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William Morgan, um comandante do exército rebelde de Cuba nascido nos EUA, mais tarde armazenou armas para um golpe apoiado pela CIA contra o governo de Fidel Castro. (Lester Cole/CORBIS via Getty Images)

O comandante das forças rebeldes que se tornou contrarrevolucionário

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Tradução
Gercyane Oliveira

Um dos personagens mais interessantes da Revolução Cubana foi William Morgan, um antigo artista do circo de Toledo, em Ohio, que se tornou um comandante das forças rebeldes. Mas o ato final de Morgan destruiu sua biografia: ele se tornou um contrarrevolucionário trabalhando para a CIA.

Cuba transportou um milhão de dólares para os Estados Unidos no ano passado”, declarou William Morgan, um americano expatriado, pouco depois da Revolução Cubana de 1959. “Eu vou dobrar isso”.

Morgan era um homem aventureiro com olhos azuis brilhantes, cabelos louros e uma personalidade que o envolvia em um fluxo constante de problemas. De acordo com o arquivo que a CIA fez mais tarde sobre ele, ele era “nômade, egocêntrico, impulsivo e totalmente irresponsável”. Em uma palavra, ele estava entediado – de forma constante e profunda.

Dois anos antes, Morgan havia se juntado às forças rebeldes cubanas com vinte e nove anos de idade, apenas para cair diante delas após o sucesso da revolução. Mas com o novo governo de Fidel Castro impulsionando a reforma agrária e ansioso para financiar novos empreendimentos, apoiou os planos de Morgan para um viveiro de sapos. E então, em mais uma reviravolta, Morgan começou a usar clandestinamente o criadouro como um depósito de armas para um golpe apoiado pela CIA.

A história de William Morgan é um conto excêntrico de becos sem saída, abandonos, revolução e contrarrevolução. É também uma história que foi usada como munição na guerra midiática contra Cuba, uma fábula para ajudar a justificar as sanções mortais dos Estados Unidos.

Do Circo à Revolução

William Morgan foi criado em Toledo, Ohio, no bairro de classe média alta de West End. Sua adolescência e vida adulta foram um desfile de malandragem e inconformidade: ele entrou para o circo aos 14 anos depois de ter sido expulso de duas escolas, trabalhou na máfia como um principiante, foi desertor do exército e depois se casou com uma encantadora de cobras em Miami. Finalmente, cansado da vida de criminoso convicto em busca de trabalho honesto, ele começou a traficar armas entre a máfia e Cuba, um país com uma revolução em construção para a qual o aventureirismo de Morgan o lançou a toda velocidade.

Para entrar com os rebeldes, Morgan inventou uma história de vingança. Ele afirmou que queria combater o ditador cubano Fulgencio Batista, um ditador cruel apoiado pelos EUA que cooperou com a máfia americana e vendeu o país a empresários americanos e estrangeiros – 70% das terras cubanas eram de propriedade de americanos e outros proprietários estrangeiros. Terrivelmente fora de forma, Morgan acabou se encontrando caminhando para as montanhas Escambray, no centro de Cuba, o reduto da Segunda Frente, um grupo militante que lutava independentemente do Movimento 26 de Julho de Fidel Castro. Os membros da Segunda Frente brincaram que Morgan estava tão acima do peso que deveria fazer parte da CIA.

Mas após um treinamento intenso, ele ganhou o respeito dos militantes. “O gringo é durão”, lembrou o chefe da inteligência, Roger Redondo, “e os homens armados do Escambray passaram a admirar sua persistência”. À vista, Morgan havia se transformado no perfeito guerrilheiro das montanhas – em forma, de ombros largos e barbudo, com um uniforme verde-azeitona e uma metralhadora na mão. Se ele tinha a imagem de um artista de circo-mafioso, ele parecia agora comprometido com a revolução.

Morgan lutou corajosamente, chegando à posição estimada de comandante. Ele treinou soldados, apaixonou-se e foi manchete em todo o mundo como “a figura mais interessante da Serra de Escambray”, “como um cowboy em uma aventura de Ernest Hemingway” (causando confusão dentro da CIA, que não sabia quem era Morgan na época).

“Éramos um grupo pequeno, mas éramos jovens e fortes”, disse Morgan mais tarde. “Ficamos conhecidos como os fantasmas das montanhas”.

O Comandante Yankee

As forças rebeldes eram um grupo ideologicamente heterogêneo. A Diretoria Revolucionária, o Partido Popular Socialista, a Organização Autêntica, a Segunda Frente do Morgan – todos estavam lutando nas montanhas Escambray. O Dr. Ernesto Guevara, integrante em ascensão do Movimento 26 de Julho, teve a difícil tarefa de reunir os grupos.

A Segunda Frente foi a mais difícil de conciliar. Embora eles fossem habilidosos na luta de guerrilha – conheciam a região e aprenderam táticas que Morgan havia aprendido em sua curta carreira militar – a Segunda Frente não tinha um programa político claro. Seu único grito de mobilização era contra o comunismo. Assim, quando Guevara – que eles conheciam apenas vagamente como um marxista – os pediu para apoiar a reforma agrária, no entanto, a Segunda Frente recusou, apoiando os latifundiários. Eles acabaram concordando com um pacto mais limitado de caráter militar.

Enquanto isso, William Morgan casou com sua amante cubana, Olga Rodríguez, ambos vestidos com seu traje militar verde oliva. Morgan havia abandonado suas mulheres e filhos passados e esperava começar de novo com um casamento nascido da luta revolucionária.

Chegou bem a tempo da ofensiva final contra Batista. Agora provisoriamente unidas, as forças rebeldes tomaram as principais cidades e vilas e enviaram ao exílio um Batista assustado. Em 1º de janeiro de 1959, as forças revolucionárias reivindicaram a vitória. Eles tinham expulsado com sucesso o ditador.

E o garoto de Toledo foi levado mais longe para os holofotes da mídia – um cowboy rebelde que se tornou guerrilheiro, o comandante Yankee.

Um agente duplo

Havia pouco tempo para comemorar. Morgan e a Segunda Frente enfrentavam um futuro incerto. Enquanto mantinham uma relação frágil com a nova coalizão governante, eles permaneceram teimosos contra Castro, recusando-se até mesmo a adotar os uniformes militares do Exército Revolucionário.

Ainda assim, Morgan demonstrou alguma lealdade: rejeitou um agente da CIA que queria “ativá-lo” como recruta. Ele apenas respondeu às perguntas, informando ao agente que acreditava no governo: “Aposto minha vida que a revolução é um sucesso”.

A ideologia do Movimento 26 de Julho, por sua vez, tornou-se mais refinada à medida que sua proposta de trabalho foi sendo discutida: reforma agrária para agricultores rurais sem propriedade, educação para uma população em grande parte analfabeta, grandes investimentos na área da saúde. A política da Segunda Frente, no entanto, permaneceu abstrata e incerta. Como disse Morgan, “estou aqui porque acredito que a coisa mais importante para os homens livres é proteger a liberdade dos demais”.

A Segunda Frente foi excluída do novo governo. Morgan havia sido rebaixado por falta de disciplina, e ele ficou chateado por outro membro da Segunda Frente estar preso por ter matado bêbado um sargento. Os dois se sentiram menosprezados pelas altas posições militares. As coisas pioraram durante uma reunião com Fidel Castro que terminou com armas sacadas.

Buscando aproveitar a indefinição de Morgan, Dominick Bartone, um mafioso de Cleveland, aproximou-se de Morgan em um lobby de hotel. O mafioso, juntamente com o ditador da República Dominicana apoiado pelos EUA, Rafael Trujillo, não só queria que os cassinos ficassem abertos como também queria Castro morto. Um Morgan bêbado falou em se virar contra a revolução pelo milhão de dólares que lhe estavam sendo oferecidos. Ele gritou que ficaria feliz em “tirar Fidel Castro do poder”.

Williiam Morgan e Olga María Rodríguez Farinas nas montanhas de Cuba, c. 1958. (Domínio Público)

Mas depois de algumas reuniões, sem saber se o milhão de dólares valia o risco e temendo que ele fosse pego, Morgan decidiu contar a Castro sobre o plano. Sua decisão, embora hesitante, foi o que se transformou num esquema da máfia e de Trujillo para executar uma invasão em grande escala em Cuba, com a luz verde da CIA em 1959, conhecida como a Conspiração de Trujillo.

O plano complexo e a última denúncia da tentativa de invasão colocaram Morgan contra a CIA e o colocaram do lado de Castro. Ele era, na opinião do governo dos EUA, um traidor. Eles revogaram sua cidadania.

Preso entre Castro, que ele odiava, e os Estados Unidos, que ele tinha fugido, Morgan tentou criar uma redoma com o pouco que podia. Ele começou a criação da incubadora de sapos.

No verão de 1960, Morgan estava recebendo um salário do governo cubano para administrar o próspero viveiro de rãs-touro no rio Ariguanabo. Ele trabalhava intensamente todos os dias, cavando fossos, expandindo os negócios e pesquisando detalhes do comércio. A incubadora empregava centenas de trabalhadores rurais cubanos, exportando as peles e a carne procurada.

Morgan tinha aparentemente encontrado sua vocação.

Contrarrevolução do sapo boi

Enquanto os EUA continuavam tentando destruir Fidel Castro e dizimar a economia de Cuba, o país foi levado a estabelecer relações políticas com a URSS. Entre 1960 e 1965, a CIA lançou pelo menos oito tentativas de assassinato contra Castro e impôs um embargo em resposta à reforma agrária que arrancou propriedades dos latifundiários.

“Não foi porque Castro veio para Havana como comunista, mas sim pelo fato de que a miserável resistência dos proprietários – seja em Cuba ou nos Estados Unidos – fez dele um comunista”, explica Vijay Prashad.

“O povo estava nas ruas e eles estavam liderando”, disse-me a ativista trabalhista de longa data Beatrice Lumpkin, lembrando-se de sua visita a Havana meses após a revolução. “Eles estavam altamente conscientes e extremamente a favor da revolução”.

William Morgan não via as coisas dessa maneira. Para ele, a única maneira de ajudar as massas era estabelecer um sistema de eleições presidenciais, mesmo que os candidatos fossem os instrumentos da máfia e das empresas americanas. Ele decidiu mudar de lado.

Naquela época, os membros da Segunda Frente haviam se desencantado com as tendências socialistas de Castro e começaram a conspirar para derrubá-lo do poder à força. Morgan começou a estocar armas fornecidas pela CIA em seu viveiro e a transportá-las para o Escambray, onde uma contra revolução apoiada pela CIA havia sido posta em prática contra o governo. (Os ataques contra-rrevolucionários durariam até 1965, resultando em milhares de mortes em ambos os lados).

Mas o tempo de Morgan passou correndo, algo que ele fez ao longo de sua vida, estava chegando ao fim. Ele foi pego transportando armas, preso, acusado e executado em março de 1961. Foi um final sombrio para uma vida incrivelmente arruaceira. Morgan havia passado de fazer o inferno em Toledo para liderar uma unidade de guerrilheiros e criar uma família de sapos – e então, quando a revolução avançou na guerrilha do passado e no reino da política, quando ele se viu diante de uma escolha entre a revolução e a CIA, ele abraçou a CIA.

O mito de Morgan

A história de William Morgan tem ressurgido nos últimos quinze anos. Escritores e historiadores tentaram ressuscitar aquele Morgan, aquele não-conformista simpático para a mídia, que lutou com Fidel para derrubar a ditadura de Batista. A New Yorker publicou uma história sobre Morgan em 2012, vários livros foram escritos sobre ele, e um filme estrelado por Adam Driver está em cartaz.

Mas em muitos desses relatos, o espírito revolucionário de Morgan persiste depois de 1 de janeiro de 1959, mesmo depois de sua guinada contra revolucionária. Morgan é visto não como um traidor da revolução, juntando-se a pessoas como a CIA e antigos soldados Batista, mas como o verdadeiro defensor da revolução: só o cowboy americano pode salvar Cuba de Batista e Castro. O Movimento 26 de Julho, ao que parece, não foi impulsionado pelo antiimperialismo que se aprendeu com a brutalidade dos golpes da CIA na América Latina ou pelo anticapitalismo captado da desigualdade gerada pelas corporações de propriedade estrangeira – não, em vez disso nos dizem que foi apenas um “antiamericanismo” infundado.

Há algo de trágico, quase engraçado, neste retrato de Morgan. Mas é uma coisa perniciosa, não um mito inofensivo. Como a ilha continua sendo atingida por um brutal embargo dos EUA, retratar Morgan como um inabalável combatente pela liberdade serve para justificar estas sanções mortais. Ele se torna um revolucionário inofensivo e idealista, eliminado por um ditador anti-americano obstinado.

É uma história fácil de contar. Mas é uma história tão absurda quanto uma tentativa de golpe provocada por um artista de circo em uma incubadora de sapos.

Sobre os autores

Taylor Dorrell

é um escritor e fotógrafo baseado em Columbus, Ohio. É escritor colaborador da Cleveland Review of Books, repórter da Columbus Free Press e fotógrafo freelancer.

Cierre

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Published in América Central, América do Norte, Análise, Guerra e imperialismo and História

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