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Piquete fora do laboratório de fotoprocessamento Grunwick em Willesden, Londres, 14 de junho de 1977. (Evening Standard / Getty Images)

Para combater o racismo, a esquerda precisa retomar sua tradição universalista

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Tradução
Pedro Silva

Conversamos com o escritor Kenan Malik, autor do livro Not So Black and White, que reflete sobre a relação entre a questão racial e a luta de classes hoje, associando a ascensão da política identitária com o declínio do movimento operário e do universalismo.

UMA ENTREVISTA DE

Taj Ali

Os leitores talvez conheçam melhor Kenan Malik por sua coluna semanal no Observer, onde discute tudo, desde migração até religião e tecnologia. Contudo, sua formação está longe das páginas da mídia liberal.

Nascido na Índia e criado em Manchester, Malik esteve intensamente envolvido nas campanhas políticas da década de 1980. Quer tenha lutado contra as deportações, organizado patrulhas de rua contra a violência racista ou participado nas campanhas de Newham 7 e Colin Roach, sua introdução à política veio da linha de frente. Durante grande parte da década ele esteve ativo em uma série de organizações marxistas e revolucionárias.

Hoje é mais conhecido, no entanto, como um defensor da liberdade de expressão e do secularismo, e um crítico do multiculturalismo e das políticas de identidade contemporâneas. Seu último livro, Not So Black and White: A History of Race from White Supremacy to Identity Politics (Não tão Preto e Branco: Uma História da Raça da Supremacia Branca às Políticas Identitárias, em tradução livre), reflete sobre a questão racial e a sua relação com a luta de classes hoje, associando a ascensão da política de identidade com o declínio do movimento operário e do universalismo.

Taj Ali conversou com Kenan Malik para explorar esta história – e as mudanças políticas sísmicas que ela provocou.


TA

Você pode nos contar mais sobre sua formação e como isso moldou sua visão política?

KM

Cresci numa Grã-Bretanha muito diferente de hoje, nos anos 70 e 80. O racismo era cruel e visceral e estava entrelaçado na estrutura da sociedade de uma forma que é difícil imaginar agora. O “Paki-bashing” – ataques violentos organizados contra a comunidade paquistanesa, mas também contra imigrantes de outras nacionalidades, uma vez que “Paki” era um termo pejorativo direcionado também a indianos e pessoas provenientes de outros países da Ásia Meridional e do Oriente Médio -, era o esporte nacional.

Não me lembro de voltar da escola sem ter brigado. Eu frequentei uma escola predominantemente branca. Esfaqueamentos eram comuns; bombardeios incendiários – eram eventos quase rotineiros. Se recorresse à polícia, era mais provável que fosse preso do que o racista. Foi um momento extraordinariamente difícil. Essa experiência me levou a militar politicamente contra a brutalidade policial e as deportações racistas na década de 1980.

Ao mesmo tempo, afirmo com frequência que, se foi o racismo que me atraiu para a política, foi a política que me fez ver além dos limites do racismo. A justiça social envolve mais do que desafiar a injustiça feita contra mim. A cor da pele, a etnia ou a cultura de uma pessoa não fornecem nenhum guia para a veracidade ou validade de suas crenças políticas. Através dessas campanhas, descobri os escritos de Karl Marx, John Stuart MillThomas Paine, James BaldwinRosa Luxemburgo, C. L. R. James e Frantz Fanon.

TA

Meu pai cresceu em Luton na mesma época. Muitas das estradas pelas quais ando hoje eram zonas proibidas para pessoas como ele devido à ameaça de violência racista. Essa experiência moldou enormemente sua compreensão do mundo. Quando entrevisto antigos membros dos Asian Youth Movements e da Indian Worker’s Association, fica claro que a raça era central na análise política deles.

KM

Essas campanhas estavam enraizadas tanto na classe quanto na raça. Eles se viam como parte de uma luta mais ampla da classe trabalhadora. A Indian Worker’s Association foi fundada na década de 1930 para dar voz aos trabalhadores migrantes, mas estava intimamente ligada às lutas da classe trabalhadora na Grã-Bretanha. Os Asian Youth Movements surgiram no final da década de 1970, ao mesmo tempo que as Irmãs Negras de Southall, os Panteras Negras e o Coletivo Race Today. Havia também organizações mais amplas, como a Liga Anti-Nazi e o Rock Contra o Racismo.

Essas campanhas estavam enraizadas tanto na classe quanto na raça. Eles se viam como parte de uma luta mais ampla da classe trabalhadora.

Quando os movimentos juvenis asiáticos se autodenominaram asiáticos, não foi para se distinguirem dos afro-caribenhos, mas para assinalar uma ruptura consciente com as formas sectárias de política subcontinental. A maioria de nós se considerava negra, porque negro era um rótulo político, não étnico. Estávamos tentando forjar uma identidade mais inclusiva. Muitos hoje adotam um ponto de vista mais restrito e identitário.

TA

A noção de negritude política é hoje altamente contestada e, com algumas exceções notáveis, assim como o movimento sindical, desapareceu em grande parte como conceito. Mais recentemente, o termo BAME (sigla em inglês para “negros, asiáticos e minoria étnica”) como termo genérico para pessoas de cor também foi contestado. Parece que estamos vivendo em uma época muito diferente.

KM

De certa forma, tudo mudou muito rapidamente. Se olharmos para as lutas antirracistas do início da década de 1980, elas foram essencialmente políticas. Campanhas contra as deportações, contra os ataques racistas, contra a brutalidade policial, pela igualdade de remuneração no local de trabalho. Na década de 1990, grande parte da luta era cultural. O caso Salman Rushdie foi extremamente importante como um divisor de águas tanto na minha vida como na política britânica. Ele resumiu essa mudança do político para o cultural. Não existia comunidade muçulmana no início da década de 1980. No final da década, o caso Rushdie revelou até certo ponto que um sentido mais restrito da identidade muçulmana tinha se consolidado.

TA

Nessas lutas da década de 1970, existia uma grande solidariedade entre diferentes comunidades minoritárias, independentemente da cor da pele. Alguns atribuem o declínio das coligações amplas ao papel do Estado na divisão das comunidades, que muitas vezes se enfrentavam quando se tratava de competir por financiamento.

KM

A ascensão do que se poderia chamar de socialismo municipal no GLC (sigla em inglês para “Conselho da Grande Londres”) e a cooptação de grupos antirracistas independentes pelo estado local desempenharam um papel importante. O GLC viu o combate ao racismo mais como uma celebração das diferenças étnicas e culturais. Isso se tornou parte de uma abordagem mais fragmentada. O antigo ethos universal da esquerda começou a erodir. As pessoas começaram a definir-se por identidades mais restritas e paroquiais. O negro tornou-se um rótulo étnico, em oposição a um rótulo político. E assim por diante. É preciso explicar e compreender essa mudança para explicar a ascensão de vertentes identitárias mais fragmentadas dentro dos movimentos antirracistas e da esquerda hoje.

TA

Você esteve envolvido em muitos grupos de esquerda há décadas. O que o atraiu para essas organizações?

KM

Estive envolvido em muitas organizações de extrema esquerda na década de 1980 – o Partido Socialista dos Trabalhadores (SWP), o Partido Comunista Revolucionário (RCP), o Big Flame. Acho que eles me deram uma estrutura materialista e progressista através da qual pude compreender minha raiva e frustração. Essa estrutura permaneceu comigo muito depois de ter deixado essas organizações, tal como o reconhecimento da importância do universalismo na luta da classe trabalhadora.

TA

Seu livro mais recente é altamente crítico com relação à política de identidade contemporânea e a contrasta com a luta de classes. Você pode explicar algumas dessas críticas?

KM

Se voltarmos aos anos 70 e 80, o movimento operário estava profundamente imbuído de racismo. Muitas greves lideradas por migrantes de primeira geração, como a Courtaulds Red Scar Mill [1965] e a Imperial Typewriters [1974], não foram apoiadas. Os grevistas negros e asiáticos muitas vezes tiveram de confrontar os sindicatos tanto quanto tiveram de confrontar os patrões.

A política de identidade emerge do aumento do pessimismo social e de um mundo em que a classe se tornou menos importante e a luta de classes e a política menos plausíveis aos olhos da maioria das pessoas.

“A política de identidade emerge do aumento do pessimismo social e de um mundo em que a classe se tornou menos importante e a luta de classes e a política menos plausíveis aos olhos da maioria das pessoas.”

É claro que houve outras greves, como a de Grunwick em 1976, que mostraram as possibilidades de solidariedade. Ela ocorreu numa fábrica de processamento de fotografias no noroeste de Londres, onde os trabalhadores entraram em greve devido às péssimas condições [de trabalho], à proibição de sindicatos e à intimidação racista. Receberam enorme apoio de outros trabalhadores, como mineiros, eletricistas, construtores e motoristas de ônibus. Eles fizeram um piquete em massa onde houve um protesto de vinte mil pessoas em um dos dias.

Portanto, o racismo em torno do movimento operário não foi simples. Havia aspectos de racismo percorrendo os sindicatos [bem como] aspectos de sólida solidariedade inter-racial. Uma das coisas interessantes para mim hoje é que o antigo racismo flagrante dentro do movimento trabalhista desapareceu em grande parte, mas foi substituído pela fragmentação e pelo identitarismo.

As minorias são vistas como pertencentes a comunidades unificadas e quase sem classes, enquanto a classe é uma categoria largamente reservada à população branca. O movimento operário tornou-se menos racista, mas também vivemos numa sociedade que está menos disposta ou menos capaz de reconhecer as minorias como parte integrante da classe trabalhadora.

TA

Você discute o declínio da solidariedade de classe inter-racial em seu livro, com referência particular aos Estados Unidos. Mas consegue perceber porque é que um negro americano que cresce hoje – que compreende a história da escravatura, testemunha a brutalidade policial e talvez venha de uma comunidade segregada – pode ter dificuldade em transcender uma compreensão do mundo centrada principalmente na raça?

KM

Historicamente, tem havido muitas vertentes nas lutas afro-americanas que procuraram transcender a raça. Com pontos de vista mais identitários agora, muitas vezes nos vemos em termos da nossa identidade étnica ou cultural, em vez de compreendermos que podemos ter algo em comum como pessoas da classe trabalhadora. Quando olhamos para o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, muitas vezes olhamos apenas em termos dos anos do pós-guerra. O que chamamos de movimento pelos direitos civis ressuscitou na década de 1950. Mas há uma história muito mais longa para o movimento pelos direitos civis, e há um período de luta na América que é frequentemente esquecido, que é o período entre guerras que lançou as bases para o movimento pelos direitos civis do pós-guerra.

O que muitos chamam agora de sindicalismo pelos direitos civis ligou a luta dos negros pela igualdade com a luta dos trabalhadores – negros e brancos – por salários, condições, habitação adequados, e assim por diante. Muito disso (embora não tudo) foi perdido na era do pós-guerra, quando o movimento pelos direitos civis ressurgiu na década de 1950, em parte devido à Guerra Fria. Os radicais nos sindicatos, no Partido Comunista e, mais amplamente, na esquerda, foram condenados ao ostracismo e marginalizados. Em essência, o econômico e o político ficaram afastados um do outro.

“O que muitos chamam agora de sindicalismo pelos direitos civis ligou a luta dos negros pela igualdade com a luta dos trabalhadores – negros e brancos – por salários, condições, habitação adequados, e assim por diante.”

Isso ficou mais claro no mundo pós-década de 1980, onde o neoliberalismo aceitava muito mais a igualdade política do que a igualdade econômica. O racismo ainda existe, a discriminação contra as mulheres ainda existe, mas, no entanto, existe uma espécie de aceitação moral da igualdade a esse nível, de uma forma que não existe em relação à igualdade econômica.

TA

Muitas vezes, quando você critica a política de identidade, você é rotulado de reduzir tudo à classe. A política de identidade pode ser vista como divisionista, mas quer se trate de racismo, sexismo ou homofobia, não é mais fácil desconsiderar a importância da identidade se você mesmo não for afetado negativamente pela discriminação?

KM

A ideia de que apontar a importância da classe nas nossas lutas faz de alguém um reducionista de classe é preguiçosa. As minorias são predominantemente da classe trabalhadora, e não ver as suas lutas através das lentes da classe é negar a experiência e as necessidades provavelmente da maioria dos negros e asiáticos neste país.

Black Lives Matter, por exemplo, nas suas próprias palavras, vê-se como parte de uma família negra global. Mas a família negra global não é uma categoria mais útil do que a Ummah Muçulmana global ou a afirmação de que todos os hindus têm um conjunto comum de interesses. É uma unidade inventada que serve em grande parte para obscurecer as divisões dentro das comunidades e torna mais difícil a criação de solidariedade através das linhas raciais.

Uma das histórias que conto no livro é sobre uma greve dos trabalhadores do saneamento em Nova Orleans. Em Maio de 2020, os trabalhadores do saneamento entraram em greve devido à pobreza, aos baixos salários e à falta de equipamento de segurança durante a pandemia da COVID, bem como à recusa em reconhecer o sindicato. Quase todos os trabalhadores eram negros, assim como os empregadores. 

Como parte da sua campanha antirracista, Nova Orleans terceirizou o seu trabalho de saneamento a uma empresa de propriedade de negros. Os trabalhadores do saneamento entraram em greve três semanas antes de George Floyd ser assassinado em Minneapolis. Permaneceram então em greve durante todo aquele verão, e a onda de protestos que varreu os Estados Unidos e o mundo trouxe o racismo e a vida dos negros para o primeiro plano da consciência global.

Mas Black Lives Matter significava algo muito diferente nos dois lados do piquete. Houve um líder sindical negro que disse na ocasião que a exploração negra não termina porque a empresa é propriedade de negros. E apesar de esse ano ser o ano do Black Lives Matter, os trabalhadores negros do saneamento foram forçados a voltar ao trabalho em setembro, não tendo vencido praticamente nenhuma das reivindicações. Os empregadores negros venceram; os trabalhadores negros perderam. A ideia de que existe uma identidade comum apenas reforça o poder das elites negras e diminui as vozes dos trabalhadores negros. É uma forma preguiçosa de olhar o mundo, que é muito útil para as minorias de classe média, mas presta um péssimo serviço à maioria das minorias que, frequentemente, pertencem à classe trabalhadora.

TA

Na minha própria comunidade, os proprietários paquistaneses exploram frequentemente inquilinos paquistaneses vulneráveis. Em Leicester, os proprietários de fábricas indianas exploraram os trabalhadores indianos do vestuário. Poderíamos argumentar que a ascensão da classe média negra e asiática no Reino Unido e na América tornou a classe mais importante do que nunca.

KM

Durante a vigência das Leis Jim Crow nos Estados Unidos, existiam divisões de classe entre os negros americanos, mas eram bastante fracas. Hoje, elas estão mais fortes. Tudo, desde a forma como a polícia trata as pessoas até às taxas de encarceramento, é tão dividido por classe como por raça. Os negros americanos são desproporcionalmente mortos pela polícia, algo entre duas a três vezes o número dos brancos. 

Mas, paradoxalmente, esta não é apenas uma questão racial. Isso porque o melhor indicador da brutalidade policial não é a raça, mas o nível de renda. Se olharmos para as áreas pobres, é mais provável que vejamos pessoas [lá] sofrerem brutalidade policial e assassinatos do que [nas] áreas mais ricas. 

O racismo garantiu que os afro-americanos fossem desproporcionalmente da classe trabalhadora e pobres. A desproporcionalidade nos assassinatos cometidos por policiais vem em grande parte disso. Mais de 50% das pessoas mortas pela polícia são brancas e a maioria delas pertence à classe trabalhadora.

“Durante a vigência das Leis Jim Crow nos Estados Unidos, existiam divisões de classe entre os negros americanos, mas eram bastante fracas. Hoje, elas estão mais fortes.”

Se você considerar as taxas de encarceramento e observar cada nível de renda, as taxas de encarceramento de negros e brancos não são tão diferentes. Mas existem enormes diferenças entre níveis de rendimento; e, como seria de esperar, porque os negros americanos são desproporcionalmente da classe trabalhadora, mais uma vez enfrentam níveis desproporcionais de encarceramento. Se você é rico e negro, é muito menos provável que seja morto ou encarcerado do que se for pobre e branco. Isso não é reducionismo de classe; isso é reconhecer a complexidade do mundo.

TA

No livro, você destaca o declínio do movimento trabalhista e as consequências que isso teve. O que você acha do renascimento dos sindicatos na Grã-Bretanha no ano passado, com a histórica onda de greves ?

KM

A retomada da atividade sindical é boa, mas para ser honesto, [a ação grevista é] relativamente pequena em comparação com a década de 1970. A vontade dos trabalhadores de entrar em greve é ​​maior que a cinco anos atrás. Mas comparado com os últimos trinta e cinco anos, não é. Não devemos superestimar ou exagerar a mudança. 

Acho que é um movimento bem-vindo, e o apoio às greves também. Porém, o que defendo no livro é que perdemos algo mais profundo, a tradição universalista radical. A tradição que vê um conjunto comum de valores e crenças que são importantes para as pessoas de todas as linhas raciais, culturais e étnicas. 

Essa tradição foi corroída. O aumento da atividade sindical não é em si um meio de transformar os nossos movimentos. O que necessitamos é de um objetivo político consciente para criar tal movimento em torno de perspectivas universalistas.

Acreditar na transformação social é ser otimista. Tem que haver um elemento de utopismo. Vivo na esperança de que possamos criar esse movimento novamente.

Sobre os autores

Kenan Malik

é um escritor, palestrante e radialista britânico. É colunista do Observer e escreveu vários livros explorando ideias sobre raça, classe e identidade.

é um escritor freelance. Seu trabalho é publicado no Huffington Post, Metro e no Independent.

Cierre

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Published in Entrevista, Europa, Ideologia, Política and Teoria

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