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Manifestantes entoam cânticos e exigências em frente ao gabinete do primeiro-ministro tunisiano em 24 de janeiro de 2011 em Túnis, Tunísia. Manifestantes do campo e da aldeia de Sidi Bouzid, a cidade onde a "Revolução Jasmim" começou, caminharam durante a noite para descer ao escritório do primeiro-ministro. (Christopher Furlong / Getty Images)

Os trabalhadores árabes e a luta pela democracia

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Tradução
Gercyane Oliveira

Desde 2011, os sindicatos e partidos de esquerda árabes têm sido fundamentais para os movimentos em prol da democracia e da justiça social no Oriente Médio. Frequentemente ignorados pela cobertura midiática ocidental, do Egito à Tunísia, da Argélia ao Sudão, eles têm levado adiante essa luta contra enormes desafios.

Em 14 de janeiro de 2020, milhares de pessoas marcharam pela principal avenida da cidade capital da Tunísia, Tunis, celebrando festivamente o nono aniversário da revolta que depôs o autocrata corrupto Zine El Abidine Ben Ali, ex-presidente do país. Cercada por um grande contingente de forças de segurança, a multidão não entoou slogans políticos. O objetivo do dia era expressar orgulho pelas conquistas da “Revolução de Jasmim” de 2010-2011 e esperanças para o futuro.

A pouca distância dali, centenas de pessoas se reuniram na praça em frente à sede da União Geral do Trabalho da Tunísia (UGTT), a federação sindical nacional (conhecida pela sigla francesa UGTT). Eles entoavam: “Trabalho! Liberdade! Dignidade!”, um slogan revolucionário que sugeria que essas metas ainda não haviam sido alcançadas.

O secretário-geral da UGTT, Noureddine Taboubi, dirigiu-se à multidão, denunciando a falta de progresso econômico desde a saída de Ben Ali: “A revolução continuará até que a verdadeira república seja estabelecida.” Mongi Merzgui, secretário-geral do sindicato nacional dos trabalhadores de saneamento, seguiu a mesma linha: “Estou realmente desapontado… temos liberdade de expressão, mas isso não cria empregos nem nos alimenta.”

O Relatório Econômico da Tunísia da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) de 2018 confirma as afirmações dos líderes da UGTT: as condições econômicas não melhoraram desde a partida de Ben Ali, especialmente nas regiões oeste e sul e para jovens e mulheres. O investimento de capital diminuiu. A taxa nacional de desemprego é superior a 15%, mas chega a 30% para os jovens e 20-30% no oeste e sul (aproximadamente o mesmo que antes de 2011).

Os salários reais na maioria dos setores diminuíram, enquanto o crescimento anual do PIB tem uma média de apenas 1,7% desde 2011. Em troca de conceder um empréstimo de US$ 2,9 bilhões em 2016, o Fundo Monetário Internacional (FMI) pressionou por um congelamento de salários e desvalorização do dinar tunisiano. A desvalorização levou à inflação, atingindo uma taxa anual de 7,6% em março de 2018.

As duas manifestações de 14 de janeiro exemplificam a luta sobre o significado político das revoltas populares árabes de 2010-2011. Foram apenas demandas por democracia e dignidade? Ou também foram movimentos por empregos e justiça social, e implicitamente rebeliões contra a austeridade neoliberal e o capitalismo de compadrio? Qual foi o papel das classes trabalhadoras da região nas revoluções?

A economia política da revolta

Ações coletivas de trabalhadores e desempregados foram uma parte importante dos movimentos que depuseram Ben Ali na Tunísia, Hosni Mubarak no Egito e desafiaram as monarquias do Bahrein e Marrocos. Os trabalhadores raramente levantaram demandas por democracia ou mudança de regime, exceto no Bahrein, onde a Federação Geral dos Sindicatos do Bahrein (GFBTU) tem uma orientação de esquerda desde sua fundação em 2004. Mas greves cada vez mais frequentes e, às vezes, prolongadas, protestos e manifestações contribuíram para uma cultura de protesto que minou a legitimidade da autocracia.

As revoltas populares de 2018-2020 no Sudão, Argélia, Líbano e Iraque – e, mais brevemente, na Tunísia e no Egito – são sequências do ciclo de protestos de 2010-2011, impulsionadas pela continuidade das principais características da economia política e governança antes e depois de 2010-2011 no Oriente Médio e no Norte da África. O petrocapitalismo centrado nos seis países do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) – Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Kuwait, Catar, Bahrein e Omã – continua sendo o regime dominante de acumulação de capital na região, mesmo desenvolvendo-se além da fase de acumulação primitiva baseada em rendas de petróleo e gás.

Os países pobres em hidrocarbonetos são integrados ao petrocapitalismo por meio das remessas de seus trabalhadores migrantes e de ajuda e investimento dos ricos em hidrocarbonetos países do CCG. Esse regime de acumulação de capital é regulado pelo que Gilbert Achcar caracteriza como “uma mistura de patrimonialismo, nepotismo e capitalismo de compadrio, saque de propriedade pública, burocracias inchadas e corrupção generalizada, em meio a grande instabilidade sociopolítica e impotência ou mesmo inexistência do estado de direito”. Acrescentaria a essa lista: baixos índices de desenvolvimento humano, cultura pública repressiva e prevalência de movimentos islamistas como principais formas de oposição política.

Os estados da região pobres em hidrocarbonetos estão sujeitos tanto aos estados ricos em hidrocarbonetos quanto às instituições financeiras internacionais — FMI, Banco Mundial, etc. — apoiadas pelos Estados Unidos e pela União Europeia. Quando precisam de resgates financeiros para cobrir escassez de divisas (por causa de aumentos no preço do petróleo importado, por exemplo) ou déficits orçamentários, o FMI normalmente empresta dinheiro a eles sob a condição de adotar suas políticas econômicas neoliberais, frequentemente denominadas Programas de Reforma Econômica e Ajuste Estrutural (ERSAPs).

ERSAPs implicam em cortes nos gastos públicos, privatização de empresas estatais, limitação dos direitos dos trabalhadores, redução ou eliminação de subsídios governamentais em bens de consumo básicos, tornando as moedas locais totalmente conversíveis e incentivando investimentos estrangeiros. Esses programas são essencialmente políticas de austeridade que desativam o investimento público em empregos e serviços, motivadas pela crença dogmática de que o investimento privado executará essas tarefas de forma mais eficiente.

Após as revoltas de 2010 – 2011, o FMI reconheceu que havia ignorado a distribuição altamente desigual dos benefícios do modelo de crescimento econômico que vinha promovendo desde o final da década de 1970. A ex-diretora-gerente do FMI, Christine Lagarde, escreveu no blog do FMI: “Sejamos francos: não prestávamos atenção suficiente em como os frutos do crescimento econômico estavam sendo compartilhados”. Mas, na prática, o FMI simplesmente renomeou o mesmo conjunto básico de políticas que promovia antes de 2011 como “crescimento inclusivo”.

Eixo da contrarrevolução

Uma grande mudança desde 2011 é o aumento do perfil da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos na imposição de uma ordem contrarrevolucionária regional. Sua estratégia tem sido construir um “eixo sunita” sectário, incluindo Bahrein, Egito e, incongruentemente, Israel, em oposição ao Irã e seus aliados regionais — Síria, Iraque, houthis iemenitas, Hezbollah libanês e Hamas palestino.

Em 2011, eles intervieram militarmente para reprimir o movimento pró-democracia de 14 de fevereiro no Bahrein. Em 2015, enviaram tropas ao Iêmen para combater os rebeldes houthis, buscando restaurar seu candidato escolhido no poder como presidente, embora as políticas sauditas e emiradenses no Iêmen tenham se divergido desde então. Os sauditas apoiaram o exército egípcio e o presidente Abdel Fattah el-Sisi contra os Irmãos Muçulmanos, que chegaram ao poder brevemente após a deposição de Hosni Mubarak.

Em 2017, os sauditas e emiradenses impuseram um boicote ao Catar, alegando que este apoia o terrorismo. A questão subjacente é que o Catar se recusou a adotar uma postura antagonista em relação ao Irã, já que os dois países compartilham o maior campo de gás natural do mundo, o campo de South Pars/North Dome no Golfo Pérsico.

O Catar usou seus vastos recursos para apoiar forças islamistas em toda a região, incluindo os Irmãos Muçulmanos no Egito e o partido Ennahda na Tunísia, que defendem formas mais liberais de islamismo em comparação com o wahhabismo saudita. O boicote saudita-emiradense ao Catar não teve sucesso. Mas os aliados políticos do Catar foram derrotados de forma decisiva no Egito e na Síria e estão em apuros na Líbia.

Ennahda tem tido mais sucesso na Tunísia, onde ganhou a maioria dos votos nas três eleições nacionais desde 2011. Apesar de seu histórico de apoio a políticas neoliberais e anti-trabalhadores, o Ennahda mantém uma base nas regiões oeste e sul empobrecidas e marginalizadas da Tunísia que é comparável ao apoio a Trump no Cinturão da Ferrugem e na América rural.

A revolta tunisiana

A revolta de 2010 – 2011 na Tunísia começou na sombria cidade de Sidi Bouzid, no centro-oeste, onde as taxas de desemprego e pobreza eram — e continuam sendo — muito maiores do que no restante do país. Mohamed Bouazizi, um vendedor de frutas de vinte e seis anos, se imolou em frente aos escritórios do governo em 17 de dezembro de 2010, depois que uma policial o humilhou ao confiscar sua mercadoria, alegando que ele não tinha permissão para vender nas ruas.

As primeiras manifestações de solidariedade se limitaram a outros governos do centro-oeste. Em 4 de janeiro de 2011, Bouazizi sucumbiu a queimaduras de terceiro grau. Os protestos populares se uniram como um movimento social nacional em Tunis em 6 de janeiro.

Nessas semanas, o gabinete executivo nacional da UGTT, completamente cooptado, nada mais fez do que pedir às forças de segurança que evitassem o uso excessivo da força. No entanto, alguns líderes regionais ou de segundo escalão da UGTT e membros militantes apoiaram a causa popular. Eles emprestaram sua experiência política, apoio logístico e estrutura organizacional ao movimento e apoiaram a ampliação de suas demandas para mudança de regime. Após a deposição de Ben Ali, o congresso da UGTT em dezembro de 2011 substituiu seu gabinete executivo nacional pelo atual de liderança de esquerda.

Com mais de meio milhão de membros em um país com 11,5 milhões de habitantes, a UGTT é a maior organização civil da Tunísia. Sua classificação de favorabilidade nas pesquisas de opinião pública é muito superior à de qualquer partido político. No período pós-Ben Ali, a liderança da UGTT equilibrou delicadamente o apoio político às forças políticas seculares (incluindo as simpáticas ao neoliberalismo) contra o Ennahda, pressionando o regime a resistir às medidas de austeridade exigidas pelo FMI e contendo explosões periódicas de indignação popular.

A UGTT construiu seu status e credibilidade representando demandas populares ao regime e convencendo-o de que, se não atender pelo menos algumas dessas demandas, a UGTT será incapaz de garantir a estabilidade política.

Para seguir essa estratégia, a liderança da UGTT prefere ações controladas, como a greve geral nacional de um dia em 17 de janeiro de 2019, que desafiou a recusa do governo em aumentar os salários de 670.000 funcionários públicos, sob pressão da exigência do FMI de cortes nos gastos governamentais. A greve permitiu à UGTT demonstrar que está “ao lado dos trabalhadores”, ao mesmo tempo em que permanece dentro dos limites do jogo político estabelecido décadas atrás.

História incompleta

No entanto, ações espontâneas não autorizadas pela liderança nacional da UGTT foram uma força importante que minou a legitimidade do regime de Ben Ali. Explosões de rebelião popular exigindo empregos e desenvolvimento econômico têm ocorrido periodicamente desde a queda de Ben Ali. Normalmente, começam no centro-oeste ou em outras regiões empobrecidas do país.

Em 16 de janeiro de 2016, Ridha Yahyaoui, um graduado universitário desempregado de vinte e oito anos na cidade capital da província centro-oeste de Kasserine, soube que seu nome havia sido retirado repentinamente de uma lista de setenta e cinco candidatos prestes a serem nomeados para empregos no governo. Desesperado, Yahyaoui subiu em um poste de utilidade pública, onde foi eletrocutado.

Protestos em massa contra o desemprego e a falta de oportunidades econômicas surgiram imediatamente, seguindo um repertório bem estabelecido: marchas e um acampamento na sede da província, enquanto dois graduados universitários desempregados ameaçaram saltar para a morte do telhado do prédio. Jovens desafiaram um toque de recolher e incendiaram os escritórios do partido governista Nidaa Tounes em Kasserine.

Em poucos dias, o movimento se espalhou para as cidades costeiras mais prósperas e politicamente influentes de Tunis e Sousse. Eventualmente, se estendeu a dezesseis das vinte e quatro províncias, antes de se acalmar em 22 de janeiro.

Os protestos provocados pela morte de Ridha Yahyaoui seguiram a mesma trajetória das manifestações em solidariedade a Mohammed Bouazizi que levaram à derrubada de Ben Ali cinco anos antes. Ambos os movimentos começaram em províncias vizinhas economicamente negligenciadas antes de chegarem a Tunis.

Uma diferença, refletindo os ganhos da revolta de 2010-2011, é que, à medida que as manifestações de janeiro de 2016 começaram a se espalhar, a UGTT, a Liga Tunisiana dos Direitos Humanos, a União de Graduados Desempregados e a União Geral dos Estudantes Tunisianos agiram rapidamente, tanto para apoiar as demandas do movimento como para conter seus aspectos violentos.

Essas organizações compartilham a visão de que, apesar de suas muitas falhas, manter o regime atual é preferível à promoção de instabilidade que possa aumentar o status dos islamistas (seja Ennahda ou jihadistas armados). Em contraste, muitos jovens desempregados nas regiões marginalizadas sentem que não têm nada a perder no regime.

“O que estamos esperando?”

Em 1º de janeiro de 2018, sob pressão renovada das demandas do FMI por austeridade, o governo anunciou um orçamento que aumentaria os impostos sobre gasolina, cartões telefônicos, habitação, uso da internet e quartos de hotel, e reduziria os subsídios de frutas e vegetais. Em resposta, em 8 de janeiro, uma manifestação contra a austeridade irrompeu em Tebourba, uma cidade rural a oeste da capital.

A manifestação se transformou em um tumulto violento após a morte de um homem de cinquenta e cinco anos, provavelmente por asfixia por gás lacrimogêneo, durante a manifestação. Protestos tumultuosos se espalharam de Tebourba para pelo menos outras vinte localidades através das redes sociais com a hashtag #Fech_Nestannew (“O que estamos esperando?”) e persistiram até 12 de janeiro.

Além dos aumentos de preços, a falta de emprego, especialmente para os graduados universitários, era uma das principais queixas subjacentes. Em Tebourba, Oussema Ellafi, um músico desempregado de trinta e dois anos, explicou: “Falamos com as pessoas pacificamente, dissemos dê-nos empregos; apresentamos candidaturas e dissemos que temos diplomas e nada aconteceu. Essa coisa pacífica não faz nada.”

Imen Mhamdi, uma graduada universitária de vinte e sete anos atualmente empregada como operária em uma fábrica, disse que se juntou às manifestações em Sousse porque “este governo, como todos os governos depois de Ben Ali, só faz promessas e não fez nada”.

Unidade ou farsa?

A UGTT não teve uma presença organizada nas manifestações de janeiro de 2018 contra a austeridade. Após os protestos de 2016 que começaram em Kasserine, a UGTT assinou o Documento de Cartago, que permitiu a formação de um governo de unidade nacional, incluindo o partido Ennahda e partidos seculares. Os signatários prometeram considerar as necessidades dos trabalhadores e dos pobres ao implementar novas medidas de austeridade.

Após o levante em Tebourba, a UGTT instou o governo a reduzir o impacto dos aumentos de preços sobre os mais vulneráveis. O compromisso resultante, típico do procedimento padrão da UGTT, foi uma promessa do governo de aumentar a assistência a 250.000 famílias pobres em 70,3 milhões de dólares e fornecer melhor atendimento de saúde para todos.

O Frente Popular é uma aliança de partidos de esquerda que constituía o maior bloco de oposição parlamentar, com quinze dos 217 assentos, antes das eleições de outubro de 2019. Ele apoiou abertamente o levante em Tebourba e buscou espalhá-lo e coordenar com outros apoiadores. O Frente Popular denunciou o compromisso aprovado pela UGTT como uma “farsa”. Mas não conseguiu mobilizar mais ações contra isso.

O Frente Popular se dividiu antes das eleições parlamentares de 2019. Um de seus principais componentes, o Movimento Popular, conquistou quinze assentos, enquanto o Frente Popular original caiu para um – ainda um ganho geral de um para a esquerda radical. No entanto, em fevereiro de 2020, o Movimento Popular se tornou parte de um governo de coalizão.

Essa coalizão inclui o Ennahda e outros partidos inclinados a atender às demandas do FMI, que propõe emprestar à Tunísia outros 3 bilhões de dólares para cobrir as despesas do governo em 2020. Isso provavelmente se tornará um campo de contestação.

Lutas no Marrocos

Manifestações em todo o país com cerca de duzentas mil pessoas lançaram o Movimento 20 de Fevereiro por Democracia no Marrocos em 2011. Diferenças políticas e intrigas do regime têm há muito dividido o movimento trabalhista marroquino e enfraqueceram o Movimento 20 de Fevereiro também.

A Confederação Democrática do Trabalho (CDT) tem uma forte base entre funcionários públicos brancos e bancários e é afiliada politicamente à Federação da Esquerda Democrática, uma aliança de três pequenos partidos socialistas. Ela se juntou ao Movimento 20 de Fevereiro, junto com vários sindicatos afiliados à maior federação, a União Marroquina do Trabalho (UMT).

Por outro lado, a União Nacional do Trabalho do Marrocos (UNMT), alinhada com o Partido da Justiça e Desenvolvimento islâmico, não apoiou o movimento. A União Geral dos Trabalhadores Marroquinos (UGTM), pró-monarquista, cuja principal base é entre trabalhadores agrícolas, também não o fez.

O Rei Mohammed VI se esquivou das demandas por uma maior democracia aumentando os salários dos funcionários do setor público, elevando o salário mínimo e propondo emendas constitucionais em grande parte cosméticas, que deixaram as principais alavancas do poder executivo nas mãos da monarquia. A CDT e seus parceiros políticos, o Movimento 20 de Fevereiro e o movimento islâmico da Justiça e Caridade, todos convocaram um boicote ao referendo constitucional de 1º de julho de 2011. No entanto, a nova constituição foi aprovada.

Em 2012, em troca de um empréstimo de US $ 4,1 bilhões ao Marrocos, o FMI exigiu novas medidas de austeridade, com cortes em investimentos públicos, gastos sociais e pensões. Assim como a UGTT, os sindicatos marroquinos preferem participar do “diálogo social” no estilo europeu com o regime e os empregadores. Quando suas demandas não são atendidas, eles recorrem geralmente a greves limitadas.

Em 29 de outubro de 2014, a UMT, a CDT e um dissidente da CDT, a Federação Democrática do Trabalho (FDT), convocaram conjuntamente uma greve geral de vinte e quatro horas, porque o governo se recusou a dialogar sobre as medidas de austeridade incorporadas ao orçamento estatal de 2015.

Os sindicatos pediram a redução dos impostos sobre salários e consumo, a revogação da legislação que criminaliza a atividade sindical, e o fim das demissões de trabalhadores que exercem o direito à livre associação. Eles desejavam melhorias nos serviços públicos, garantias de emprego seguro e estável com o fim do trabalho precário e medidas para atender às necessidades dos aposentados que vivem de pensões.

O governo marroquino não atendeu a essas demandas. Como resultado, a UGTM juntou-se à UMT, CDT e FDT ao convocar outra greve geral de vinte e quatro horas sobre questões semelhantes em 24 de fevereiro de 2016. A CDT convocou uma terceira greve geral por conta própria três anos depois.

O Movimento Rif

Greves como essas não fortalecem a unidade e o poder dos trabalhadores: pelo contrário, eles os contêm dentro de limites estritamente controlados pela monarquia. No entanto, se as ações contestadoras dos trabalhadores ultrapassassem esses limites, seriam submetidas a uma dura repressão estatal, como aconteceu com o movimento de protesto popular que eclodiu na região norte do Rif em outubro de 2016 e persistiu por dez meses.

A morte de Mouhcine Fikri desencadeou o Movimento Popular Rif, ou “Hirak Rif”. Fikri era um pescador que foi esmagado atrás de um contêiner de lixo onde ele estava

sentado, tentando impedir que a polícia confiscasse seu peixe-espada, alegando que ele o havia pescado em um período proibido. As circunstâncias eram exatamente iguais à apreensão da mercadoria de Mohamed Bouazizi, que deu origem ao levante popular tunisiano. O movimento foi organizado em torno da política de identidade amazigh (berbere).

O Rif é historicamente uma região economicamente e culturalmente marginalizada, semelhante às regiões ocidental e sul da Tunísia. As demandas do movimento centravam-se no respeito e preservação da identidade e língua amazigh, mas também clamavam por desenvolvimento socioeconômico na região marginalizada. No entanto, o movimento enfrentou uma repressão dura por parte do estado.

A dura repressão sufocou o Hirak Rif em agosto de 2017. Em julho de 2019, para comemorar o vigésimo aniversário de sua ascensão ao trono, o Rei Mohammed VI concedeu anistia a 4.764 prisioneiros, incluindo a maioria dos que foram presos por participação no Movimento Popular Rif e ainda estavam na prisão.

Expulsando Mubarak

Os trabalhadores egípcios foram o componente mais visível do crescente movimento de protesto que minou o governo do ex-presidente Hosni Mubarak durante a década anterior à sua derrubada em 11 de fevereiro de 2011. De 2004 a 2010, ocorreram 2.716 greves e outras ações coletivas, envolvendo mais de 2,2 milhões de trabalhadores, uma escalada substancial em relação ao já alto nível de protestos trabalhistas desde 1998.

Muitas dessas ações foram motivadas pela oposição às consequências da privatização ou pelo receio de que o governo fizesse novas privatizações de empresas públicas. Esse movimento dos trabalhadores se organizou inteiramente de baixo para cima e contra a vontade da Federação Sindical do Egito (ETUF), que é um braço do Estado. Sua agenda emergiu como um dos slogans populares do levante de 2011: “Pão, Liberdade e Justiça Social!”

A saída de Mubarak satisfez a maioria dos manifestantes: eles não entenderam que sua remoção não atendia à demanda popular de “a queda do regime”. Uma vez que os apelos à democracia ou à mudança de regime não eram as principais motivações do movimento dos trabalhadores, esse movimento persistiu e aumentou no ambiente mais permissivo nos anos seguintes. Greves e protestos trabalhistas aumentaram para 1.377 em 2011 e 1.969 em 2012: mais que o dobro e o triplo dos recordes anuais anteriores de 614 em 2007 e 609 em 2008.

Organizadores sindicais de esquerda e populistas estabeleceram a Federação Egípcia de Sindicatos Independentes (EFITU) durante o período de demandas pela derrubada de Mubarak. Eles anunciaram sua existência em 30 de janeiro de 2011 em uma coletiva de imprensa na Praça Tahrir, o epicentro do levante popular.

Os fundadores da EFITU eram o Centro de Serviços Sindicais e Trabalhistas, uma ONG pró-trabalhadores; a União Geral Independente de Avaliadores de Impostos Imobiliários (em outras palavras, não afiliada à ETUF), estabelecida em 2009 após uma greve selvagem fenomenalmente bem-sucedida em 2007; os sindicatos independentes muito menores de técnicos de saúde e professores; a associação de aposentados com oito milhões e meio de membros; e representantes de trabalhadores de vários setores de produção industrial.

O direito ao voto, o direito ao pão

Após a queda de Mubarak, quarenta líderes da EFITU e ativistas socialistas se reuniram no Cairo em 19 de fevereiro e adotaram uma declaração de “Demandas dos Trabalhadores na Revolução”, incluindo o direito de formar sindicatos independentes, o direito de greve e a dissolução da ETUF. Eles resolveram:

Se esta revolução não levar à distribuição justa da riqueza, ela não vale nada. As liberdades não são completas sem liberdades sociais. O direito de voto é naturalmente dependente do direito a um pedaço de pão.

Logo após essa pequena reunião, houve um evento maior e público no Cairo em 12 de março. O jornalista trabalhista trotskista Mostafa Bassiouni moderou um painel que incluiu o recém-nomeado ministro do trabalho, Ahmad Hasan al-Bura’i, um professor de direito trabalhista e defensor de longa data dos sindicatos independentes, o presidente da EFITU, Kamal Abu Eita, e Kamal Abbas, coordenador geral do Centro de serviços sindicais e trabalhistas

Abu Eita havia conquistado reputação liderando a greve dos avaliadores de impostos em 2007. Abbas fundou o centro com o veterano advogado trabalhista comunista, Youssef Darwish, depois de ser demitido por liderar duas greves na Empresa de Ferro e Aço Egípcia em 1989. O ministro Bura’i prometeu que os trabalhadores logo teriam o direito de estabelecer e se juntar a qualquer sindicato de sua escolha. Ele também se comprometeu a parar de interferir nos assuntos sindicais.

Esses eventos marcaram o auge da unidade e do moral do movimento sindical independente. Mas também expuseram suas fraquezas. Apenas três sindicatos independentes haviam surgido por meio de ações locais na década anterior. Nenhuma das greves selvagens da era Mubarak foi coordenada além do nível de uma única empresa. Poucos representantes das províncias participaram dessas reuniões no Cairo.

Com exceção de Kamal Abu Eita, que havia sido presidente do sindicato dos avaliadores de impostos, os líderes da EFITU não tinham experiência em liderar uma organização nacional e poucos recursos. O pequeno ONG de Kamal Abbas tinha menos de meia dúzia de funcionários. Eles não imaginavam o centro como uma liderança nacional alternativa à ETUF. Além disso, após um ano, a EFITU se dividiu por conta de diferenças pessoais e políticas. Abu Eita permaneceu como presidente da EFITU, enquanto Abbas e seus apoiadores formaram o rival Congresso Democrático Trabalhista Egípcio.

Triunfo de Sisi

A divisão não afetou diretamente o movimento dos trabalhadores: atingiu 2.239 ações coletivas em 2013, 82% das quais ocorreram no primeiro semestre do ano. No entanto, o movimento foi disperso pelo golpe militar reacionário de 3 de julho de 2013 contra o presidente Mohamed Morsi, um membro da Irmandade Muçulmana que havia vencido por pouco a primeira eleição presidencial livre do Egito no ano anterior.

Em maio de 2014, o líder do golpe, Abdel Fattah el-Sisi, venceu uma eleição presidencial com 97% dos votos, amplamente considerada manipulada. O “candidato dos trabalhadores”, Khaled Ali, advogado trabalhista e ex-diretor executivo do Centro Egípcio de Direitos Econômicos e Sociais, retirou-se da corrida, protestando contra a injusta lei eleitoral. Todos, exceto um dos outros candidatos em potencial, foram pressionados a se retirar.

El-Sisi gradualmente esmagou todas as formas de oposição social e política, consolidando uma ditadura praetoriana muito mais rígida do que a do Egito na era de Mubarak. Primeiro, seu governo reprimiu violentamente a Irmandade Muçulmana, depois atacou o movimento trabalhista independente. Finalmente, intimidou todas as formas concebíveis de oposição e pensamento independente.

O número de greves e outras formas de ação coletiva dos trabalhadores despencou após o golpe. No entanto, uma onda de greves, ocorrida do verão de 2015 a janeiro de 2016, envolveu mais de vinte mil trabalhadores têxteis no Delta do Nilo, seis mil trabalhadores da Egyptian Aluminum Co. e dezenas de milhares em serviços de petróleo, ferro e aço, coque, cimento, subsidiárias da Suez Canal Company e maquinistas das Ferrovias Nacionais Egípcias.

Em um movimento típico da repressão maciça imposta por el-Sisi, as páginas da web da publicação Mada Masr, que relatava essas greves, foram retiradas do ar. Desde então, a mídia egípcia relatou muito poucas ações coletivas dos trabalhadores, por medo de serem fechadas.

Ressurgimento

Um breve surto de protestos em setembro de 2019 reacendeu as esperanças de uma retomada da política de oposição no Egito. No entanto, poucos trabalhadores empregados participaram. O estopim para essas manifestações veio de Mohamed Ali, empreiteiro de construção civil que se tornou ator, que havia trabalhado com os militares antes de se exilar na Espanha. Ele postou vídeos no Facebook alegando plausivelmente que el-Sisi e seu círculo íntimo haviam desperdiçado fundos públicos e enriquecido a si: as mesmas acusações anteriormente feitas contra Mubarak e o círculo de empresários ao redor de seu filho Gamal.

Milhares de manifestantes, muitos deles adolescentes e jovens de bairros de classe trabalhadora e pobres, se reuniram espontaneamente e sem liderança no Cairo, Alexandria e outras seis cidades em 20 e 21 de setembro. As forças de segurança do Estado responderam com violência, mas não foram totalmente eficazes em dispersar as multidões, o que incentivou protestos adicionais (embora menores) em 27 de setembro.

Nesse dia e nas semanas seguintes, entre duas e quatro mil pessoas foram presas, a maior operação de captura desde que el-Sisi se tornou presidente. O movimento foi esmagado. No entanto, o governo reconheceu as queixas econômicas subjacentes restaurando os subsídios para arroz e massa para 1,8 milhão de pessoas que haviam sido desqualificadas após o governo aumentar o nível de renda para elegibilidade.

Tendências emergentes

Três tendências surgiram entre os movimentos de oposição árabes durante meados dos anos 2010, que se desenvolveram mais plenamente nas revoltas sudanesas e argelinas de 2018 – 20. Primeiramente, trabalhadores brancos e universitários se tornaram participantes mais proeminentes em greves e movimentos de protesto. Durante a onda de greves de 2015 – 16 no Egito, desempregados com mestrado e doutorado, professores do ensino fundamental e médio, e trabalhadores civis de colarinho branco foram especialmente visíveis.

Detentores de diplomas terciários — como médicos e profissionais de saúde, professores, funcionários públicos e trabalhadores de mídia — representaram um pouco mais da metade de todas as greves trabalhistas egípcias no terceiro trimestre de 2015. (Estranhamente, o site do Centro Mahrousa para Desenvolvimento Socioeconômico, que relatou esses dados, foi retirado do ar e não há informações disponíveis para os anos subsequentes.) Isso se assemelha à militância estabelecida entre professores do ensino fundamental e médio, saúde, correios, telégrafo e bancos na UGTT, e a forte presença de ativistas de esquerda nesses setores.

Em segundo lugar, questões de gênero e a participação das mulheres tornaram-se mais salientes do que foram nas revoltas de 2010 – 11. No Bahrein, a monarquia perseguiu a GFBTU devido a sua participação ativa no movimento pró-democracia de 2011. No entanto, a GFBTU convocou um congresso nacional em 2016, no qual quatro dos quinze membros eleitos para seu secretariado nacional eram mulheres.

A GFBTU há muito tempo defende a sindicalização dos cem mil trabalhadores domésticos migrantes do Bahrein, a maioria dos quais são mulheres. Em junho de 2019, para marcar o Dia Internacional dos Trabalhadores Domésticos, a GFBTU assinou um memorando de entendimento com a Federação Internacional dos Trabalhadores Domésticos para promover seus direitos e bem-estar.

Aproximadamente 50% de todos os membros da UGTT são mulheres. Mas nenhuma mulher havia ocupado um lugar no seu escritório executivo nacional até que Naïma Hammami conquistou um cargo no congresso da UGTT em 2017. Ela é membro do Sindicato de Ensino Secundário, cujos membros entraram em greve repetidamente desde 2011.

Em terceiro lugar, a atual onda de revoltas rejeitou o sectarismo e os conflitos étnicos. As revoltas no Iraque e no Líbano, que começaram em outubro de 2019, surgiram como resposta ao aumento de impostos, alto custo de vida, falta de oportunidades econômicas e a incapacidade dos governos de fornecer serviços básicos.

No entanto, elas desafiaram explicitamente a distribuição sectária de cargos políticos introduzida no Iraque pelos Estados Unidos após a invasão de 2003 e a estrutura constitucional sectária mais estabelecida no Líbano. Isso representou um desafio ao esforço saudita-emirati de construir um eixo antixiita baseado em sunitas na região.

Revolução no Sudão

A revolta revolucionária do Sudão de 2018 – 19 incorporou essas novas tendências: trabalhadores brancos e profissionais forneceram liderança militante; mulheres desempenharam um papel proeminente, representando até 70% dos participantes em algumas manifestações; e houve um esforço contínuo para unificar as comunidades étnicas do país, várias das quais haviam lutado guerras civis contra o regime de Omar al-Bashir, que chegou ao poder em um golpe militar islâmico em 1989.

Além disso, ao contrário das outras revoltas no ciclo atual de protestos, a revolta sudanesa também está ligada à liderança histórica da classe trabalhadora pela esquerda do país. O Partido Comunista do Sudão era um dos mais fortes do Oriente Médio e tinha uma base militante na Federação Sindical dos Trabalhadores do Sudão (SWTUF), estabelecida em 1950.

Em 1971, após um golpe de esquerda que o partido havia apoiado fracassar, ele sofreu forte repressão da qual nunca se recuperou. Depois de chegar ao poder, al-Bashir atacou a base remanescente da política de esquerda e classe trabalhadora, dissolvendo a SWTUF, reformando-a sob supervisão do governo e proibindo greves. No entanto, a cidade de Atbara, um hub ferroviário localizado a 220 milhas ao sul da capital Khartoum e antigo reduto do Partido Comunista, foi onde a revolução sudanesa começou.

O Sudão foi empobrecido desde sua segunda guerra civil com o sul entre 1983 e 2005, que culminou na independência do rico em petróleo Sudão do Sul em 2011. A taxa anual de inflação disparou de 18% em 2011 para 63% em 2018. O aumento dos preços provocou amplas manifestações em 2013, 2014 e 2016.

Em outubro de 2017, os Estados Unidos suspenderam parcialmente vinte anos de sanções comerciais, abrindo caminho para relações diplomáticas normalizadas e assistência financeira do FMI. Um relatório do FMI de novembro de 2017 ofereceu as recomendações padrão de política neoliberal, instando o governo de Cartum a eliminar os subsídios ao trigo e ao combustível, unificar as taxas de câmbio da moeda e desvalorizar a libra sudanesa, o que significaria uma acentuada desvalorização.

O governo realmente desvalorizou a libra, o que aumentou os preços domésticos rapidamente. A taxa anual de inflação dobrou em janeiro de 2018, provocando semanas de manifestações.

Renascimento e mudança

Manifestações contra a austeridade surgiram com força renovada em Atbara em 19 de dezembro de 2018, em resposta a um aumento triplo no preço do pão desde o início do ano e o aumento dos preços dos combustíveis (devido aos cortes de subsídios recomendados pelo FMI). De Atbara, os protestos se espalharam para outras cidades provinciais antes de chegar a Khartoum. A distribuição geográfica das manifestações tornou mais difícil para o regime contê-las.

Profissionais se juntaram ao movimento em 26 de dezembro, quando médicos afiliados à Associação dos Profissionais Sudaneses (SPA) declararam uma greve nacional. Outros profissionais também aderiram à greve.

A SPA representa dezessete associações de médicos, advogados, jornalistas, engenheiros, veterinários, farmacêuticos, etc. Ela forneceu a liderança e coordenação para as Forças de Liberdade e Mudança (FFC), uma ampla aliança de vinte e duas organizações e partidos. No primeiro dia de 2019, a FFC emitiu a “Declaração de Liberdade e Mudança”, exigindo a remoção imediata de Omar al-Bashir da presidência.

O emblema da revolução sudanesa é um vídeo viral da “mulher de branco”, Alaa Salah, de pé no topo de um carro, vestida com um traje branco tradicional, liderando uma multidão que canta “revolução” e outros slogans contra al-Bashir. Salah é estudante universitária de engenharia e arquitetura e membro do Women of Sudanese Civic and Political Groups – MANSAM, uma das signatárias da Declaração de Liberdade e Mudança.

Após quatro meses de protestos e desobediência civil, culminando em enormes manifestações em 6 e 7 de abril, o exército decidiu que al-Bashir havia se tornado um fardo. Com a aprovação dos Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e Egito, os militares prenderam al-Bashir em 11 de abril e formaram um Conselho Militar de Transição (TMC), uma repetição exata da dispensa do exército egípcio de Mubarak em 2011.

Lições egípcias

No entanto, a oposição sudanesa aprendeu com a experiência do Egito. As manifestações continuaram, exigindo que o TMC entregasse o poder a um governo de transição liderado por civis. Após uma greve geral de 26 a 29 de maio, o presidente do TMC, General Abdel Fattah al-Burhan, e seu vice, Mohamed Hamdan Dagalo, consultaram líderes dos Emirados Árabes Unidos, Egito e Arábia Saudita.

Essas conversas parecem ter resultado em uma decisão de esmagar o movimento de oposição civil. Em 3 de junho, as Forças de Apoio Rápido — que incorporam as milícias Janjaweed responsáveis por genocídio e estupros em massa durante a guerra civil em Darfur em 2003 – 2009 — e outras unidades de segurança atacaram os manifestantes em Khartoum, matando 128 pessoas e estuprando setenta mulheres.

A SPA respondeu ao “massacre de Khartoum” convocando uma “desobediência civil completa e uma greve política aberta”, o que forçou o TMC a retomar as negociações com as Forças da Liberdade e Mudança. A greve terminou em 12 de junho com a libertação de prisioneiros políticos.

Foi estabelecido um acordo de compartilhamento de poder entre a oposição civil e o TMC, com um Conselho Soberano misto de civis e militares como poder executivo do Sudão até as eleições que serão realizadas no meio de 2022. O General al-Burhan presidirá o conselho pelos primeiros vinte e um meses, seguido por um civil por dezoito meses.

O FFC buscou adiar as eleições, em contraste com o rápido movimento para eleições no Egito pós-Mubarak, para dar às debilitadas partes políticas tempo para se reorganizarem. O Conselho Soberano nomeou um gabinete de transição com quatro ministras civis e quatorze ministros civis, além de dois ministros militares – uma expressão do sucesso parcial do movimento revolucionário até o momento.

O General al-Burhan tem relações próximas com o Egito e os Emirados Árabes Unidos. Em fevereiro de 2020, com o apoio desses países e o incentivo dos Estados Unidos e da Arábia Saudita, ele se encontrou com o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu em Uganda. Isso sugere que al-Burhan está inclinado a se juntar ao “eixo sunita” liderado pela Arábia Saudita, em troca dos Estados Unidos retirarem o Sudão da lista de países patrocinadores do terrorismo e mais apoio do FMI.

Enfrentando Le Pouvoir

Em dezembro de 2018, Abdelaziz Bouteflika, presidente da Argélia desde 1999, declarou sua intenção de concorrer a um quinto mandato nas eleições presidenciais que seriam realizadas em abril seguinte. Bouteflika começou a ter sérios problemas de saúde em 2005 e sofreu um acidente vascular cerebral debilitante em 2013, que o deixou em uma cadeira de rodas e incapaz de fazer discursos.

Raramente visto em público desde então, Bouteflika era a figura-chave de um grupo de líderes militares, de segurança interna, governamentais, políticos e empresariais, coletivamente conhecidos como le pouvoir (o poder). Em colaboração e competição, eles governavam o país. Le pouvoir decidiu que a candidatura de um octogenário incapacitado para um quinto mandato presidencial era a melhor maneira de manter o poder.

Muitos jovens argelinos sentiram-se ofendidos pela indignidade de serem nominalmente liderados por um octogenário incapacitado. Após protestos esporádicos em locais dispersos, eles usaram as redes sociais para convocar manifestações em todo o país em 22 de fevereiro de 2019. A adesão foi massiva e iniciou a “Revolução do Sorriso” da Argélia, ou, mais seriamente, o Movimento Hirak. De fevereiro a abril, o Hirak se espalhou geograficamente e ganhou impulso com manifestações semanais. Universidades e escolas entraram em greve. As eleições presidenciais foram adiadas.

Dois terços dos quarenta e um milhões de argelinos têm menos de trinta anos. O desemprego geral é superior a 11%, mas mais de um quarto dos jovens em idade de trabalhar estão desempregados. Esses jovens têm sido o núcleo do Hirak. Mas as queixas subjacentes do Hirak derivam da incapacidade do le pouvoir, devido a suas divisões internas, de definir um curso econômico claro — seja em direção ao neoliberalismo, de acordo com o Programa de Reforma Econômica e Ajuste Estrutural de 1994 assinado com o FMI, ou em direção a uma renovação de seu populismo anti-imperialista fundador.

A consequência desse fracasso foi décadas de estagnação econômica, alto desemprego e multiplicação de escândalos de corrupção. Em 2010 – 2012, o regime argelino conseguiu conter os protestos reduzindo os preços dos alimentos básicos, aumentando o fornecimento de trigo e criando alguns empregos. No entanto, o acentuado declínio nos preços do petróleo desde 2014 tornou tais remédios impossíveis em 2019.

A queda de Bouteflika

A liderança da federação sindical oficialmente reconhecida, a União Geral dos Trabalhadores Argelinos (UGTA), fazia parte do le pouvoir. Os sindicatos autônomos não afiliados à UGTA foram legalizados em 1990. No entanto, o governo os reprimiu, prendeu seus líderes e se recusou a reconhecê-los. Os sindicatos autônomos geralmente apoiavam o Hirak. Em algumas regiões do país, até mesmo a liderança local da UGTA apoiava o movimento.

A Confederação Sindical dos Trabalhadores Produtivos (COSYFOP) e o Sindicato Autônomo dos Trabalhadores na Companhia de Gás e Eletricidade Pública (SNATEG) convocaram uma greve geral de 10 a 15 de março. A greve foi até apoiada pela Cevital, o maior conglomerado privado não relacionado à energia. Raouf Mellal, presidente tanto da COSYFOP quanto do SNATEG, declarou que os trabalhadores argelinos querem “um governo de transição que inclua figuras-chave da oposição e promova a unidade nacional”. Os sindicatos autônomos ameaçaram outra greve geral em 7 de abril se um governo de transição não fosse formado.

Em resposta à crescente pressão popular, em 2 de abril, o ex-aliado de Bouteflika, o comandante do exército Ahmed Gaïd Salah, o forçou a renunciar. Muitas figuras políticas poderosas do círculo de Bouteflika foram presas. A extensa lista incluiu seu irmão mais novo, Saïd Bouteflika, dois ex-primeiros-ministros, dois ex-chefes de inteligência, um ex-chefe de polícia, uma dúzia de ministros, os líderes dos quatro partidos políticos que apoiavam Bouteflika, algumas das pessoas mais ricas do país e vários oficiais do exército.

O antigo regime foi parcialmente desmantelado. Isso foi um feito impressionante para um movimento sem organização nacional ou conexão orgânica com partidos de oposição enfraquecidos por anos de participação política nos termos do le pouvoir. No entanto, a estrutura fundamental do poder permaneceu intacta. O General Salah se tornou o homem forte do regime provisório. Suas outras figuras-chave eram habituais do período Bouteflika.

O governo provisório prendeu muitos líderes do Hirak. Uma das figuras proeminentes foi Karim Tabbou, líder de um pequeno partido democrático-socialista não reconhecido, a União Democrática e Social. Ele foi preso em 11 de setembro de 2019 por “enfraquecer a moral do exército” após criticar publicamente o General Salah.

O governo provisório também mirou líderes sindicais independentes. Raouf Mellal foi preso e torturado após a renúncia de Bouteflika em abril e passou os meses seguintes foragido. Em setembro, um membro da COSYFOP foi preso por filmar uma marcha de membros do sindicato; outro foi detido e torturado. Ibrahim Daouadji, secretário-geral da OSATA, outra confederação sindical autônoma, foi preso em 12 de outubro por criticar o exército e as autoridades civis junto com seu filho de três anos. Rym Kadri, presidente do sindicato dos trabalhadores da educação afiliado à COSYFOP, foi presa em 24 de novembro por participar de um protesto pedindo a libertação de prisioneiros políticos.

Armadilha eleitoral

O exército insistiu em realizar eleições presidenciais antecipadas para provar que a ordem estava sendo restabelecida e fixou a data de 12 de dezembro de 2019. O Hirak buscou adiar a votação para que as forças políticas de oposição tivessem tempo de se organizar e competir em igualdade de condições com os candidatos do regime.

Em 1º de novembro, na trigésima sétima manifestação semanal de sexta-feira do Hirak e no sexagésimo quinto aniversário do início da Guerra de Independência da Argélia, centenas de milhares protestaram em Argel, opondo-se à data das eleições presidenciais de 12 de dezembro. Os manifestantes levavam cartazes proclamando: “As eleições de um poder corrupto são uma armadilha estúpida.” Eles também cantavam slogans contra o General Ahmed Gaïd Salah e pediam uma assembleia constituinte liderada por civis.

Os manifestantes também pediram a libertação de quarenta e uma pessoas que foram presas por exibir a bandeira Amazigh em um comício em julho. Não há lei contra exibir a bandeira Amazigh. No entanto, as quarenta e uma pessoas foram detidas sob acusação de “minar a unidade nacional”. Cinco outras foram presas pelo mesmo “delito” em 1º de novembro.

As Forças da Alternativa Democrática (FDA), uma coalizão que inclui vários partidos socialistas e o RCD com base Amazigh, bem como o Fronte de Justiça e Desenvolvimento islâmico, pediram um boicote das eleições presidenciais. Como parte da campanha para impedir as eleições de 12 de dezembro, a COSYFOP convocou uma greve geral de 6 a 7 de novembro.

Como disse Raouf Mellal:

“Rejeitamos categoricamente essas eleições militares manipuladas, que têm como objetivo abortar qualquer tipo de mudança democrática. Esta é nossa oportunidade de criar um estado civil que respeite a lei, e iremos até o fim para restaurar pacificamente a soberania do povo.

O Antigo regime se agarra

Em certo nível, o boicote foi um sucesso: a participação oficial foi baixa, em torno de 40%, enquanto o RCD afirmou que o número real era apenas 8%. No entanto, as eleições foram realizadas com a participação de cinco candidatos, todos eles figuras do antigo regime. O vencedor, o atual presidente da Argélia, Abdelmadjid Tebboune, foi primeiro-ministro de Bouteflika. Uma nova ordem política não emergiu.

Dois dias antes das eleições presidenciais, as autoridades prenderam Kaddour Chouicha, presidente do sindicato independente dos trabalhadores da educação superior e vice-presidente da Liga Argelina para a Defesa dos Direitos Humanos. Após vinte e oito dias de detenção, ele foi absolvido das acusações em 3 de março. No entanto, muitos outros defensores dos direitos humanos e líderes do Hirak ainda permanecem detidos.

Continuando as políticas do regime de Bouteflika e do governo de transição, Tebboune retaliou contra sindicatos independentes que apoiam o Hirak. Em 5 de fevereiro, a polícia selou a sede da COSYFOP em Argel. A COSYFOP realizou um congresso em 15 e 16 de fevereiro, onde elegeu Zakaria Benhaddad para substituir Raouf Mellal como seu presidente. Benhaddad teve em vista despolitizar o sindicato: “Nos novos estatutos, especificamos que o ativismo político está excluído, e quem quiser exercer política deve se juntar a um partido político.”

Futuro incerto

A pandemia de COVID-19 transformou a atividade política em todo o Oriente Médio e norte da África. No Iraque, os organizadores das manifestações regulares na Praça Tahrir em Bagdá anunciaram que o movimento seria suspenso até o fim da pandemia.

No Líbano, a Assolta4 TV, Fourth Estate – Lebanese Revolution TV iniciou as transmissões de teste em meados de fevereiro. Seus idealizadores buscaram criar um canal de mídia independente para o levante popular. Portanto, o movimento libanês já havia migrado parcialmente para a internet quando as manifestações começaram a diminuir no final de fevereiro. Mas o canal parece não estar funcionando no momento em que as forças de segurança destruíram à força as últimas tendas restantes no centro de Beirute em 27 de março, impondo um toque de recolher das 7h às 5h que as autoridades impuseram para limitar a propagação do coronavírus.

Na Tunísia, o secretário-geral da UGTT, Noureddine Taboubi, anunciou que todas as greves, protestos, conferências e reuniões seriam adiadas durante a pandemia.

No Sudão, as Forças pela Liberdade e Mudança começaram a perder a confiança no Conselho Soberano quando demitiu soldados e oficiais que apoiaram a revolução no exército. A SPA convocou uma manifestação em 20 de fevereiro para exigir que fossem restaurados ao serviço. As forças de segurança responderam com gás lacrimogêneo e violência. Pouco depois, o conselho fechou escolas e universidades, suspendeu voos e selou as fronteiras em resposta à COVID-19.

Ele também anunciou um adiamento das investigações sobre o massacre de Khartoum. Por causa desse contexto, muitos acreditavam que o conselho estava exagerando a gravidade da pandemia para evitar expor os crimes do exército durante o levante revolucionário. Isso provocou manifestações em 16 de março, que parecem ter sido a última expressão aberta de resistência aos elementos militares do Conselho Soberano.

Na Argélia, as autoridades condenaram Karim Tabbou a seis meses adicionais de prisão em 24 de março. Anteriormente, ele e várias outras figuras proeminentes do Hirak haviam pedido ao movimento que suspendesse suas manifestações regulares a partir de 20 de março após cinquenta e seis semanas consecutivas de ação. Vários grupos de oposição secular — o Frente das Forças Socialistas, o Rally para a Cultura e a Democracia e o Partido dos Trabalhadores — se juntaram a eles nesse apelo.

A COVID-19 tornou o futuro político incerto no Oriente Médio e no Norte da África, assim como em outras partes do mundo. Consequentemente, é impossível prever o resultado das revoltas de 2018 a 2020. No entanto, as revoltas de 2010 a 2011 e suas sequelas em 2018 a 2020 provavelmente serão apenas os primeiros estágios de uma luta prolongada sobre as condições políticas e econômicas subjacentes que deram origem a esses movimentos.

Sobre os autores

é professor emérito e ocupa a cadeira Donald J. McLachlan de História e História do Oriente-Médio na Universidade de Stanford. Seu livro A Critical Political Economy of the Middle East and North Africa foi publicado pela Stanford Univesity Press.

Cierre

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Published in Análise, Direitos Humanos, História and Oriente Médio

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