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(Foto de Annelize Tozetto)

Precisamos de um legislativo antirracista

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Segundo o IBGE, as mulheres negras são o maior grupo demográfico do país, representando 28% da sociedade, mas apenas 6% são representadas politicamente. Para entender como reverter esse cenário e transformar radicalmente nossas cidades, conversamos com Keit Lima, a militante socialista e candidata do PSOL.

UMA ENTREVISTA DE

Gercyane Oliveira

Na última eleição municipal, em 2020, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), houve um aumento recorde de candidaturas de mulheres negras. Em 2016, as mulheres negras representavam apenas 15,4% das candidaturas à vereança (71.066), e destas, apenas 5% (2.870) foram eleitas. Em 2020, 84.418 mulheres negras foram candidatas ao legislativo municipal. No entanto, o número de eleitas, apesar do crescimento em relação a 2016, ainda é tímido. Das mais de 84 mil mulheres negras candidatas, apenas 3.634 acabaram eleitas, representando 6%

A candidata do PSOL Keit Lima vem daquele “esquecidos” lugares das grandes metrópoles, onde as vidas são consideradas descartáveis, desimportantes e a população desses territórios são “matáveis”. Cria da Brasilândia, chegou aos 8 anos de idade com a família, vinda da periferia do Recife. Sua família migrou para São Paulo em busca do sonho de uma vida melhor. É militante socialista e tem como uma das principais bandeiras os direitos das mulheres, o antirracismo e o que é justo e bom para a classe trabalhadora. Formada em administração e direito, ela está na militância desde que era secundarista aos 13 anos de idade, na mesma escola onde chegou a ser assistente voluntária, auxiliando os estudantes que ainda não sabiam ler. 

Incentivada pelos pais, ingressou aos 17 anos no curso de administração na Faculdade Zumbi dos Palmares e coordenou a escola de líderes da Educafro, uma ONG que luta pela inclusão de negros e pobres no ensino superior. Trabalhou na Secretaria Municipal de Direitos Humanos e no gabinete do Mandato Ativista, na Assembleia Legislativa de São Paulo. Coordenadora de projetos sociais importantes, como Gerando Falcões, foi co-fundadora do movimento Engaja Negritude.

Keit Lima também é liderança comunitária da Brasilândia. Nas eleições de 2020, ela, que integra a corrente Primavera Socialista no PSOL, foi candidata a vereadora e alcançou 11.355 votos. Já em 2022, a militante se lançou para o cargo de deputada estadual e contabilizando 36.767 votos. Esse ano, espera ter parte dessa votação para ajudar a transformar a maior capital da América Latina.


GO

Sem parentes importantes, vinda do nordeste e dos rincões da periferia, agora candidata à vereança paulistana. Como tudo começou?

KL

A militância entrou na minha vida muito cedo. Com 13 anos começo a lutar por uma educação pública de qualidade através de um projeto que tinha na minha escola que convidou alunos de 7ª a 8ª série (Fundamental II) para ensinar alunos de 1ª a 4ª série (Fundamental I) que ainda não sabiam ler e escrever. Então, na 7ª série comecei a dar aulas de alfabetização para esses estudantes. Comecei a observar a situação da educação pública e o abandono e as dificuldades que toda a comunidade passava. Essa entrada na militância também me fez criar uma consciência de classe e a entender que a solução é coletiva, organizada nos movimentos sociais. 

Segui o exemplo de mulheres periféricas que sempre estabeleceram a rede de apoio da comunidade. Junto a isso, veio também a militância no movimento negro, através da Educafro, e outros movimentos negros periféricos e favelados. Com a atuação no movimento feminista e com muito estudo e trabalho, ocupar os espaços políticos veio como um caminho quase natural e necessário para que as nossas demandas fossem colocadas na centralidade do legislativo e executivo. Precisamos de uma cidade que cuide de gente, uma cidade boa para as favelas é uma cidade boa para todos, uma cidade justa. Sendo boa para o Grajaú, Capão Redondo, Campo Limpo, Brasilândia, também será para a Avenida Paulista e Pinheiros. Os movimentos que atuo, também estão na política institucional, e dentro disso nem sempre temos nossas pautas atendidas. 

Sinto indignação. Essas pessoas eleitas estão lá para nos representar, então precisamos de mandatos coletivos no sentido mais amplo da palavra, que esteja a serviço dos movimentos populares, a serviço das pessoas que a colocaram ali e que construamos uma cidade que a gente quer, sonha e merece.

“Acho que a política institucional deveria ser uma ferramenta para diminuir a desigualdade e não para escancarar.”

GO

Por que um socialismo negro na Câmara? Por que agora?

KL

Por diversos motivos. Somos nós que sentimos a desigualdade todo dia. Somos nós que sentimos os problemas e somos nós que temos as soluções para construir uma cidade em que ninguém fica para trás. Acho que a política institucional deveria ser uma ferramenta para diminuir a desigualdade e não para escancarar. Também acho que pela necessidade de enfrentar a desigualdade social e construir uma cidade onde ninguém fica para trás eu sou resultado de políticas públicas afirmativas. Então é muito importante a gente construir política pública afirmativas que tem dado resultado em âmbito federal como a política de cota, mas que ainda são insuficiente no município de São Paulo e que são muito raras e a quem dá potência.

Pessoas negras tem uma luta histórica para contar em São Paulo porque essa é uma cidade negra e isso é escondido nas escolas e na cultura da sociedade como todo. Também é baixíssima a representatividade das mulheres negras em todos os espaços de poder. Quando nós estamos lá nós levamos a pauta que é coletiva, mas que não está na agenda dos políticos tradicionais. É importante também pelo enfrentamento contra o genocídio dos nossos jovens para cessar o choro das mães, isso é inaceitável e me toca profundamente. Porque precisamos estar vivos e precisamos construir uma cidade onde pessoas negras possam viver. Por isso que a gente precisa de um socialismo negro na câmara agora, não para daqui a 5 ou 10 anos. É para agora.

GO

Os jovens de hoje estão acostumados a discutir desigualdade, racismo e poder, mas são arredios a respeito da organização e filiação partidária. Como o PSOL vem trabalhando sobre isso?

KL

Entre todos os partidos, para mim, o PSOL é o partido que tem mais políticas de negritude. É um partido que tem metade da sua bancada federal de negros. É o partido da Marielle Franco que é um símbolo para nós mulheres negras que estão fazendo a luta política. E claro que como na sociedade, temos muito o que avançar, mas eu e muitas pessoas negras somamos para fazer ainda mais negro essa disputa em um projeto nacional com ocupação dos espaços legislativos e executivo. No meu entendimento deve ser uma parceria na luta de movimentos sociais e de partidos de esquerda comprometidos com as causas do povo. Hoje eu tenho convicção que o PSOL é o partido mais bem colocado nesse sentido sem sombra de dúvida.

“O que me norteia é colocar a favela no orçamento, porque a favela precisa sentar para discutir os rumos da cidade e defender os seus interesses.”

GO

A combinação do anticomunismo, do racismo e também do elitismo que insiste em empurrar os pobres para a marginalidade tornou-se parte da história brasileira. Sua candidatura é um projeto que também expõe essas cicatrizes do sistema em que vivemos. Quais avanços você aponta como conquistas e o que falta?

KL

O que me norteia é colocar a favela no orçamento, porque a favela precisa sentar para discutir os rumos da cidade e defender os seus interesses. Fazer política pública em prol da dignidade do povo trabalhador, periférico e favelado. Essa parcela que é marginalizada vai continuar. Vejo que em vários governos progressistas, tivemos políticas públicas importantes. Eu mesma usufrui de programas do Lula como o Bolsa Família, que protege muitas famílias de viver na bárbara e completa miséria, mas sei que o que não falta em São Paulo é arrecadação e dinheiro. É evidente que a periferia não precisa estar assim. O que falta é a favela e a periferia entrar de vez na política para se representar.

Uma cidade boa para os trabalhadores pobres periféricos e favelados é uma cidade boa pra todo mundo, porque uma cidade justa é boa pra geral.

GO

As mulheres negras socialistas se organizam no combate contra a “tripla exploração”. Como esse conceito e luta se relaciona com as suas propostas para as mulheres negras paulistanas?

KL

Acho que uma coisa que é muito importante frisar é que mulheres negras são linhas de frente na busca por direitos civis e na busca por uma sociedade justa. Então, quando falo sobre colocar a favela no orçamento é inevitavelmente colocar mulheres negras e periféricas na centralidade das políticas públicas e das leis para combater a tripla exploração para que a gente possa viver bem, para que o conceito do “Bem Viver” esteja nas nossas vidas.

GO

Mulheres negras periféricas são silenciadas historicamente nos mais diversos espaços políticos, ainda que as mulheres negras tenham sido fundamentais na construção de movimentos de libertação de toda a classe trabalhadora ao longo do século XX. Suas contribuições políticas permanecem fundamentais, mas, mesmo em partidos considerados de esquerda, ainda lutam contra a invisibilização. Você lidou com questões semelhantes no PSOL com o baixo orçamento destinado à sua primeira candidatura em 2020, em comparação a candidaturas de homens brancos, não é? Como essa questão vem sendo tratada dentro do partido hoje em dia?

KL

Sim, lidei com isso. E é uma questão que sempre destacado: por que as mulheres negras não são eleitas neste país? Eu ainda acredito que o PSOL é o melhor partido do Brasil, mas ele ainda tem muito o que melhorar. A gente acabou de passar por um encontro nacional de negritude e que está mais organizada do que nunca e que é resultado de luta das pessoas negras que constroem o partido. Não tem nenhum partido de esquerda que não tenha o sangue e o suor de pessoas negras. É a partir de ter mais pessoas negras dentro do partido e da gente eleger pessoas negras e indígenas que iremos avançar. Ano passado tivemos um congresso do PSOL que foi o congresso mais diverso e mais plural – resultado direto dessa luta.

“Então, aprendi com a minha ancestralidade, com aqueles que vieram antes de mim, que um programa verdadeiramente antirracista é aquele que cuida de todo mundo.”

GO

Seu programa político como candidata à vereança também tem o legado de reflexões e enfrentamentos do antirracismo. Você diria que é um programa político para todos os paulistanos?

KL

Desde a época dos Palmares nós construímos essa sociedade, onde cuidamos de gente, onde ninguém fica para trás, onde as pessoas são colocadas na centralidade de todas as coisas. Então, aprendi com a minha ancestralidade, com aqueles que vieram antes de mim, que um programa verdadeiramente antirracista é aquele que cuida de todo mundo.

Na verdade a gente só está exigindo o básico para toda a população, que os direitos que deveria ser garantido chegasse em todo mundo porque quando a gente busca e luta para melhoria de qualidade de vida é a qualidade de vida de todo mundo. Quando a gente luta por uma educação pública de qualidade é para todo mundo. Quando a gente luta por transporte público de qualidade é para que tenha a cobertura em todos os bairros. Porque hoje a gente vive uma cidade que é pra poucos. Quando lutamos para que a saúde consiga atender a população é para que as pessoas não morram na fila dos hospitais.

O combate à desigualdade é um combate para que a gente tenha uma cidade melhor para todo mundo. Uma cidade que assegure todas as vidas onde todo mundo tem um direito de viver. Não uma cidade que depende da onde você mora ou dependa da sua cor de pele.

“Quanto mais mulheres negras se colocam no caminho da disputa institucional, mais forte a gente fica.”

Todo mundo se emocionou muito com as Olimpíadas agora por causa da Rebeca. Quantas Rebecas tem nas nossas periferias e favelas? Quanto que a favela pulsa cultura? Mas quem dá a estrutura para essa Cultura se sustentar? Então luto para contribuir para o crescimento cultural e econômico para que as oportunidades esteja dentro das favelas. É isso que quero dizer quando estou falando sobre colocar a favela no orçamento. Apesar da gente estar numa das cidades mais ricas, não só do Brasil, mas da América Latina, ela não é rica para todos. Uma cidade verdadeiramente rica para mim é uma cidade sem desigualdade. Foi desse jeito que eu aprendi com os mais velhos. Eu só estou aqui falando com você, só estou candidata, porque muito sangue e suor de homens e mulheres negras rolaram para que isso fosse possível.

Tenho a obrigação de pavimentar um caminho melhor para quem vem depois de mim. Isso é honrar aqueles que lutaram para que eu estivesse aqui.

GO

Movimentos e partidos de esquerda vêm implementando estratégias na tentativa de superar essa sub-representação do povo negro nas casas legislativas e nos executivos. Você mesma enquanto militante atuou nas pressões para o Supremo Tribunal Federal (STF) implementar a medida de cotas nas eleições de 2020. A disputa se tornou mais fácil para perfis como o seu no âmbito municipal ou estadual?

KL

Acho que não tem um âmbito que é mais fácil. Seja municipal ou estadual. Todos eles são difíceis, mas tem uma coisa que eu gostaria de frisar que quanto mais mulheres negras se colocam no caminho da disputa institucional mais forte a gente fica. Não fica mais fácil, mas a gente fica mais forte. Quanto mais mulheres negras que lutam são construídas com os movimentos sociais, a gente fica mais forte porque mostra que há uma outra forma de se fazer política.

Isso me fez lembrar que há umas três semanas atrás, eu estava entregando um panfleto e uma mulher negra mais velha perguntou para mim: “quem é essa?” Aí falei eu sou a candidata e ela respondeu assim: “eu nem sabia que a gente podia. Olha que louco!” É uma estratégia histórica de nos excluir e não levar esse debate para dentro das periferias e famílias. A gente mostrar uma outra estética e outros corpos nos debates, onde vamos colocar os nossos problemas.

Nós também andamos em rede, né? Quando uma chega todas nós chegamos e a gente vai abrir um espaço para que chegue mais gente. Vamos pavimentando o caminho para que fique um pouquinho mais fácil. Por isso hoje não existe um âmbito mais fácil, mas a gente vai construir um caminho para que todos os âmbitos fiquem mais fácil para as mulheres negras de movimento sociais, pobres e trabalhadoras faveladas.

Sobre os autores

é militante de várias organizações, como EDUCAFRO e RENFA, além de construir o Movimento Favela no Orçamento. Já atuou como assessora parlamentar e trabalhou na Secretaria de Direitos Humanos. É bacharel em Direito, Administração e especialista em Gestão Pública, Ciências Políticas e Urbanismo Social.

é jornalista, tradutora e copidesque.

Cierre

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Published in América do Sul, Direitos Humanos, Entrevista, História and Política

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