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A primeira-ministra italiana Giorgia Meloni discursa para jornalistas durante a última coletiva de imprensa nacional na cúpula de alto nível da OTAN no Centro de Conferências Litexpo em Vilnius, Lituânia, em 12 de julho de 2023. (Dominika Zarzycka / NurPhoto via Getty Images)

Como Giorgia Meloni se tornou parte da “elite globalista”

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Tradução
Pedro Silva

A primeira-ministra italiana Giorgia Meloni costumava condenar os “globalistas” liberais que minavam a soberania nacional. Na semana passada, ela aceitou o prêmio Global Citizen Award do Atlantic Council, em reconhecimento ao seu papel como aliada servil de Washington.

Durante a turbulenta década de 2010, os firmes defensores das reformas neoliberais, da globalização e do livre mercado não desperdiçaram oportunidades de satirizar o crescente perigo nacionalista. Não apenas Donald Trump, mas também figuras como Viktor Orbán da Hungria, Matteo Salvini da Itália e Nigel Farage da Grã-Bretanha foram apresentados como uma ameaça existencial à ordem liberal e uma mancha nos valores consagrados pela civilização ocidental.

Em 2016, a Economist publicou uma famosa capa sobre o “novo nacionalismo” com Vladimir Putin ao lado de Farage e Trump. No Atlantic, fanáticos neoliberais como Yascha Mounk não pouparam tinta em sua condenação aos perigosos “populistas” iliberais — não apenas Orbán e Trump, mas também gente como o Podemos da Espanha, o presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva e Evo Morales da Bolívia. Nos disseram que a política contemporânea era menos sobre Esquerda e Direita do que sobre o abismo fundamental entre populismo e democracia liberal, nacionalistas e globalistas. Qualquer pessoa perceptiva e civilizada deve saber instintivamente que lado tomar.

Mas agora os tempos mudaram. Passamos dos populistas anos 2010 para o caos geopolítico dos anos 2020. Os mesmos ideólogos neoliberais que costumavam pregar sobre nacionalistas autoritários parecem ter se aquecido com a oportunidade política oferecida por tais figuras, como bandidos úteis capazes de realizar tarefas indesejáveis. Preocupados com as múltiplas guerras da Ucrânia ao Oriente Médio e permeados pela sensação de um declínio fundamental da civilização ocidental, o mainstream liberal mudou radicalmente sua abordagem para a extrema direita. A mensagem agora é: não os mantenha fora do coquetel, mas os convide para entrar.

Por sua vez, os velhos “nacionalistas” — ou pelo menos muitos deles — estavam ansiosos para serem aceitos e finalmente apresentados à alta sociedade. É apropriado para patifes ansiosos por se livrar do estigma pesado de seu passado fascista, e muitas vezes contando com uma boa dose de oportunismo. Uma vez à mesa, ambos os lados — a boa e velha sociedade liberal respeitável e os novos nacionalistas bárbaros — geralmente descobrem que, embora talvez discordem esteticamente, não estão tão distantes na política.

Giorgia Meloni, uma cidadã global

Esta semana tivemos a imagem mais concisa, até então, deste sórdido casamento de interesses entre os campeões da globalização neoliberal e a extrema direita nacionalista, quando o Atlantic Council concedeu o título de “Cidadão Global” à primeira-ministra italiana Giorgia Meloni. O “think tank independente” foi criado em 1961 para defender a necessidade de laços fortes entre a Europa e os Estados Unidos. Mas, de forma mais geral, tornou-se uma forte voz ideológica apoiando valores liberais de livre mercado, liberdade de expressão e a “ordem internacional baseada em regras” — nominalmente oposta ao extremismo de extrema direita, bem como ao comunismo.

Dada essa orientação liberal, a concessão de um prêmio a Meloni, que vem da tradição do neofascista Movimento Sociale Italiano, criou um alvoroço dentro da organização. Funcionários teriam expressado seu descontentamento ao atual CEO do conselho, o ex-jornalista Frederick Kempe. Mas, talvez, Meloni deveria ter ainda mais motivos para se envergonhar de receber tal prêmio. Por anos, ela construiu sua imagem pública como a de uma rebelde “antiglobalista”, lutando contra as finanças internacionais e o que os italianos chamam de poteri forti — os “poderes constituídos” entrincheirados.

Em seu livro de 2021, Io Sono Giorgia (“Eu sou Giorgia”), antes de se tornar premiê, ela furiosamente mirou nas elites “globalistas” que acusou de roubar a soberania popular. Ela argumentou que “globalismo” significa transferir poder para organizações e finanças internacionais, enquanto ataca os valores e tradições das pessoas comuns. Como seu aliado Matteo Salvini, ela mirou em George Soros, acusado de ser um especulador marionetista manipulando a imigração nos bastidores. Contra esse globalismo, ela pediu a recuperação da ideia de nação e de patriotismo, que argumentou terem se tornado malditas ​​em um mundo dominado por uma ditadura progressista.

Esse tipo de abordagem antiglobalista contrasta fortemente com o sorriso radiante exibido por Meloni na foto oficial da entrega do prêmio. Lá, ela estava ladeada por todos os tipos de figuras que poderiam perfeitamente incorporar o “globalismo” que anteriormente condenava. Veja John Francis William Rogers, vice-presidente executivo do Goldman Sachs. Ou Klaus Schwab, o organizador do Fórum Econômico Mundial em Davos — uma figura visceralmente odiada pelos esgotos digitais da extrema direita que atribuem a ele todos os tipos de acontecimentos conspiratórios na construção de uma nova ordem econômica pós-COVID-19.

Naturalmente, no topo desta foto oficial encontramos ninguém menos que Elon Musk, o homem mais rico do mundo, a quem Meloni exigiu expressamente que fosse o responsável por entregar o prêmio. O mesmo Musk que — entre outras palhaçadas — expressou sua intenção de “dar um golpe em qualquer um” que atrapalhasse os interesses capitalistas dos EUA. Não é exatamente um campeão da soberania nacional contra os governantes do mundo.

Nacionalistas e vassalos

Então, o que aconteceu? Meloni traiu o nacionalismo para abraçar o “globalismo”, como muitos observadores internacionais se perguntam? A concessão do Global Citizen Award a uma antiglobalista raivosa é certamente uma manifestação grotesca da falência moral dos atlantistas liberais, agora ansiosos para recrutar qualquer um para sua causa. Mas também pode ser usado para entender melhor a política real de pessoas como Meloni, e a relação entre o discurso oficial e a prática. Em suma, o nacionalismo de Meloni é uma fraude ideológica: apela ao patriotismo para legitimar a adesão ao projeto do império ocidental (Ocidente contra o Resto) em tempos de turbulência geopolítica, e a posição júnior da Itália dentro dessa estrutura como um vassalo imperial.

Meloni está evidentemente ciente da contradição ideológica — e até tentou dar desculpas para isso durante seu discurso de aceitação. Ela se referiu a um artigo publicado no Politico pelo pesquisador de ciência política Anthony J. Constantini, que categoriza sua posição como nacionalismo ocidental, um nacionalismo “que tem a sobrevivência e o florescimento da civilização ocidental como seu objetivo — em oposição a apenas focar no próprio Estado”. Em vez de simplesmente refutar o artigo, ela argumentou que não havia nada de errado em ter orgulho da civilização ocidental e de seus valores democráticos, agora considerados sob ataque.

Filosoficamente, tal posição é fácil de desmontar. Patriotismo historicamente significou um senso de orgulho e pertencimento a Estados-nação, também temperado pelo fato de que esses mesmos Estados-nação coincidiram com espaços de soberania democrática e ofereceram a seus membros cidadania e as proteções e direitos que derivam disso. O “patriotismo ocidental” em vez disso cheira a imperialismo e supremacia racial. É desprovido de qualquer referência à soberania popular ou participação na tomada de decisões coletivas. Onde devemos procurar a assembleia democrática que representa o Ocidente?

A realidade por trás dessas acrobacias ideológicas é que Meloni conquistou um papel como fiadora da adesão estrita da Itália ao atlantismo e ao apoio aos interesses econômicos e militares dos EUA na Itália, independentemente de eles contradizerem os interesses nacionais italianos. Isso não é totalmente novo para a extrema direita italiana. O núcleo duro do movimento neofascista pós-1945 exibiu um forte antiamericanismo herdado do conflito entre a Itália fascista e os Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. No entanto, durante a Guerra Fria, muitos grupos subversivos de direita contribuíram para as operações clandestinas de “stay-behind” da OTAN. Certamente a Democracia Cristã dominante era uma forte apoiadora institucional dos interesses dos EUA na Itália. Mas, no entanto, ela manteve uma noção de soberania e autonomia econômica italiana — algo que, apesar de suas proclamações de patriotismo, parece completamente perdido para Meloni.

Aluga-se a Itália

Talvez confusos com o radicalismo de seu discurso nacionalista, poucos, mesmo entre os críticos mais fervorosos de Meloni, esperavam o quanto ela se curvaria aos interesses geopolíticos e militares dos EUA uma vez no poder. Certamente, ela e seus ministros não desperdiçam nenhuma oportunidade de defender a italianidade da receita de macarrão mais obscura ou de algum queijo amado contra a tentativa de forças internacionais obscuras de “roubar nossa comida”. Eles falam liricamente sobre a bandeira italiana, os grandes méritos da civilização italiana, tecnologia, ciência e assim por diante. No entanto, quando se trata de interesses nacionais reais, de geopolítica e da posição da Itália na economia internacional, o governo parece extraordinariamente flexível aos desejos dos EUA.

Na frente militar e geopolítica, Meloni abandonou vocalmente sua admiração por Putin, a quem ela havia parabenizado anteriormente como um representante do livre arbítrio do povo russo, ao fornecer apoio constante à guerra na Ucrânia. Ela se esforçou muito nessa frente, dado que a opinião pública na Itália está entre as mais críticas ao esforço de guerra em qualquer lugar da Europa. Ela renegou a participação da Itália na iniciativa Cinturão e Rota da China — acordada em 2019 sob o primeiro governo de Giuseppe Conte, apoiada por uma coalizão totalmente populista formada pelo Movimento Cinco Estrelas e Lega — por causa das pressões vindas de Washington.

Na frente econômica, Meloni permitiu a venda de ativos estratégicos italianos para investidores dos EUA. Ela renegou sua promessa solene de campanha de manter a rede móvel italiana TIM sob controle nacional ao vendê-la ao fundo de investimento americano KKR. Isso pode ser considerado um assunto bastante sensível, dado que esta é uma rede que cobre quase 90% dos lares italianos. Além disso, ela deu sinal verde para a gestora de ativos dos EUA BlackRock adquirir mais de 3% da gigante italiana de defesa e segurança Leonardo, permitindo assim que ela se tornasse a segunda maior acionista depois do próprio Estado italiano.

As empresas de investimento dos EUA também devem receber um pedaço da nova onda de privatização de ativos estatais que afetará o serviço de correio italiano (Poste), a empresa ferroviária (Ferrovie dello Stato) e o banco mais antigo do mundo em operação contínua, o Monte dei Paschi di Siena. Meloni provou, portanto, ser não apenas uma vassala leal dos interesses dos EUA, mas também uma assistente de compras atenciosa na venda dos ativos estratégicos nacionais para o hegemon imperial.

Certamente, Meloni não é a única nacionalista que provou que seu posicionamento ideológico explícito era uma cortina de fumaça, escondendo o oportunismo mais astuto e a propensão à servidão. Mas ela também difere de nacionalistas como Orbán, da Hungria, que, embora agindo como vassalos, também tentam extrair o máximo de concessões possíveis de seus senhores escolhidos.

Se as acusações levantadas pela esquerda contra Meloni frequentemente se baseavam em sua própria auto apresentação nacionalista, agora somos confrontados com uma inversão curiosa — e uma realidade mais grotesca. Acontece que os “nacionalistas” eram realmente muito semelhantes aos infames “globalistas” que eles costumavam criticar.

Sobre os autores

é doutor em mídia e comunicação pelo Goldsmiths College (University of London) e professor do Departamento de Humanidades Digitais e diretor do Centro de Cultura Digital do King’s College em Londres. Já publicou no Brasil o livro "Redes e Ruas: mídias sociais e ativismo contemporâneo" e "Máscaras e bandeiras: populismo, cidadanismo e protesto global" pela Editora Funilaria.

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Published in Análise, Economia, Europa, Extrema-direita and Relações Internacionais

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