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Moradores de São Francisco, Califórnia, fecham a mais importante ponte da cidade, a Golden Gate Bridge, também conhecida como Bay Bridge, para demandar um cessar-fogo de Israel contra Gaza. Fotografia de Brooke Anderson.

Quando a desobediência civil tranca a rua

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Militantes em solidariedade à libertação do povo palestino usaram seus carros e corpos para bloquear a icônica ponte de São Francisco. O episódio nos lembra que as ruas são também um campo de batalha contra o capital e o expansionismo militarista.

No dia 16 de novembro, um grupo de ativistas pela causa palestina bloqueou a famosa Bay Bridge em São Francisco. A manifestação, que começou às 7:45 da manhã, hora do rush na Califórnia, pegou a polícia de surpresa. Sem levantar suspeitas, ativistas usaram seus carros para bloquear a ponte. Em seguida, jogaram suas chaves na Baía de São Francisco e se algemaram às grades de proteção, no que foram acompanhados por aproximadamente 200 aliados. Somente após quatro horas a polícia conseguiu remover os ativistas (70 pessoas foram presas) e guinchar 29 carros, liberando novamente a ponte para circulação.

Conhecida como stall-in, a técnica de utilizar carros como instrumentos de bloqueio não é nova. Foi primeiramente concebida em 1964, em uma das campanhas geralmente esquecidas de desobediência civil organizadas pelo Movimento dos Direitos Civis nos Estados Unidos. A campanha em questão foi concebida por uma das principais organizações contra a segregação racial da época, o Congresso pela Igualdade Racial (CORE), com o objetivo de aproveitar a cobertura midiática da Exposição Universal de Nova York para chamar a atenção mundial para a supremacia branca nos Estados Unidos. O stall-in aconteceria no dia em que estava marcado o discurso do presidente Lyndon Johnson. Combinado com protestos em frente aos pavilhões do evento, o objetivo do stall-in era oferecer um contraponto à narrativa oficial dos Estados Unidos como “Terra das Oportunidades”, ao associar a luta contra a segregação racial à luta contra a exploração econômica e contra a miséria em bairros como Harlem em Nova York e Bedford-Stuyvesant no Brooklyn.

O carro como barricada

Não era a primeira vez que carros desempenhavam um papel fundamental na luta política pela liberdade dos pretos no país. A prisão de Rosa Parks em 1956 por não ceder seu assento no ônibus a um passageiro branco desencadearia o conhecido Boicote aos ônibus de Montgomery. Durante 381 dias, a comunidade afro-estadunidense recusou-se a andar de ônibus, compartilhando em muitos casos os carros com outros pretos para ir ao trabalho ou circular na cidade. Com isso a posse de um automóvel Ford, símbolo do dito “Sonho Americano”, era politizada. Nesse contexto, o carro não era somente, ou sobretudo, concebido como uma mercadoria para uso individual. Para a comunidade preta, tratava-se antes de um instrumento de trabalho, um instrumento que poucos tinham condições materiais de adquirir. Para muitos pretos, além disso, o automóvel Ford era não o instrumento, mas o fruto do seu trabalho, produzido com suor e sangue nas fábricas instaladas próximas aos guetos raciais ao redor do país. Em Montgomery, contudo, o carro se tornaria um instrumento coletivo de resistência no desenvolvimento da luta contra a segregação racial.

É nessa tradição de resistência que o stall-in se inscreve. A desobediência civil como forma de resistência não-violenta sempre foi criticada pela tradição preta radical como inefetiva. O stall-in sugere uma resposta prática a essa objeção. Não tem sido, historicamente, difícil para aparelhos estatais usarem forças policiais ou militares para reprimir manifestações e remover da cena de resistência os manifestantes que usam seus corpos para bloquearem ruas, avenidas ou estradas. Face a isso, o stall-in dobra a aposta, ao desafiar o Estado a remover dezenas ou centenas de carros, estrategicamente sem combustível, dos espaços dos quais o Capital precisa para circular na forma de mercadorias. A logística necessária para deslocar os carros, através do uso de guinchos, é onerosa e demanda tempo. É raro que a polícia ou as forças armadas consigam dar conta do bloqueio com facilidade. A não-violência se torna coerção física. O carro se torna barricada.

As ruas são um terreno de luta

Não é à toa, como mostra Erin Pineda em seu livro sobre a desobediência civil (Seeing Like an Activist: Civil Disobedience and the Civil Rights Movement, de 2021), que o stall-in foi tão condenado como tática quando usado pelo Movimento dos Direitos Civis em 1964. Desde sua concepção, a estratégia foi considerada contra-produtiva, inclusive por membros do próprio movimento e pelos ativistas do CORE. Martin Luther King Jr., por exemplo, considerou o stall-in um “erro tático”, mas recusou-se a condenar a campanha publicamente. Para King, seria taticamente mais convincente realizar um stall-in em frente ao Congresso, de onde se esperava que a mudança viria naquele mesmo ano sob a forma de um novo projeto de lei contra a segregação racial.

No final das contas, pode-se dizer que o stall-in de 1964 não foi bem-sucedido. Muitos ativistas e aliados preferiram não participar da campanha, sobretudo a partir do momento em que um tribunal federal proibiu preventivamente a manifestação de ocorrer. A quantidade de carros não foi, assim, suficiente para que o bloqueio das avenidas ao redor dos pavilhões fosse bem-sucedido. O número de manifestantes em frente ao evento também foi discreto.

Isso não parece, contudo, depor contra as potencialidades do stall-in como forma de resistência ao capitalismo hoje, sobretudo em um momento em que a direita e a extrema-direita entenderam a principal intuição estratégica que orienta o stall-in, como mostram a greve dos caminhoneiros de 2018 e os bloqueios nas estradas por bolsonaristas após as eleições de 2022. Retornar aos stall-in contribui, nesse sentido, para enriquecer nossa imaginação política e para nos lembrar, em tempos de luta contra o Capital e de um expansionismo militarista crescente, que as ruas continuam sendo um dos meios de resistência mais significativos de que dispomos.

Sobre os autores

é escritor e doutorando em filosofia na Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Seu trabalho já foi publicado pelo Washington Post, World Politics Review, The Philosopher, entre outras revistas e jornais.

Cierre

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Published in América do Norte, Análise, Direitos Humanos and Guerra e imperialismo

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