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Ricos patrões na Inglaterra Vitoriana buscam aconselhamento do mundo espiritual por meio de misteriosas mesas que se movem por ação espectral.

Marx, Faraday e a objetividade fantasmagórica do valor

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Tradução
Everton Lourenço

Na Inglaterra Vitoriana, as mesas ciganas “possuídas” por espíritos ganharam notoriedade. Fantasmas? Magia? Eletromagnetismo? O que elas podem revelar sobre o fetiche da mercadoria, a teoria do valor e o fantasmagórico mundo capitalista?

Publicado originalmente na revista Cosmonaut.


A mesa “cigana”

Nos primeiros anos da década de 1980, meus avós moravam em um pequeno apartamento municipal no 8º andar de um alto prédio residencial em Sheffield. Ocasionalmente, mas só após pedidos insistentes de visitantes durante reuniões familiares em sua casa, eles iam com relutância buscar o que minha avó chamava de “mesa cigana”.

A mesa cigana era uma mesinha de madeira, com tampo circular na altura da cintura, com espaço para no máximo um bule e algumas xícaras. Tinha três pernas torneadas arranjadas num tripé para dar maior estabilidade.

Só que esta não era uma mesa comum: era uma mesa mágica, que podia receber espíritos.

Para invocar um espírito, duas ou mais pessoas tinham de colocar as mãos unidas sobre ela, como numa sessão espírita, mas em pé e não sentadas. Então, um dos meus avós falava em voz alta na direção do éter, e convidava um espírito para vir se juntar a nós.

Nós permanecíamos em silêncio, em antecipação, olhando para a mesa em busca de algum sinal de vida.

“Espírito, mostre-nos um sinal se você estiver aí.” Silêncio, tudo permanecia imóvel.

“Espírito, esperamos por você.” E nada acontecia.

Mas então, quase imperceptivelmente, a mesa cigana começava a se mexer e lentamente, bem lentamente, ela balançava para trás sobre duas das pernas do tripé, levantava a terceira e depois lentamente se inclinava para frente a fim de retomar a posição de repouso. O ar ficava eletrificado com a chegada do espírito.

O sopro de vida em objetos

Os seres humanos têm invocado espíritos para o interior de objetos inanimados há milênios.

Os antigos egípcios invocavam o Ka (que parece ter significado “sopro de vida”) de seus ancestrais mortos para o corpo de estátuas. Eles desfilavam as estátuas em festivais para que os mortos, com os olhos pintados bem abertos, pudessem ver o mundo mortal novamente.

Os faraós recém-coroados, com o intuito de evitar a interferência espiritual de inimigos políticos mortos, ordenavam que os narizes das estátuas de seus adversários fossem cortados para evitar que os seus espíritos respirassem, forçando o Ka a partir.

Mas não eram apenas ancestrais mortos: deuses habitavam as estátuas dos templos. Para manter sua presença divina, elas recebiam cuidados diários. Um sacerdote realizava a cerimônia de “abertura da boca”, tocando a estátua na boca, nos olhos, no nariz e nas orelhas com instrumentos rituais para dar-lhe o poder da respiração, da visão, do olfato e da audição. Em dias auspiciosos, os sacerdotes do templo colocavam a estátua possuída de espírito em um barco e navegavam ao longo do Nilo, à vista das multidões reunidas. Quando o barco se aproximava da margem do rio, os fiéis se reuniam para fazer perguntas ao deus e obter orientação espiritual. O deus, encurralado e preso na estátua, capaz de ver e ouvir, mas não de falar, comunicava-se balançando o barco nas águas, para frente e para trás.

Os antigos gregos mantinham a presença dos seus deuses dentro de seus templos por meio de sacrifícios de animais, orações e dedicatórias. Na Ilíada, os peticionários clamam à estátua de Atena que salve a cidade, mas ela se recusa, virando a cabeça para longe da visão deles. O Papiro Mágico Grego, uma coleção de manuscritos datados de 100 A.C. em diante, contém vários feitiços para animar estátuas; a teurgia neoplatônica, o sistema de magia desenvolvido por Jâmblico e seus seguidores na Antiguidade Tardia, descreve a prática de dar vida a estátuas; e o polemista dos primórdios cristãos, Tertuliano, escrevendo no século II D.C., relata com desaprovação como os pagãos conjuravam espíritos que se comunicavam através do movimento de bancos e de mesas.

A mesa que andava e falava

Portanto, ainda que eu não soubesse na época, meus avós e eu estávamos participando de uma prática muito antiga.

Uma vez que a mesa cigana estivesse tomada por um espírito, ela podia responder perguntas, chacoalhando uma vez para “sim” e duas vezes para “não”. Podíamos perguntar qualquer coisa; ela conseguia prever o futuro e revelar segredos.

Se tivéssemos sorte, a mesa cruzava o carpete, balançando para trás e levantando uma perna do tripé, e depois girava como uma roda inclinada, para colocar as pernas de volta sobre o carpete, alguns centímetros mais à frente.

Apesar das evidências dos nossos sentidos, a maioria de nós pensava que isso devia ser impossível. Mesas de madeira não podem andar ou ser possuídas por espíritos invisíveis. Os céticos entre nós pediam imediatamente aos meus avós que se afastassem, pois, claramente, eles estavam movendo a mesa com suas mãos.

Não obstante, mesmo quando era operada pelos próprios céticos – a mesa ainda se movia.

Lembro-me de um membro da família virando a mesa para inspecionar sua parte inferior e tentar descobrir algum mecanismo oculto. Eu tentei com minha irmã mais nova, apenas duas crianças pequenas entrelaçando as mãos sobre a mesa, e mais ninguém com a gente – e nós também sentimos e vimos a mesa se mover.

Era magia.

Mesas girantes na Inglaterra Vitoriana

Ou será que não era?

Minha avó afirmava que a família dela havia adquirido a mesa de um cigano viajante. Os ciganos, mesmo na década de 1980, tinham a reputação de serem um povo mágico.

Essa história despertava minha imaginação infantil. Imaginava uma caravana colorida puxada por cavalos, um parente distante se aproximando, uma troca ilícita com uma velha sentada em meio às suas sombras.

A verdade, porém, é provavelmente mais mundana.

Na época da Inglaterra Vitoriana, ocasionais mesas de três pernas eram mercadorias muito populares, produzidas em massa. Eram comercializadas como “mesas ciganas” por serem pequenas e de fácil transporte.

Essa estratégia comercial explorou a obsessão vitoriana com a “virada de mesa” ou “dança da mesa”, uma prática que parece ter origem, pelo menos nos tempos modernos, no movimento espírita estadunidense.

Em 1848, as adolescentes irmãs Fox afirmaram que haviam atividades de poltergeists em sua casa em Nova York. Testemunhas oculares relatavam mesas espontaneamente fazendo sons de batidas, balançando para frente e para trás e até levitando a muitos centímetros do chão. Um ano depois das irmãs terem relatado pela primeira vez seus encontros com espíritos, elas demonstraram publicamente o giro de mesas diante de uma plateia no Salão Corinthian, em Nova York. Foi uma sensação, os jornais rapidamente espalharam a notícia.

A mortalidade infantil era alta; a expectativa de vida, baixa. As pessoas estavam famintas por contato com o mundo espiritual para ajudá-las com suas dores e perdas. Muito naturalmente, os famintos espirituais (ou os simplesmente curiosos) tentaram replicar o fenômeno em casa – e funcionou. As mesas realmente se moviam, a prática se tornou uma mania.

A moda se espalhou pela Inglaterra quando um médium viajante estadunidense anunciou suas demonstrações nas primeiras páginas do jornal Times. Dentro de um ano, as mesas girantes tornaram-se moda em todo o país. As classes mais altas realizavam festas de “chá e dança de mesa”, enquanto as classes mais baixas usavam suas mesas de cozinha. Até a Rainha Vitória e o Príncipe Alberto aderiram à prática.

As mesas da Inglaterra estavam se movendo, animadas por fantasmas ou espíritos invisíveis.

Marx, sobre as mesas girantes

A dança de mesas era tão popular que até mesmo Marx e Engels a mencionaram. Engels cita brevemente a prática em seu “Dialética da Natureza”, onde satiriza o espiritismo moderno.

Marx menciona as mesas girantes no Manifesto Comunista e novamente no primeiro parágrafo da sua famosa sessão sobre o “Fetichismo das Mercadorias” no primeiro volume de O Capital. Aqui está a citação completa:

“Uma mercadoria aparenta ser, à primeira vista, uma coisa óbvia, trivial. Sua análise resulta em que ela é uma coisa muito intrincada, plena de sutilezas metafísicas e melindres teológicos. Quando é valor de uso, nela não há nada de misterioso, quer eu a considere do ponto de vista de que satisfaz necessidades humanas por meio de suas propriedades, quer do ponto de vista de que ela só recebe essas propriedades como produto do trabalho humano. É evidente que o homem, por meio de sua atividade, altera as formas das matérias naturais de um modo que lhe é útil. Por exemplo, a forma da madeira é alterada quando dela se faz uma mesa. No entanto, a mesa continua sendo madeira, uma coisa sensível e banal. Mas tão logo aparece como mercadoria, ela se transforma numa coisa sensível-suprassensível. Ela não só se mantém com os pés no chão, mas põe-se de cabeça para baixo diante de todas as outras mercadorias, e em sua cabeça de madeira nascem minhocas que nos assombram muito mais do que se ela começasse a dançar por vontade própria.” (O Capital, volume I, pág. 146)

Então, o que é essa transformação que ocorre na mesa “tão logo aparece como mercadoria?”

Pois bem, uma mesa de madeira, no contexto de uma economia de mercado, adquire novas propriedades. A mesa pode ser trocada por 100 pães, por um anel de noivado, por 1,5 jogos de chá de porcelana e assim por diante. A mesa, em outras palavras, adquire a propriedade de permutabilidade, e o preço relativo da mesa antecipa estas proporções de troca.

Mas por que as mercadorias têm preços? Marx salienta que as atividades dos produtores privados independentes precisam ser coordenadas. Numa economia de mercado, isto é alcançado por meio da retroalimentação sob a forma de transferências de dinheiro que fluem na direção oposta à transferência de mercadorias. As atividades com escassez de oferta são vendidas a preços mais altos e recebem recompensas monetárias mais elevadas. Por outro lado, as atividades com excesso de oferta são vendidas a preços menores e são punidas com recompensas monetárias mais baixas. Os produtores são, portanto, forçados a trocar de atividades não lucrativas para atividades lucrativas. A economia, de forma espontânea e não planejada, consegue realizar de maneira contínua e grosseira uma divisão social do trabalho, que produz a quantidade correta de mercadorias para satisfazer a demanda monetária. A demanda efetiva, contudo, é distorcida pela desigualdade de classes. Muito embora esta divisão do trabalho seja capaz de reproduzir a sociedade de classes, ela sempre falha em satisfazer muitas necessidades humanas reais.

Até aí, tudo bem. É por isso que as mercadorias têm preços. Mas por que algumas custam mais que outras? O que determina os preços relativos?

Marx, tal como os economistas clássicos antes dele, compreendia que os preços flutuam de acordo com a oferta e a demanda. Porém, o que precisa ser explicado é a estrutura relativamente estável dos preços ao longo de períodos de tempo mais longos. Por que os aviões sempre custam mais do que as canetas? Por que os sofás normalmente custam mais ou menos o mesmo que os computadores?

Marx responde que uma economia capitalista, devido à luta competitiva pelo lucro, tem uma tendência na direção (sem nunca atingi-lo por completo) de um estado atrator onde os preços sejam proporcionais ao tempo de trabalho abstrato socialmente necessário exigidos para se produzir cada mercadoria. Num hipotético estado de equilíbrio sem lucro e renda, e onde a oferta seja perfeitamente igual à demanda, então os preços representariam perfeitamente o tempo de trabalho abstrato. Marx chama esta dinâmica de “lei do valor”. Assim, um avião quase sempre custa mais do que uma caneta porque requer muito mais tempo de trabalho para ser fabricado.

Uma mesa de madeira adquire, portanto, não uma, mas duas novas propriedades, quando “aparece como mercadoria”: uma propriedade exotérica, que é o valor de troca ou o seu preço; e uma propriedade esotérica, o seu valor real, que é a quantidade de tempo de trabalho abstrato necessário para produzi-la, que Marx chama de “valor” e que (para fins de maior clareza) chamarei a partir daqui de “valor-trabalho”. O valor-trabalho de uma mercadoria é o regulador oculto do seu valor de troca e, portanto, do seu preço de mercado.

Objetividade “fantasmagórica” 

A mesa de madeira adquire novas propriedades quando funciona como mercadoria. Porém, por que Marx diz que uma mesa comum “se transforma numa coisa sensível-suprassensível” (ou “transcendente”, em outras traduções)? Por que isso “nos assombra muito mais do que” as mesas dançantes?

Marx, ao menos na tradução, escreve sobre como o valor-trabalho estaria “incorporado” nas mercadorias e que, portanto, as mercadorias são “meras quantidades cristalizadas” do gasto de trabalho abstrato. Mas Marx nega que os valores-trabalho estejam literalmente (e portanto fisicamente) incorporados nas mercadorias, como o vinho entornado numa garrafa. Marx diz:

 “Exatamente ao contrário da objetividade sensível e crua dos corpos das mercadorias, na objetividade de seu valor não está contido um único átomo de matéria natural. Por isso, pode-se virar e revirar uma mercadoria como se queira, e ela permanece inapreensível como coisa de valor.”  (O Capital, volume I, pág. 125)

Marx também afirma que o valor-trabalho de uma mesa de madeira já produzida, armazenada sem ser vendida num galpão, mudará imediatamente se a sociedade adotar novas técnicas de economia de trabalho para a sua fabricação. Marx observa:

“o valor das mercadorias é determinado não pelo tempo de trabalho que sua produção custou originalmente, mas pelo tempo de trabalho que custa sua reprodução” (O Capital, Volume III, p.448)

Marx é claro. O valor-trabalho de qualquer mercadoria é o tempo de trabalho que, contrafactualmente, seria consumido se essa mercadoria fosse produzida agora mesmo, hoje. À primeira vista isto parece uma assustadora “ação fantasmagórica à distância”, porque a mercadoria não vendida, guardada numa prateleira, não mudou em nada.

Em consequência, o valor-trabalho de uma mercadoria é de fato algo estranho, até mesmo “transcendente”.

Durante uma sessão de mesa girante, um espírito vem habitar o corpo da mesa de madeira. A mesa, portanto, adquire uma nova propriedade de ser animada, preenchida de espírito, e o novo poder de se comunicar com as pessoas. A mesma mesa, no contexto de uma economia de mercado, também adquire uma nova propriedade, de ser um valor-trabalho, com o novo poder de permutabilidade com todas as outras mercadorias. Em ambos os casos, por mais que olhemos com muita atenção, até mesmo se revirarmos a mesa de um lado e de outro, nunca seremos capazes de enxergar o espírito ou o valor-trabalho escondidos nela. Estas propriedades tornam-se – em certo sentido – incorporadas na mesa e ainda assim – noutro sentido – estão totalmente ausentes, invisíveis aos nossos sentidos. Tal como o espírito oculto, em última análise, é o que anima a mesa, o seu valor-trabalho oculto, em última análise, é o que anima o seu preço. O segredo que torna todas as mercadorias trocáveis entre si é algo que está escondido, algo oculto, uma objetividade espectral ou fantasmagórica – chamada valor.

Uma mesa animada pode parecer algo espantoso. Mas uma mesa, enquanto valor econômico, tem uma propriedade fantasmagórica igualmente real e irreal. Esta magia da mercadoria é “muito mais assombrosa” porque é muito mais poderosa.

Ceticismo vitoriano

Na antiguidade, a crença em deuses e espíritos era generalizada, enquanto a produção de mercadorias era esporádica e limitada. Na época vitoriana, esta situação já havia se invertido. O aparecimento do capitalismo e a revolução científica enfraqueceram o domínio da religião e da superstição. A antiga crença em espíritos que animam objetos entrava em conflito com o ceticismo científico, mesmo quando aquela era reembalada numa forma moderna pelos espíritas estadunidenses.

Em consequência, muitos cientistas, médicos e clérigos – exemplos da respeitabilidade e do bom senso vitorianos – voltaram a sua atenção cética para a atividade das mesas girantes. De fato, até mesmo Arthur Conan Doyle sentiu-se compelido a investigar o fenômeno – ele, o criador do modelo ficcional do racionalismo vitoriano.

Depois de controlar as variáveis e excluir as opções de trapaça e enganação, nossos heróis do bom senso propuseram várias teorias. Mais céticos em relação à heresia do que em relação ao mundo espiritual, o clero denunciou a prática como sendo uma forma de adoração ao diabo. Os mais cientificamente inclinados recorreram a forças invisíveis, tais como a recente descoberta do eletromagnetismo, das forças galvânicas ou mesmo do “magnetismo animal” – a força que alguns acreditavam explicar a hipnose.

Na era vitoriana, a comunidade científica estava totalmente reconciliada com a existência de forças invisíveis. A bem-sucedida teoria da gravidade de Newton propôs uma força invisível que influenciava o movimento dos corpos à distância sem a intervenção de um meio mecânico de transmissão. As experiências pioneiras de Michael Faraday no Instituto Real de Londres revelaram a existência de forças elétricas e magnéticas que se estendiam pelo espaço vazio. Se durante milênios a humanidade não foi capaz de perceber tais coisas, talvez houvesse muitas outras desse tipo. Outras hipóteses mais especulativas foram apresentadas para explicar o movimento das mesas, como a “força ectênica” ou “ectoplasmática”, uma precursora da teoria da psicocinesia; e as “forças ódicas”, em homenagem ao deus Odin, que seria um análogo vitalista do eletromagnetismo.

Ninguém negava a realidade do fenômeno nessas investigações. Os céticos apenas divergiam quanto à verdadeira causa. Isso porque as mesas realmente se mexiam – mesmo quando os céticos estavam no controle.

A Inglaterra Vitoriana enfrentava uma epidemia de espíritos fantasmagóricos, espectros e aparições. Eles não emergiam da neblina de Londres ou dos cantos do olhos, mas apareciam à vista de todos, manifestando-se nas casas de qualquer pessoa disposta a convidá-los.

Michael Faraday, cientista e caçador de fantasmas

Foi uma pequena crise ideológica. Quem poderia chegar ao fundo dessa questão? Qual pessoa tinha a combinação certa de experiência em fenômenos misteriosos e ao mesmo tempo suficiente perspicácia científica? A sociedade vitoriana precisava de um Sherlock Holmes da vida real.

Ela o encontrou em Michael Faraday. Seus engenhosos experimentos trouxeram a descoberta de novas forças ocultas da natureza. Suas palestras públicas cativavam tanto jovens quanto idosos no Instituto Real. Ele conseguia induzir campos magnéticos aproveitando o poder da eletricidade; construiu e demonstrou maravilhosos dispositivos rotativos que pareciam se mover por conta própria. Suas credenciais científicas eram impecáveis.

Faraday foi incomodado por centenas de cartas, de todo tipo de gente, pedindo-lhe que investigasse o mistério das mesas girantes. Por exemplo, William Hickson, editor da Revista de Westminster, escreveu:

“Agora, se Newton foi sábio ao perguntar a si mesmo por que a maçã cai, não poderíamos, com a devida modéstia, perguntar aos seus sucessores […] por que a mesa vira?”

Faraday finalmente cedeu. Começou a participar de sessões a fim de testemunhar pessoalmente o giro da mesa, que eram organizadas pelo seu amigo, o reverendo John Barlow, secretário do Instituto Real. Ele se convenceu de que o fenômeno era real, que não se tratava de uma mera trapaça. Pôs-se a trabalhar, e isso significava aplicar o método científico.

O experimento crucial

Ele cobriu uma mesa com diferentes materiais isolantes para evitar a interferência de forças elétricas ou magnéticas. Em seguida, Faraday pediu a voluntários que realizassem a sessão em condições de laboratório. A mesa ainda se movia. O eletromagnetismo, como explicação, estava descartado.

Em 1853, Faraday conduziu um experimento engenhoso. Ele colocou rolos de vidro entre duas pequenas tábuas que foram atadas juntas para que a tábua superior deslizasse para a esquerda e para a direita antes que a inferior se movesse. Qualquer força lateral aplicada à placa superior seria transmitida para a inferior com certo atraso. Ele prendeu um talo de feno vertical que balançaria claramente com qualquer movimento lateral. Depois, colocou todo o aparelho em cima da mesa de madeira.

Seus voluntários começaram a sessão. Sim, a mesa ainda se movia, mas, antes que ela se movesse, o feno balançou, indicando que eram as mãos dos voluntários o que fazia a mesa se mover.

Faraday concluiu que os voluntários estavam enganando a si mesmos ao moverem as mãos sem perceber. O subconsciente era a causa dos giros da mesa. Na verdade, assim que os participantes perceberam que eram eles que estavam movendo a mesa, assim que tomaram consciência do que estavam fazendo, o feitiço foi quebrado, a magia morreu e a mesa ficou absolutamente imóvel.

Faraday comunicou suas descobertas em uma carta ao jornal Times. Declarou que os movimentos das mesas eram um fenômeno psicológico, e não sobrenatural, devido a uma “ação muscular semi-involuntária”. Faraday, como ele mesmo observou ironicamente, havia “virado a mesa contra os viradores de mesa”.

Hipnose

Faraday atribuiu ao seu contemporâneo, William Carpenter, um médico e cético científico, a teoria que explicou seus resultados experimentais.

Carpenter observou que as respostas corporais podem ser causadas automaticamente por ideias. Por exemplo, muitas pessoas salivam espontaneamente quando se imaginam chupando um limão. Carpenter explicou diversos tipos de fenômenos anômalos – como a escrita automática, a radiestesia de água, o movimento da prancheta em um tabuleiro de Ouija – em termos de um “efeito ideomotor”, onde, no ambiente social adequado, as ideias de um sujeito podem fazer com que suas mãos se movam, mas sem que ele perceba. As teorias de Carpenter contribuíram para as primeiras teorias neuropsicológicas da sugestão hipnótica.

As teorias modernas da hipnose continuam enfatizando o fato de que nossas crenças subjetivas podem afetar aquilo que percebemos ser o caso objetivamente. O processamento sensorial de baixo para cima é subdeterminado sem princípios de organização não-sensoriais de cima para baixo. Em outras palavras, o mundo empírico literalmente deixa algum “espaço de manobra” para que as ideias criem seus contorcionismos. Nesta visão, os fenômenos hipnóticos não envolvem estados de consciência incomuns ou alterados, mas são apenas exemplos particularmente dramáticos e causadores de confusão de como normalmente funcionamos no mundo.

A explicação de Faraday – de que o movimento das mesas é uma auto-hipnose induzida pelo envolvimento numa prática social compartilhada – também pode explicar o fenômeno mais antigo dos objetos animados por espíritos. Muitos povos antigos acreditavam que o cosmos é o corpo de um espírito imaterial supremo, transcendente e imanente, que anima os deuses menores que, por sua vez, animam o mundo material. O mundo inteiro já estava repleto de almas. Portanto, as estátuas dos templos não se tratariam de anomalias milagrosas, mas sim de manifestações localizadas e intensas de um princípio universal.

Se Faraday estivesse certo, então a humanidade tem enganado a si mesma durante milênios, projetando inconscientemente os seus próprios sistemas encantados de crenças para o mundo físico como uma espécie de profecia auto-realizável, um viés de confirmação ou uma hipnose em massa. As estátuas, mesas, talismãs, bolas de cristal e a fumaça que saía dos queimadores de incenso não hospedavam espíritos reais, mas nossa própria imaginação.

Faraday anotara outro sucesso para a ciência vitoriana. A assustadora epidemia poderia a partir daquele momento ser ignorada com segurança, relegada do sobrenatural ao mero entretenimento.

A lei da gravidade e a lei do valor

Poderia a ciência vitoriana também resolver o mistério da mercadoria assombrada, com sua objetividade “fantasmal” ou “fantasmagórica”?

Esta certamente era a intenção de Marx. Ele havia afirmado que o valor-trabalho era uma propriedade de uma mercadoria, mas que não podia ser encontrada nela. Também afirmara que o valor-trabalho delas poderia mudar devido a transformações na produtividade do trabalho ocorridas a centenas de quilômetros de distância. Marx, portanto, precisava dar mais explicações aos seus leitores.

Não se tratava de um tema fácil. A primeira parte de O Capital, onde Marx explica o valor, é especialmente difícil, e Marx a reformulou várias vezes. Para tentar explicar sua visão, Marx estabeleceu uma analogia com a gravidade newtoniana. Por exemplo, ele afirma que:

“[…] nas relações de troca contingentes e sempre oscilantes de seus produtos, o tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção se impõe com a força de uma lei natural reguladora, assim como a lei da gravidade se impõe quando uma casa desaba sobre a cabeça de alguém. A determinação da grandeza de valor por meio do tempo de trabalho é, portanto, um segredo que se esconde sob os movimentos manifestos [aparentes flutuações] dos valores relativos das mercadorias.” (O Capital, Volume I, pág. 150)

A lei do valor é como a lei da gravidade. Um pássaro voa e uma prateleira permanece em pé, mas a gravidade está sempre agindo nos bastidores, então eventualmente o pássaro cairá e os livros tombarão. De maneira semelhante, os preços podem desviar-se significativamente dos seus valores-trabalho subjacentes, mas isto não pode persistir por muito tempo porque os reais custos de produção materiais eventualmente acabam por se impor no mercado, muitas vezes sob a forma de uma crise súbita.

Marx também compara o valor[-trabalho] à massa:

“Como valores[-trabalho], todas as mercadorias são apenas medidas determinadas de tempo de trabalho cristalizado.” (O Capital, Volume I, pág. 117)

Além disso, Marx também traça uma analogia entre proporções de troca e o peso. Por exemplo, 100 pães podem pesar o mesmo que 1 kg de ferro porque ambos têm a mesma massa. De maneira semelhante, 40 metros de linho valem 2 casacos porque ambos têm o mesmo valor-trabalho. Depois de apresentar essa argumentação, Marx comenta:

“Mas aqui acaba a analogia. Na expressão do peso do pão de açúcar, o ferro representa uma propriedade natural comum a ambos os corpos, seu peso, ao passo que o casaco representa, na expressão de valor do linho, uma propriedade supernatural [não-natural]: seu valor, algo puramente social” (O Capital, Volume I, pág. 133)

Propriedades de campo

Marx não prosseguiu com sua analogia, mas nós podemos aprofundá-la.

Um objeto com massa tem peso em virtude do campo gravitacional local no qual ele está localizado. Se mudarmos o campo circundante, transportando o objeto para a lua, então a mesma massa terá um peso diferente. O peso não pode ser encontrado no objeto – não importa quão atentamente o examinemos – porque o peso é uma força que atua sobre a massa. Mesmo que não consigamos encontrar o peso na massa, ainda assim o peso é uma propriedade dela.

Uma massa realmente “tem” um peso? Nós dizemos que ela tem, embora isso não seja totalmente exato, porque o “peso” é na verdade uma relação entre uma massa, um campo gravitacional local e a lei da atração gravitacional.

Portanto, temos uma propriedade de um objeto que não é uma propriedade do objeto em si. Esse tipo de propriedade é chamado de “propriedade de campo”.

Foi Faraday quem, em 1849, cunhou pela primeira vez o termo “campo” para explicar os resultados dos seus experimentos com magnetismo e eletricidade. Por exemplo, Faraday colocou uma folha de papel revestida com uma fina camada de cera derretida sobre uma barra magnética e depois salpicou suavemente a cera com limalha de ferro. A força magnética alinhou as limalhas para revelar as linhas de força invisíveis. Ele deixou a cera esfriar para produzir uma imagem congelada do campo magnético.

Outro exemplo: Faraday construiu um capacitor esférico feito de duas esferas de latão, uma colocada dentro da outra. Ele induziu uma carga positiva na esfera externa ao carregar sua esfera interna com uma corrente elétrica. Ele então mediu a força eletrostática no espaço entre as esferas, o que demonstrou a existência de um campo elétrico invisível que se estendia para além do próprio metal.

Assim como uma massa num campo gravitacional está sujeita a uma força chamada peso, um metal num campo magnético está sujeito a uma força magnética, e uma partícula carregada num campo de eletricidade está sujeita a uma força electrostática. A física moderna leva essas ideias de campos muito mais longe.

O antigo filósofo grego Tales propôs “que todas as coisas estão cheias de deuses” (ou espíritos) após observar o poder dos ímãs para mover o ferro e o poder do âmbar de pegar a palha, quando esfregado com pêlos de animal. Esses espíritos animavam a matéria passiva. As descobertas de Faraday explicaram o mesmo fenômeno, não com espíritos antropomórficos, mas com campos invisíveis.

“Condições de produção” = campo tecnológico

Faraday exorcizou os espíritos das estátuas, mesas e também dos fenômenos eletromagnéticos. Será que Faraday também poderia ajudar a exorcizar a objetividade fantasmagórica dos valores de Marx? Sem dúvida ele poderia ter feito isso, se alguma vez tivesse ocorrido um encontro casual num pub londrino, porque Marx – ao fazer analogias com a massa, o peso e a lei da gravidade – já andava flertando com o conceito de um campo.

Portanto, vamos completar esse exorcismo.

Tipicamente, um campo associa uma quantidade a cada ponto de um espaço físico. Só que esse “espaço” não precisa ser espacial. Considere o estado da tecnologia no mundo agora, neste momento; e pense na enorme variedade de métodos que empregamos para produzir a enorme variedade de bens e serviços que consumimos. Agora, imaginemos este estado de coisas na economia como sendo uma vasta rede de insumos-produtos, com nós que representam tipos de mercadorias e setas direcionadas (que conectam um nó a outro nó) para representar o fato de que um tipo de mercadoria é usada quando se produz outra.

Matematicamente, esta rede representa um espaço-de-mercadorias interconectado. Cada nó não é um ponto no espaço físico, mas um “ponto” no espaço-de-mercadorias. Podemos associar um vetor (que é simplesmente uma lista de números) a cada ponto no espaço-das-mercadorias.

Por exemplo, considere o nó denominado “mesa pequena de madeira com três pernas”. Digamos que o primeiro número associado a este “ponto no espaço das mercadorias” seja o tempo de trabalho médio fornecido diretamente para se produzir este tipo de mesa. Digamos que esse tempo seja de duas horas porque, calculada a média de todos os diferentes métodos concretos de produção deste tipo de mesa, são necessárias duas horas para transformar a matéria-prima no artigo finalizado. Digamos que o segundo número seja a quantidade média de madeira consumida diretamente, e que essa quantidade é de 3 metros quadrados e meio de madeira. E digamos que o terceiro número é a quantidade média de cola, e que o quarto número é a quantidade de pinos de metal e assim por diante. Agora repetimos este exercício para todas as mercadorias no mundo inteiro.

Esta enorme rede é o que Marx chama consistentemente de “condições de produção”. Trata-se de um campo social, não um campo físico. Chamaremos essa rede de “campo tecnológico”.

Para começar, vamos assumir que o campo tecnológico é estático. Mas é claro que ele muda: nós e setas aparecem e desaparecem da existência a cada nascimento ou morte de um tipo de mercadoria ou a cada mudança nos métodos de produção. No entanto, assim como os físicos consideram os campos como sendo estáticos antes de poder fazer generalizações para campos dinâmicos, nós também o faremos.

O valor como uma propriedade de campo

Agora vamos considerar uma mesa de madeira com três pernas que acabou de ser produzida, pronta para ser enviada para um armazém. Qual é o seu valor-trabalho?

Comecemos pelo nó representando a mesa no campo tecnológico e adicionemos ao tempo total o tempo de trabalho direto usado para produzi-la. Em seguida, sigamos no sentido contrário, considerando todas as setas de entrada neste nó. Por exemplo, rastreamos os 3 metros quadrados e meio de tábua de madeira de volta ao seu nó e adicionamos ao nosso tempo total o tempo de trabalho direto utilizado para produzir esta quantidade de madeira. Fazemos o mesmo com a cola, os pinos de metal e assim por diante, sempre adicionando ao nosso tempo total.

Mas nós não paramos por aí. Precisamos considerar os produtos indiretamente utilizados para se produzir a madeira, a cola, os pinos, e assim por diante. Recursivamente, nós rastreamos em sentido contrário todas as setas de entrada chegando nesses nós no campo tecnológico, adicionando cada tempo de trabalho direto ao nosso tempo total à medida em que avançamos. Eventualmente, este processo realizará uma trajetória assíntota até chegar a um valor definido e finito, que representa o tempo total de trabalho direto e indireto utilizado para produzir este tipo de mesa. Este é o seu valor-trabalho.

Isso significa, muito simplesmente, que um valor-trabalho é uma propriedade de campo.

O valor-trabalho representa aquilo que Marx chama, seguindo o socialista ricardiano  Thomas Hodgskin, de total de “trabalho coexistente” fornecido para produzir a mesa – e por coexistente ele quer dizer todo o trabalho fornecido, em todos os diferentes ramos de produção, que produzem cooperativamente a mesa e todos os insumos diretos e indiretos necessários. Um valor-trabalho é uma fração da jornada de trabalho social. Em Economia, o procedimento que acabamos de descrever é conhecido como “integração vertical”, e calculamos os valores-trabalho por meio da inversão das matrizes que representam as condições de produção.

Agora, em eletrostática, a energia potencial de uma partícula carregada num campo é o trabalho que precisaria ser realizado para movê-la de uma distância infinita até a sua localização atual no campo. O valor-trabalho de uma mercadoria num campo tecnológico é o trabalho que precisaria ser feito para produzi-la do zero. Os valores-trabalho e a energia potencial são, portanto, bem semelhantes. Ambas são propriedades instantâneas de “objetos” em um “campo” que possuem representações matemáticas em termos de integrais ou somatórios no interior dos campos.

E é por isso que Marx estava inspirado quando traçou sua analogia com a gravidade. Uma mercadoria tem um valor-trabalho em virtude do campo tecnológico no qual ela está inserida. Um valor-trabalho não pode ser encontrado na mercadoria – por mais atentamente que a examinemos – porque o valor-trabalho é uma propriedade de campo.

Assim como um campo elétrico governa o movimento de uma partícula carregada devido às leis da eletrostática, e um campo gravitacional governa o movimento de massas devido às leis da gravidade, um campo tecnológico governa a trajetória do preço de mercado de uma mercadoria devido à lei do valor. Em todos os casos, uma propriedade de campo subjacente manifesta-se como o movimento potencial ou real das coisas que estão sob sua influência. É o princípio oculto do movimento e da animação.

Então, será que uma mercadoria realmente “tem” um valor-trabalho? Sim, mas temos que esclarecer o que queremos dizer com isso.

Um valor-trabalho é uma relação entre um tipo de mercadoria, um campo tecnológico local e a lei do valor. Uma mercadoria realmente é “tempo de trabalho cristalizado”, porque é uma riqueza material que, se destruída, requer uma quantidade definida de tempo de trabalho para ser recriada, uma quantidade que depende do campo tecnológico no qual a mercadoria está inserida. A destruição da mercadoria é idêntica à destruição do seu valor. Mas esse valor nunca esteve “na” mercadoria.

Um valor-trabalho não está literalmente incorporado numa mercadoria, como o vinho dentro de uma garrafa. Ele é mais como um gênio em uma garrafa, exceto que o gênio não é um espírito real. É uma propriedade oculta e tipicamente invisível das nossas próprias práticas sociais que se manifesta, de forma distorcida e fetichizada, como valores de troca no mercado.

“Ação fantasmagórica à distância”

O conceito de campo de Faraday também ajuda a exorcizar aquelas interpretações da teoria de Marx que enxergam nela uma assustadora ação à distância.

Mais uma vez, voltemos à mesa de madeira, que agora está guardada num armazém, sem ser vendida, há mais de um ano. Nesse ínterim, o campo tecnológico mudou. O mundo agora emprega técnicas mais eficientes para fabricar essas mesas. Como resultado, o valor-trabalho da mesa diminuiu.

O valor-trabalho da mesa armazenada no galpão altera-se imediatamente com cada mudança no campo tecnológico, sem necessidade de qualquer processo causal ou meio de transmissão, pela simples razão de que o seu valor-trabalho é uma propriedade de campo. Nada acontece no corpo material da mercadoria, a mudança real ocorre no campo tecnológico – mas tais mudanças no campo começam imediatamente a ter consequências causais.

Uma mudança no campo tecnológico modifica o estado atrator da lei do valor. Os mercados começam a convergir na direção do novo atrator. Os preços das mesas não vendidas, e das mesas recentemente produzidas do mesmo tipo começam a diminuir em relação a outras mercadorias – porque agora é necessário menos tempo de trabalho da sociedade para produzí-las. Se a demanda por tais mesas permanecer constante, então uma proporção do dia de trabalho da sociedade acabará sendo realocada para outras atividades.

A mudança no valor-trabalho de uma mercadoria já produzida não exige uma “ação fantasmagórica à distância” mais do que a mudança na condição de uma pessoa de casada para divorciada devido a um ato jurídico ocorrido a muitas centenas de quilômetros de distância. Em ambos os casos, todas as consequências causais não se manifestam de imediato.

Os valores-trabalho têm uma objetividade fantasmagórica, não porque sejam construções puramente sociais, “insubstanciais” ou inefáveis, mas porque são propriedades ocultas da totalidade das nossas condições objetivas de produção que, na vida cotidiana, só se manifestam aos nossos sentidos. na forma distorcida e misteriosa dos valores de troca.

Espíritos modernos

O ceticismo vitoriano, especialmente as contribuições de Faraday, revelou que os objetos possuídos por almas são criações das nossas próprias mentes. Em 1888, as irmãs Fox admitiram que suas danças de mesa eram uma farsa. O poder oculto que fez as mesas atravessassem dois continentes chacoalhando e batendo no chão tinha origem humana, não sobrenatural. A invocação de espíritos era ou uma mentira consciente para enganar os outros ou uma mentira inconsciente para enganar a si mesmo. Os antigos encantamentos estavam morrendo.

Contudo, o ceticismo vitoriano não se estendeu à forma-valor. Como Marx observou sobre o mundo religioso:

“[…] os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam relação umas com as outras e com os homens. Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A isso eu chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias […]” (O Capital, Volume I, pág. 148)

Um fetiche é um objeto inanimado que adoramos porque pensamos estar habitado por um espírito. A ciência emergente da Economia ficou totalmente encantada pelo fetiche da forma-valor, pensando nela como sendo transcendentalmente real, em vez de uma criação imanente da nossa própria atividade social. Como escreveu Marx:

“É verdade que a economia política analisou, mesmo que incompletamente, o valor e a grandeza de valor e revelou o conteúdo que se esconde nessas formas. Mas ela jamais sequer colocou a seguinte questão: por que esse conteúdo assume aquela forma, e por que, portanto, o trabalho se representa no valor e a medida do trabalho, por meio de sua duração temporal, na grandeza de valor do produto do trabalho? Tais formas, em cuja testa está escrito que elas pertencem a uma formação social em que o processo de produção domina os homens, e não os homens o processo de produção, são consideradas por sua consciência burguesa como uma necessidade natural tão evidente quanto o próprio trabalho produtivo. Por essa razão, as formas pré-burguesas do organismo social de produção são tratadas por ela mais ou menos do modo como as religiões pré-cristãs foram tratadas pelos Padres da Igreja.” (O Capital, Volume I, págs. 154-156)

Nós herdamos esta arrogância burguesa da racionalidade científica e comercial que se considera livre de toda superstição. Ainda assim, o capitalismo possui o seu próprio encantamento mais tenebroso. Diariamente nós realizamos um ritual em massa que insufla um espírito a cada objeto e atividade no mundo, uma propriedade chamada valor econômico. O movimento desses números, fora do nosso controle consciente, governa nossas vidas tanto quanto faziam os antigos deuses. Ainda não estamos livres dos espíritos, permanecemos assombrados por eles.

Meus avós eram cheios de histórias de fantasmas. Eles sempre acreditaram que havia mais na realidade do que o aparente aos olhos. Mesmo assim, meu avô nunca confiou na mesa cigana.

Na verdade, o seu primeiro ato, depois de se recuperar da morte da minha avó, foi levar um machado até a mesa, cortá-la em pedaços e queimá-la. Na época, fiquei chocado com o ato e com a crença no sobrenatural que o motivava.

Agora estou mais velho e menos julgador. Meu avô só queria se ver livre dos espíritos que assombravam sua casa.

Para aprofundar a leitura

O Capital, Volume I. Karl Marx, 1867. (Boitempo, São Paulo, 2013)

O Capital, Volume III. Karl Marx, 1894. (Boitempo, São Paulo, 2017)

Faraday, The Life. James Hamilton, Harper Collins, 2002

Substance or Field, a note on Mirowski, Ch.6 of “The Law of Value”. Ian Wright, PhD thesis, 2015.

Sobre os autores

Ian Wright

é um dos principais pesquisadores atuais de modelos matemáticos de equilíbrio estatístico, da teoria do valor em Marx e de suas implicações e interpretações materialmente sombrias e arcanas. Publica regularmente no seu blog Dark Marxism.

Cierre

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Published in Análise, Economia, História and Religião

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