia da Informação. O objetivo é provar que inovação tecnológica não é subproduto do capitalismo, mas é por ele sequestrado. 

Isso significa reconhecer alguns problemas que precisam ser enfrentados por uma sociedade que quer realmente discutir tecnologia para o Século XXI, e não para uma roupagem “mais moderna” de um Século XIX que insiste em nos assombrar. 

O primeiro deles diz respeito à real participação que o povo tem neste cenário. O mercado neoliberal oferece no máximo uma bike ou uma moto para que o povo continue rodando a engrenagem que enche os bolsos de quem está em cima. Acontece que a população tem plenas condições de viver fora desse sistema de castas velado – desde que receba a oportunidade para tanto (e a depender da lógica vigente, essa oportunidade não vir+á nunca). 

O segundo diz respeito ao propósito da inovação e a quem ela serve: o desenvolvedor de tecnologia é pago, no mercado, para produzir riqueza em forma de produtos aos quais muitas vezes ele não tem acesso. Essas interações contraditórias entre divisão do trabalho, necessidade e vontade acabam por gerar no imaginário do profissional de TI um mundo no qual o consumo consciente e as regalias de uma profissão privilegiada são o horizonte máximo que um trabalhador pode desejar.  

Para responder a esses problemas, o Núcleo atua em três frentes: a de desenvolvimento de software popular, conectado às reais necessidades dos que compõem a base do movimento; a de formação nas bases, que concilia métodos de educação popular freireana e olhar atento para as tendências do mercado para a capacitação profissional dos acampados nas ocupações; e uma frente específica para a discussão de políticas públicas e iniciativas que possam ser tomadas pelo Estado em favor de quem realmente precisa.

Hoje, além do “Contrate Quem Luta” e das formações com dezenas de professores pelo Brasil e pelo exterior, o Núcleo já entregou uma horta automatizada com IoT num condomínio do MTST no extremo leste de São Paulo; aplicativos mobile para contribuir na organização das ocupações do movimento e até jogos para celular, tratando dos problemas enfrentados pelas periferias Brasil afora.

Ensinar e resistir

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ste modelo de organização já está rendendo frutos. Pessoas que outrora não tinham perspectiva de curto prazo com relação às suas profissões encontraram nos cursos oferecidos pelo Núcleo uma forma de se libertar. Fernanda Rodrigues de Assis é uma delas. Em 2021, era mãe de primeira viagem e vivia de bicos numa pizzaria perto de onde morava. Em apenas seis meses do curso piloto de Introdução ao Desenvolvimento de Software com Python, pôde se capacitar o suficiente para conseguir seu primeiro emprego na área. Hoje, apresenta palestras e incentiva outras mulheres a buscar capacitação, além de contribuir dando aulas para novos alunos do Núcleo.

“Quando não estava fazendo bico, estava vendendo coisas na rua. Era uma loucura manter a casa, as necessidades da criança. Se reestabelecer era um sonho distante. Antes de começar o curso, me ocorreu: ‘será que sou uma pessoa que consegue suprir as demandas desta área?’”, conta Fernanda. Ela segue: “Em seis meses, fui contratada para trabalhar numa empresa de tecnologia e isso foi a reviravolta da minha vida. Sinceramente, não sei o que seria do meu futuro sem isso, porque uma mãe não consegue um trabalho estável sem uma profissão definida, sem uma faculdade, sem um ensino médio completo”.

A percepção de seu entorno sobre sua nova profissão reforça o tamanho do problema: “5% das pessoas que me conhecem entendem o que eu faço. A tecnologia é uma oportunidade que nos foi escondida. Quando vamos avaliar, nunca é apresentada ao povo de classe baixa a oportunidade de estudar tecnologia. Sabe o dia do trabalho, onde as escolas mostram possíveis profissões para os alunos? Participe de uma delas na periferia um dia! Você vai ver que a grande maioria delas sequer fala de tecnologia. Mas nas escolas de classe média, alta, ensinam robótica, programação, e isso fecha a área. Se abrissem as portas com mais cursos gratuitos e pessoas envolvidas, como o MTST fez, seria uma área muito bem resolvida”, reflete.

O trabalhador é quem faz

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s cursos e projetos desenvolvidos pelo Núcleo de Tecnologia do MTST são 100% realizados por trabalho militante e voluntário. Além das pessoas que vêm da base do movimento, das ocupações e da luta por moradia, o MTST permite a integração de quem vem de fora do contexto da organização por um inovador sistema de brigadas. Isso permitiu ao movimento angariar apoio de centenas de desenvolvedores de software no Brasil e no mundo. Motivação não falta.

 “Eu venho de uma geração de pessoas de classe média/classe média baixa que cresceu e se formou durante os governos Lula e Dilma. E por mais contraditórios que tenham sido esses governos, foi colocada em muitos de nós uma noção de que política era um assunto chato e que não deveria ser discutido, tal qual religião. O resultado disso foi que eu me tornei uma das pessoas que achava a política um assunto de gente chata e interesseira – “todo político é ladrão”, esse costumava ser o mote. Então veio a calamidade do genocídio pandêmico de Jair Bolsonaro, e a necessidade de lutar se escancarou em cima da mesa. Durante o pico de mortes da pandemia, eu estava em casa com medo do vírus, com uma mãe fazendo cirurgias e quimioterapia. Se havia alguém que não podia pegar esse vírus, essa pessoa era minha mãe. E aparentemente tudo que o governo federal fazia era a favor do vírus, contra a vida da minha família. Então veio o sentimento de impotência, de indignação e a vontade de fazer alguma coisa, qualquer coisa sequer para frear o fascismo que avançava sobre nós. Foi aí que conheci o Núcleo de Tecnologia do MTST que havia sido criado recentemente e possuía alguns projetos de software. Ali conheci um grupo de pessoas verdadeiramente comprometidas com as necessidades de quem mais luta e sofre. E como dizem no MTST, fui mordido pelo bichinho da lona preta, o que significa que a luta te fascina e te cativa, vira um motivo central da sua existência. Não tenho vontade nenhuma de sair, a luta agora faz parte de mim.”, conta Victor Antunes, cientista da computação formado pela UERN e programador de software.

Como muitos de seus companheiros de movimento, Victor veio do mercado de trabalho tradicional. Para ele, a diferença entre ser um desenvolvedor profissional e um militante está no propósito de sua atuação: “No MTST, um dos primeiros impactos é ouvir depoimentos das vivências de quem compõe a base do movimento. Relatos de quem conseguiu suprir as contas durante o pico da pandemia graças aos serviços conseguidos através do “Contrate Quem Luta”, ou como os cursos de tecnologia oferecidos pelo Núcleo de Tecnologia ajudaram pessoas a conseguir empregos na área. Em um época onde a nossa esperança de futuro foi capturada pelo neoliberalismo, ver e ouvir de alguém cuja luta é beneficiada diretamente por aquilo que produzimos, perceber na prática que o nosso trabalho importa, é ao mesmo tempo um alívio, um choque de realidade e uma uma injeção de ânimo que servem para provar que a construção de um outro mundo é possível.”

Pensando o futuro

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MTST existe como movimento social há 26 anos, mas só recentemente conquistou representação parlamentar, nas figuras de Guilherme Boulos (dep. federal por SP), Ediane Maria (dep. estadual por SP) e Jô Cavalcanti (dep. estadual por PE, eleita em 2018, não reeleita). Este inédito acesso ao legislativo permitiu ao movimento pensar em políticas públicas que façam sentido para suas pautas, e evidentemente a tecnologia não fica de fora.

Alê Costa Barbosa, militante da Frente de Soberania Digital Popular do movimento, explica algumas perspectivas: “Soberania Digital é justamente a capacidade de um povo de exercer o seu direito, se apropriando das tecnologias digitais em seu favor. Estamos falando do poder do estado, da indústria nacional de garantir empregos e desenvolvimento tecnológico avançado e da dimensão individual e coletiva de direitos fundamentais, sobretudo. A gente entende que as tecnologias digitais precisam ser desenvolvidas de e para a população como um todo. Esse conceito está sendo disputado no mundo inteiro. A própria União Europeia, por exemplo, via Comissão Europeia, fala que eles precisam tomar medidas para tomar controle sobre os dados que lá circulam. Tem diversos atores em diversas geografias que disputam esse espaço e a gente entra nesse jogo bebendo na ideia de Soberania Alimentar das Ligas Campesinas, transferindo-as para o contexto digital.”

Mas em que medida um movimento de luta por moradia pautaria um assunto tão complexo? “A importância do MTST pautar esse assunto é bem essa: se estamos falando de poder, de emancipação, de segurança de direitos e de autodeterminação digital, entendemos que quem constrói poder popular tem legitimidade de falar de poder na internet. Democratiza o desenvolvimento tecnológico e não coloca na mão de investidores brancos do norte global a tomada de decisão. Esses espaços têm de ser disputados e temos uma expertise interna para isso”, responde Alê.

E continua, explicando como atuação do Núcleo no apoio às legislaturas é ampla: “Nessa etapa de ajudar a pautar o debate público, fomos discutindo leis de acesso significativo à internet, de educação digital, participando de cooperativismo de plataforma, de trabalho decente, de regulação de plataformas… E já que estamos atuando pela reforma urbana, a gente também entende que essa luta precisa se materializar nas cidades, que é justamente onde você vê as mudanças que o mundo digital acarreta, mas onde também estão as possibilidades de articulação coletiva.”

Reflexos dessa atuação se viram no debate da PL2630, o PL das Fake News, onde o MTST contribuiu com o debate no campo da esquerda. Mais deve vir no futuro: o trabalho de militância não estará terminado enquanto o trabalhador não for dono do fruto de seu trabalho – e de todos os metadados sobre o mesmo que estiverem na nuvem.

Com a tecnologia somente nas mãos de quem trabalha, ela nao será mais um fantasma que serve para adoecer, tirar o emprego ou mesmo extinguir a humanidade.

Sobre os autores

Núcleo de Tecnologia do MTST
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Published in América do Sul, Política, Redes sociais and Tecnologia

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