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Jaques Lacan proferindo um do seus seminários quinzenais na Universidade de Paris. Wikimedia.

Psicanálise: uma arma contra o realismo capitalista

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O novo livro do filósofo Vladimir Safatle, ao articular psicanálise e marxismo, lança um olhar sobre o recrudescimento da mentalidade autoritária no nosso tempo. Mas também oferece afiadas armas analíticas para pensar uma política do desejo capaz furar a atmosfera ideológica opressiva do capitalismo tardio.

Resenha do livro Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação (Autêntica 2020).


A atmosfera ideológica dominante no capitalismo tardio foi bem descrita pelo escritor inglês Mark Fisher como “realismo capitalista”: uma densa névoa imobilizante que interdita a ação coletiva e o pensamento radical, degradando a capacidade da imaginação política de conceber alternativas de organização social para além do capitalismo. Em seus últimos estudos de combate contra essa “realidade”, Fisher procurou desenvolver uma política do desejo, uma prática de “engenharia libidinal” que impulsionasse formas de desejar emancipatórias e fomentasse organização e agência coletiva. Falecido precocemente em 2017, Fisher não teve a oportunidade para desenvolver mais essas ideias.

É nessa frente de combate, do desejo como campo de disputa política, que se mostra altamente relevante e pertinente o mais recente e, antecipo sem receio de errar, o mais importante livro de Vladimir Safatle, Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação. O texto expressa, segundo o autor, o ápice de seu ciclo de pesquisa dos últimos anos, o qual abrange o resgate de diversas matrizes dialéticas como instrumentos de crítica social, desde Friedrich Hegel, passando por Karl Marx até Theodor W. Adorno, e que agora culmina com uma retomada a Jacques Lacan.

A obra, apesar de curta, é extremamente rica, densa, e nos limites da complexidade temática, clara e precisa, tratando da emancipação humana pela via de um desejo de ruptura, assim como articulando assuntos muitas vezes difíceis de abordar conjuntamente, como o marxismo, feminismo, identitarismo, dialética e psicanálise. Esses vários objetos são sistematizados a partir de quatro eixos principais: processos de identificação; estrutura do desejo; transferência e ato analítico.

A identificação concerne à chamada “teoria do eu”, que envolve os meios pelos se dão os processos de subjetivação – isto é, como os sujeitos se constituem enquanto tais. Safatle parte da concepção marxista de que “a produção produz não somente um objeto para o sujeito, mas um sujeito para o objeto”. Trata-se da aplicação, em quadrantes psicanalíticos, das teorias das formas sociais, que identificam a forma-mercadoria como elemento nuclear da sociabilidade capitalista, a qual constrange e molda os indivíduos. 

O germe autoritarismo

Ainda nessa linha, Safatle trata de um outro problema central da política do nosso tempo: a questão da personalidade autoritária, que em última instância, surge como uma defesa contundente do Eu em indivíduos psiquicamente mais frágeis. O autor desconstrói a concepção mais ou menos comum de que o autoritarismo hoje observado seria uma resposta reforçada da autoridade patriarcal. Na raiz dessa reatividade estaria, na verdade, justamente o oposto: o colapso daquela mesma autoridade. Aí devemos encontrar efetivo produtor dos atuais regimes autoritários, sendo a identificação com esses líderes que mesclam uma figura com a performance de “homem forte” não uma idealização de figura paterna, mas sim a um processo de identificação horizontal, em uma estrutura narcísica, que, quanto mais se nota frágil, mais violenta se torna.

Safatle prossegue explicitando a concepção lacaniana de que o Eu é um espaço de alienação, que se desenvolve a partir de um processo de sobreposição de camadas dialéticas de identificação/alienação. Assim, no núcleo do Eu haveria apenas um vazio, razão pela qual o verdadeiro processo emancipatório não passa pelo reforço das identificações, mas sim pela dissolução do Eu, que viabilizaria finalmente espaço para uma nova instauração. Portanto, a política emancipatória demanda as coordenadas desse lugar vazio, no qual poderiam ser fulminadas opressões, estereótipos e toda sorte de exclusões, colocando em questão as relações de poder. Estaria aí uma resposta possível ao fascismo.

O desejo emancipatório no capitalismo

O segundo eixo trata da questão do desejo, do gozo e da estrutura da sexuação, inclusive à luz do debate envolvendo determinadas leituras feministas do pensamento de Lacan. Esse tópico é crucial para todos aqueles que estudam a questão do desejo como campo de disputa política. Afinal de contas, para propor qualquer tipo ou forma de desejar, que sirva de empuxo para além do realismo capitalista, é preciso primeiramente responder à seguinte questão: o que é o desejo e como se deseja no capitalismo?

Safatle parte de um contraponto a partir da teoria do desejo em Deleuze-Guattari. Na perspectiva da esquisoanálise a sociedade capitalista aparece como sendo aquela da “insatisfação administrada”, na qual os sujeitos veriam no desejo uma expressão da incompletude e da inadequação. Para Safatle, entretanto, Lacan iria além, mostrando que a insatisfação não é propriamente administrada, mas sim  elemento causal de abertura de um outro horizonte, o qual reproduz essas mesmas relações.

Tal modo de desejar também se traduz no campo da luta política, enquanto a insatisfação não é dirigida à estrutura que organiza as posições, mas ao ocupante de cada um dos lugares. Seria então nesse sentido que Lacan, em um de seus seminários, criticou a revolta do maio de 68, ao proferir a conhecida e polêmica advertência: “Ao que vocês aspiram como revolucionários é a um mestre. Vocês o terão!”. Haveria assim, conforme o alerta de Lacan, uma adesão dos revoltosos, no nível do desejo, à própria sociabilidade capitalista, com as manifestações resultando num efeito meramente performático e preservador das estruturas. Para Safatle, portanto, a superação dessas estruturas somente pode ocorrer por meio da adoção de uma nova gramática normativa, que há de surgir quando a presente for deposta.

Ainda na questão do desejo, mas agora buscando essas possíveis novas gramáticas emancipatórias, o autor, de modo pontual e atento aos seus próprios limites subjetivos de perspectiva e lugar de fala, apresenta como imprescindível o debate acerca do gozo fálico, identificado como elemento-base da reprodução capitalista. São então articuladas possíveis respostas da teoria lacaniana às críticas feitas por Judith Butler e Nancy Fraser. Safatle reconhece, evidentemente, a relevância das conquistas feministas das últimas décadas, avanços na defesa contra históricas violências, que remontam a tempos muito anteriores aos do próprio capitalismo, mas que se projetam até os dias de hoje. Longe de enfraquecer a luta feminista do dia a dia, a estratégia emancipatória traçada por Safatle, e que abarca a emancipação humana em sua totalidade, visando não propriamente uma superação, mas sim a implosão das formas sociais que sustentam o patriarcado, agora reprocessado e reaproveitado sob a égide do capitalismo. Trata-se de um caminho libertário, que passa pela identificação de uma nova forma de desejar, “um gozo impossível, gozo que nos faz passar da impotência ao impossível e que não terá a estrutura fálica que é constituinte das formas de gozo sob o capitalismo. Um gozo que feminiza todos os sujeitos […] um gozo que nos empurra para fora do capitalismo e de seus regimes de sexuação”.

Legítima resistência revolucionária

O terceiro eixo da obra diz respeito ao processo de transferência. Safatle  salienta que este rito, inerente ao set psicanalítico, na verdade tem sua origem em exigências políticas, de controle e de exercício do poder, tal como delineadas por Michael Foucault no nível da microfísica do poder. Desse modo, em sua gênese, o processo de transferência é essencialmente político, com paralelo em estruturas maiores, como no plano populista, no qual se exerce a dominação carismática, tal qual descrita por Max Weber. Prossegue Safatle, lembrando que essas relações de poder definem situações de existência como formas de sujeição, que são causas do sofrimento, que decorre da introjeção de uma normatividade encarnada em seus enunciadores.

No entanto, o efetivo manejo desse poder na transferência, tanto pelo analista em clínica, quanto pela autoridade na política, deve ser traduzido no exercício da posição de poder como forma de destituição do próprio local do poder e não com a finalidade de uma mera inversão estrutural, de simples troca de papéis, lembrando que, no fim das contas, “matar senhores nunca foi uma tarefa difícil, mas difícil foi se recusar a ocupar seus lugares”. Portanto, a verdadeira emancipação somente seria atingida não quando o poder é deposto, mas sim quando dissolvida a agência determinante que o estabeleceu, desarticulando-se a respectiva gramática normativa. Esse evento, que concerne ao último conceito desenvolvido por Safatle, é aquele que Lacan define como ato analítico.

Em sua explanação sobre ato analítico, Safatle o diferencia de outros dois modos de agir, o acting out e a passagem ao ato. Acting out diz respeito a um agir de modo diferente ao que até então se reproduzia, mas cuja diferença é apenas aparente, algo que não afeta as estruturas, consubstanciando ato eminentemente performático que supostamente atende aos anseios de outrem, o que ocorre, por exemplo, nas aludidas manifestações. Já a passagem ao ato pode ser tida como uma conduta de negação, em geral consubstanciada em autosacrifício, muitas vezes relacionada ao suicídio ou outro modo de ruptura radical, mas que também não afeta as estruturas.

Remanesce então o ato analítico como aquele que verdadeiramente importa em movimentos revolucionários, subversivos, que implodem as estruturas. No caminho de explicação do conceito, é utilizado o mesmo exemplo adotado por Lacan, da belíssima alegoria de Arthur Rimbaud, do poema “A uma razão”, significativamente escrito no auge dos acontecimentos da Comuna de Paris. Nesses termos, o ato analítico é apresentado como algo relacionado a uma repetição que o precede, de outras tentativas de ato não concretizadas, as quais reverberam, se juntam e se condensam, em algo que poderia ser representado como um estrondo supersônico. Essa é a palavra efetiva, que destitui e recria o próprio sujeito, transformando aquilo que até então era sintoma em ato revolucionário.

Safatle faz assim um chamado à responsabilidade política, bem representando a melhor tradição crítica da psicanálise brasileira. Desse modo, assim como Platão assombra os juristas, rememorando-os de que não há pessoa justa numa sociedade injusta, Safatle exorta não apenas os profissionais da saúde mental, mas a todos nós, de que não há pessoa sã numa sociedade doente e que muitas vezes o sintoma revela uma recusa de adequação: mais que uma anomalia é legítima resistência revolucionária, recusa de aceitar o inaceitável, capaz de ser estopim para novas formas de organização política e ação coletiva.

É por isso que “Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação” se sobressai como uma das mais importantes obras dos últimos anos e, possivelmente, a que melhor articula os temas da psicanálise, política e marxismo. Trata-se de uma leitura indispensável para todos aqueles que pensam o desejo como um terreno de luta política e buscam uma estratégia emancipatória radical contra o realismo capitalista, eficazmente exercida em conjunto com as diversas lutas por liberdade, reconhecimento e justiça que se apresentam atualmente na arena política.

Sobre os autores

é Juiz de Direito e membro da AJD - Associação Juízes para a Democracia.

Cierre

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Published in Antifascismo, Livros and Resenha

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