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O que torna único o argumento de Paul Lafargue a favor do lazer é que ele apoia sem remorso a ociosidade hedonista. (Coleção Jim Heimann / Getty Images)

Se você se preocupa com a liberdade, você deve rejeitar a ética capitalista

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Tradução
Pedro Silva

A ética de trabalho capitalista insiste que temos que manter a cabeça baixa trabalhando incessantemente, mesmo que o nosso trampo seja degradante. Já os socialistas querem libertar os trabalhadores do trabalho penoso para que possamos desenvolver todo o nosso potencial humano para simplesmente desfrutar a única vida que temos.

Resenha do livro O direito à preguiça, de Paul Lafargue (Veneta, 2022).


Britney Spears disse uma vez: “You gotta work, bitch”, e como sempre acontece, a camarada Spears estava certíssima. Poucas qualidades são tão elogiadas no capitalismo como o trabalho árduo. Conservadores como Dinesh D’Souza nos dizem que o socialismo, mesmo que funcione, criará uma sociedade de preguiçosos à procura de esmolas. Os defensores da meritocracia insistem que as pessoas que estão no topo conquistaram o seu status através de coragem e disposição, apesar das provas contundentes sobre o papel que a sorte e os privilégios desempenham na determinação dos resultados da vida. Outros classificam o trabalho árduo em termos explicitamente religiosos – “um dever para com Deus”, como disse um escritor conservador.

No entanto, apesar de passarmos grande parte da nossa vida trabalhando, a maioria de nós considera o nosso trabalho uma fonte de infelicidade e não de realização. Os salários reais diminuíram nas últimas décadas e os ataques aos sindicatos permitiram que os patrões ficassem livres para agirem como tiranos privados, controlando o nosso comportamento mesmo depois de batermos o ponto e irmos embora.

É fácil esquecer, apesar do que lhe digam os autoproclamados defensores da civilização ocidental, que o ócio já foi sinônimo de boa vida. Para os antigos gregos, era oferecido aos cidadãos tempo para passarem com a família, exercerem atividades artísticas e filosóficas de alto nível e participarem na governança da cidade. É claro que isto se devia, em parte, ao fato de a Grécia antiga ser uma sociedade escravista, onde os cidadãos gregos livres – não escravos – eram aliviados de muitos encargos do trabalho manual. E mesmo em sociedades não escravistas, durante muitos séculos a escassez absoluta forçou os humanos a passarem a maior parte das suas vidas numa terrível luta contra a necessidade natural.

Isso começou a mudar com o advento do capitalismo, que estimulou um crescimento econômico sem precedentes. No século XIX, à medida que o desenvolvimento tecnológico dos meios de produção avançava rapidamente, os socialistas e o movimento operário em geral argumentavam que todos deveriam ter direito ao tempo de lazer, seja para desenvolver as suas capacidades mais refinadas ou simplesmente para relaxar e desfrutar a única vida que nós temos.

Marxismo e perfectibilidade humana

Talvez o socialista mais famoso a defender o “direito à preguiça” tenha sido Paul Lafargue, cujo panfleto de 1883 com esse título foi relançado numa esplêndida nova edição pela New York Review of Books. Lafargue, um emigrado cubano-haitiano, nasceu em 1842 e casou-se com a segunda filha de Karl Marx, Laura, no final da década de 1860. Ele se dedicou a dar continuidade ao legado socialista do sogro.

Ironicamente, Marx desconfiava da política de Lafargue, chegando ao ponto de declarar que se Lafargue era marxista, então o próprio Marx não era. Pouco antes de sua morte, Marx criticou Lafargue por sua “falação revolucionária”.

Mas o sogro e o genro concordaram quanto ao valor do tempo de lazer. Marx foi um fervoroso defensor da redução da jornada de trabalho – isto numa época em que eram comuns jornadas de doze a catorze horas, seis dias por semana – tanto porque ajudou a construir a luta de classes, como melhorou imediatamente a vida dos trabalhadores. Marx queria que os trabalhadores tivessem tempo para desenvolver a totalidade de suas personalidades. Em A Ideologia Alemã (1846), ele e Engels expressaram isso de maneira um tanto jocosa, como aprender a “caçar de manhã, pescar à tarde, criar gado à noite, fazer análises críticas depois do jantar, exatamente como penso, sem nunca me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico.”

De forma mais séria, décadas mais tarde, Marx criticou o capitalismo por desperdiçar o potencial humano, uma vez que milhões de pessoas não tinham tempo e recursos para se desenvolverem. Sob o socialismo, pela primeira vez, o “desenvolvimento dos poderes humanos” se tornaria “um fim em si mesmo”, pois “o reino da liberdade só começa realmente onde cessa o trabalho que é determinado pela necessidade e por considerações mundanas”.

Estes comentários perfeccionistas levaram os intérpretes a atribuir expectativas verdadeiramente utópicas ao socialismo. A afirmação de Leon Trotsky de que nas sociedades comunistas “o tipo humano médio ascenderá às alturas de um Aristóteles, de um Goethe ou de um Marx. E acima desta cordilheira surgirão novos picos” é apenas o exemplo mais florido.

O direito de ser preguiçoso

Lafargue não atribui expectativas tão rarefeitas aos seres humanos numa sociedade socialista. Ele simplesmente salienta que gerações de pensadores, incluindo Aristóteles, sonharam com um mundo onde a automação libertaria os seres humanos do trabalho penoso. No final do século XIX, ele escreve:

O sonho de Aristóteles é a nossa realidade. Nossas máquinas cospem fogo, têm membros de aço, nunca se cansam, nunca precisam dormir. Elas são maravilhosamente produtivas e se comportam com docilidade – mesmo quando realizam seu trabalho sagrado. E, no entanto, as mentes dos grandes filósofos capitalistas continuam a ser dominadas pelo preconceito do trabalho assalariado, o pior tipo de escravatura.

Lafargue chama a “era do trabalho” de “era da dor, a era da miséria e da corrupção”. Ele repreende homens “bem alimentados e satisfeitos consigo mesmos” que apregoam o trabalho árduo como uma cura para o “vício” e a base do “progresso”. O verdadeiro progresso, argumenta Lafargue, não é apenas um aumento na produção. Significa ter tempo livre para “saborear as alegrias da terra, fazer amor e rir, festejar e pisar em honra da alegre ociosidade de Deus”. Para passar tempo com amigos, família e até consigo mesmo.

O que torna distintivo o argumento de Lafargue em favor do lazer é que ele endossa sem remorso a ociosidade hedonista. Aos seus olhos, muitos socialistas internalizaram normas burguesas românticas sobre a importância inerente do aperfeiçoamento dos seres humanos. Quando Marx defende o tempo livre, é em parte porque pensa que ele promoverá formas mais grandiosas de individualidade.

Agora, acredito que Marx está no caminho certo: sob o socialismo, a muitos indivíduos talentosos já não seriam negadas oportunidades de florescer devido a fatores fora do seu controle. Mas Lafargue parece mais realista ao admitir que, se tivéssemos tempo livre, muitos de nós escolheríamos gastá-lo aproveitando a vida por si só.

E o que, pergunta Lafargue ousadamente, há de tão errado nisso? Por que tantos de nós sentimos uma pontada de culpa quando buscamos alegria e prazer absolutos? Por que um mundo onde a maioria das pessoas seja capaz de aproveitar a vida trabalhando menos não seria uma melhoria em relação a um mundo onde muitos de nós trabalhamos muito e ganha-se pouco por isso?

Todas estas são questões importantes num momento de debates crescentes sobre a viabilidade de semanas de trabalho de quatro dias e a conveniência de trabalhar de casa. Não concordo com tudo o que Lafargue diz, principalmente com a distinção rígida entre trabalho e lazer hedonista. Suspeito que numa sociedade socialista, se tivessem a oportunidade, a maioria das pessoas gostaria de trabalhar num emprego que considerasse significativo e útil. A diferença é que este trabalho seria mais livre do que sob o status quo capitalista punitivista porque, além de terem locais de trabalho mais democráticos, as pessoas comuns não seriam obrigadas a trabalhar simplesmente para sobreviver.

Marx e uma vida de lazer

Aparte mais comovente desta nova edição de O Direito à Preguiça não é o ensaio título. É uma pequena coleção de “Memórias de Karl Marx” de Lafargue, que proporciona uma rara visão pessoal da vida pessoal do grande pensador.

Marx era, sem dúvida, um homem imperfeito, com um temperamento aguçado e uma disposição severa não apenas para com os inimigos, mas também para com os aliados. No entanto, o retrato de Marx que Lafargue pinta é muito diferente. Ele descreve um homem de família agradável, “terno e gentil”, querido por amigos e parentes, que diz “os filhos devem educar os pais” e tem um verdadeiro senso de humor sobre si mesmo. A certa altura, Lafargue pega Marx fumando. Marx oferece uma réplica autodepreciativa: O capital, diz ele, nunca pagará por todos os charutos que fumou enquanto o escrevia.

Estes instantâneos humanizadores desmentem a caricatura conservadora de Marx como um revolucionário violento, e até suavizam o brilho socialista sério sobre ele como um intelecto histórico mundial cujas obras devem ser consultadas como se fossem textos proféticos. O que transparece na narrativa de Lafargue é um homem que trabalhou e pensou muito, mas nunca perdeu de vista as pessoas ao seu redor e a alegria que sentia em sua companhia. Que todos possamos aprender essa sabedoria em nossos momentos de lazer.

Sobre os autores

é professor visitante de política no Whitman College. Ele é o autor de "The Rise of Post-Modern Conservatism and Myth" e co-autor de "Mayhem: A Leftist Critique of Jordan Peterson".

Cierre

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Published in Análise, DESTAQUE, Livros, Resenha and Trabalho

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