Banco central da Noruega, 2018: um dos gerentes financeiros do Fundo Petrolífero segue um pressentimento e investe na The Walt Disney Company, usando seu celular para comprar as ações. Ele acidentalmente adiciona um zero a mais na compra, causando uma grande turbulência nos mercados financeiros e no próprio banco central. Como isso pôde acontecer?
Só que na verdade isso nunca aconteceu. Esta cena é de um novo seriado de comédia, The Oil Fund, criado por Harald Zwart. Famoso na Noruega por ter dirigido várias comédias, Zwart é conhecido pela audiência internacional graças a filmes de Hollywood como O Agente Teen (2003) e Karatê Kid (2010).
Com a ambição de misturar séries de TV como Billions and Suits, com uma pitada de The Office, o seriado acompanha a vida cotidiana dos gerentes financeiros do Fundo Petrolífero Norueguês. Jovens prodígio do mercado financeiro, em ternos sob medida, tomam decisões impulsivas de investimento de alto risco, em meio a uma cultura organizacional disfuncional e nenhum bom senso. Notas de dinheiro tremulam para fora das janelas, barras de ouro são usadas como pesos e o porão está cheio de presentes caros de empresas desonestas (na Noruega social-democrata, é claro, os gerentes não podem levar os presentes para casa).
O logotipo do fundo fictício é um gráfico apontando para cima, ilustrando o crescimento exponencial em seu valor de mercado. Esse valor crescente é talvez a única coisa em comum com o fundo da vida real. E na turbulenta economia global atual, é possível que até mesmo essa semelhança desapareça.
O CEO do fundo petrolífero da vida real, Yngve Slyngstad, tem alertado repetidamente o público em geral sobre um possível encolhimento de até um terço do fundo, algo que reduziria drasticamente o constante fluxo de dinheiro para os cofres do país. Dado seu papel decisivo na vida econômica e política da Noruega, esses riscos para o fundo não são motivo de risada.
O Fundo
O Fundo Estatal de Pensões, conhecido como “o Fundo do Petróleo” ou simplesmente “o Fundo”, é o maior fundo de riqueza soberana (SWF) do mundo, com um valor de mercado de 1 trilhão de dólares. Um fundo de riqueza soberana é um fundo de investimento estatal derivado do excedente da exportação de petróleo de um país ou de outros grandes fluxos de renda. Ao contrário dos fundos de pensão nacionais com obrigações futuras de pagar pensões, os SWFs são reservatórios de dinheiro do Estado, investidos em ações e títulos de dívida.
O objetivo do Fundo é salvaguardar e criar riqueza financeira para as gerações futuras e facilitar a poupança do governo a longo prazo. Os gastos são definidos por uma regra fiscal que declara que o parlamento só pode gastar um valor equivalente ao retorno financeiro previsto do Fundo, atualmente em 3%, um número significativo considerando o tamanho do Fundo. Um quinto da receita dos orçamentos do Estado é coberto pelo Fundo, financiando generosos serviços de assistência social e (quando os conservadores estão no poder) isenção de impostos.
As decisões de investimento não são tão aleatórias quanto as descritas no seriado e certamente não dependem da intuição dos gerentes. O Ministério das Finanças tem responsabilidade geral e emite diretrizes rígidas sobre a gestão operacional do banco central que administra o Fundo. A estratégia prioriza a ampla diversificação de investimentos, permitindo apenas uma escopo moderado para desvios do índice de referência estabelecido pelo ministério. O fundo investe em mais de nove mil empresas internacionais e controla 1,4% de todas as ações globais.
A maioria dos noruegueses tomam como certa a enorme riqueza gerada pelos recursos naturais do Mar do Norte, mas os primeiros depósitos do Fundo só foram feitos no final dos anos 90. De fato, a história do Fundo revela que as coisas poderiam ter funcionado de maneira diferente.
Petróleo? Que Petróleo?
Em 1958, as Nações Unidas organizaram uma grande conferência internacional sobre leis marítimas. A expectativa de haver reservas potencialmente grandes de petróleo e de gás no Mar do Norte tornou necessário determinar a soberania territorial e as fronteiras marítimas. A delegação norueguesa consultou o Agência de Pesquisa Geológica sobre a probabilidade de encontrar petróleo ou carvão na Plataforma Continental Norueguesa. A probabilidade era zero, concluíram os geólogos noruegueses.
Mas a companhia petrolífera estadunidense Phillips Petroleum, inspirada pelas recentes descobertas de gás na costa holandesa, adotou uma visão diferente e solicitou permissão para explorar o fundo submarino das águas territoriais do país. A empresa até mesmo se ofereceu para comprar direitos exclusivos, buscando garantir para si uma posição dominante.
Inicialmente, os noruegueses ficaram surpresos com o interesse das petroleiras. No entanto, eles também tinham experiência na gestão de recursos naturais e na valiosa produção de energia hidrelétrica de cachoeiras. Após alguns meses, o governo norueguês proclamou sua própria soberania sobre a plataforma continental norueguesa e afirmou que os recursos pertenciam ao Estado e ao povo norueguês.
A primeira verdadeira descoberta foi feita em 1969 e, um dia antes da véspera do Natal, a Phillips Petroleum procurou as autoridades norueguesas e relatou o que haviam encontrado. O campo recebeu o nome de Ekofisk e continua sendo o maior campo petrolífero já encontrado no mar.
Na Noruega continental, o Natal de 1969 foi comemorado em meio à ignorância sobre o presente valioso que o país havia recebido. Somente em junho de 1970 as notícias chegaram ao público: a Noruega possuía uma riqueza potencialmente vasta sob o fundo do mar.
Imposto de 78%
A descoberta de recursos naturais não é nenhuma garantia de crescimento econômico. Pelo contrário, uma pesquisa demonstrou que países com abundância de recursos tendem a experimentar efeitos econômicos negativos, também conhecidos como “a maldição dos recursos”. Esses fenômenos são descritos no influente livro de Terry Lynn Karl, “The Paradox of Plenty” (“O Paradoxo da Abundância”) (1997). A autora examina uma seleção de países ricos em petróleo e descobre que o excesso de dinheiro afeta negativamente a produtividade econômica, aumenta o risco de corrupção e tende a desestabilizar regimes políticos.
Uma variável decisiva em tais cenários é a qualidade das instituições do país. A decisão crucial no caso norueguês foi a lei que declarava que os possíveis recursos do fundo do mar pertenciam ao Estado e ao povo. As empresas receberam licenças para realizar atividades de exploração e produzir petróleo e gás, mas o Estado norueguês permaneceu no controle.
Nas negociações entre as poderosas empresas petrolíferas internacionais e o governo norueguês, todas as tentativas de subornar os burocratas noruegueses falharam. Instituições fortes, controle nacional e ausência de corrupção foram provavelmente os principais fatores de sustentação das bem-sucedidas políticas norueguesas que se seguiram, incluindo o seu sistema tributário.
O sistema tributário foi transformado desde a década de 1970, mas a ideia geral continua a mesma: manter incentivos para as empresas investirem e produzirem petróleo, incluir a participação norueguesa no processo, e garantir que o governo receba uma parte considerável da receita gerada. As empresas petroleiras pagam um imposto adicional de 55% sobre todos os lucros derivados do petróleo, elevando o nível total de tributação a 78%.
Autocontrole institucionalizado
Um dos principais desafios para os países produtores de petróleo é proteger a economia das flutuações de preços desse combustível. É fácil gastar mais dinheiro quando o preço do petróleo está elevado, mas os cortes que inevitavelmente se seguem podem ser dramáticos. A economia norueguesa sofreu várias retrações econômicas sérias nas décadas de 1970 e 1980, e surgiu a ideia de um fundo que pudesse estabilizá-la entre os picos e as depressões.
Outro desafio foi o risco de “doença holandesa“, assim chamado após os efeitos da descoberta de gás na Holanda, que trouxe um boom econômico, mas também tornou a moeda do país mais cara e enfraqueceu a competitividade do setor de exportação tradicional. Um fundo ajudaria a limitar a tentação de gastar o dinheiro — mas teriam os políticos o autocontrole para não gastar o dinheiro extra?
Não, concluiu o Ministério das Finanças, que rejeitou firmemente a ideia. No entanto, ela ganhou apoio no parlamento. No final da década de 1980, tanto os trabalhistas quanto os conservadores — que juntos somavam uma maioria substancial de parlamentares — eram a favor de um fundo. O Ministério das Finanças é uma força influente na política econômica norueguesa, mas em 1990 teve que ceder à pressão política.
Hoje, esses dois principais partidos e o Ministério das Finanças são o triângulo de ferro do Fundo Petrolífero Norueguês, acordando em todas as principais decisões sobre o seu destino, incluindo as estritas diretrizes do Fundo: todo o superávit das exportações de petróleo é canalizado diretamente para o Fundo; os gastos devem ser visíveis nos orçamentos nacionais normais e o mercado norueguês é excluído do universo de investimentos do Fundo.
Os parlamentares noruegueses captaram a mensagem e compararam o fundo à mitológica cera de abelha de Odisseu — usada por sua tripulação para tapar os ouvidos e evitar a tentação do canto das sereias. Como Odisseu e seus homens, a liderança política norueguesa deveria ser protegida de todo tipo de sugestão maravilhosa sobre como o dinheiro do petróleo deve ser gasto. Ainda assim, os trabalhistas e os conservadores concordaram em institucionalizar regras de autocontrole.
Considerações éticas
Por anos, o fundo não passou de uma conta bancária vazia. Quando o dinheiro começou a surgir, o mesmo aconteceu com a opinião popular sobre como gastá-lo e investi-lo. Em público, os principais defensores de expansão nos gastos foram os populistas de direita, mas a pressão no interior dos principais partidos também aumentou.
O trabalhista Jens Stoltenberg, na época primeiro-ministro norueguês, foi acusado de ter “esquecido a senha” de saque do fundo e, em 2001, o governo implementou uma regra fiscal para definir a parcela da receita do petróleo que poderia ser gasta acima do orçamento nacional, equivalente ao retorno financeiro previsto. Desde então, todos os governos de esquerda e de direita têm sido fiéis à regra fiscal, incluindo o atual Ministro das Finanças da direita populista.
As preocupações éticas com relação ao fundo são, de fato, mais controversas do que a própria regra fiscal. A ideia original era investir o dinheiro do fundo de acordo com diretrizes financeiras rígidas, mas a mídia repetidamente mostrou dinheiro norueguês sendo investido em empresas armamentistas — incluindo fabricantes de minas terrestres. Diante de uma campanha da sociedade civil, o triângulo de ferro do Partido Trabalhista, dos Conservadores e do Ministério das Finanças lutou ferozmente contra a imposição de diretrizes éticas, mas acabou tendo que ceder à pressão pública. Em 2004, o parlamento aprovou diretrizes éticas para os investimentos e estabeleceu um Conselho de Ética para monitorá-los.
No seriado, o Conselho de Ética do Fundo desempenha um papel dominante e decisivo. Na vida real, seus poderes são limitados. A recomendação de excluir o Walmart em 2006 atraiu atenção e protestos internacionais do embaixador estadunidense em Oslo. No entanto, a cobertura da mídia sobre investimentos em empresas duvidosas continua sendo rotineira. Hoje, apenas 125 empresas de 9.000 são excluídas do universo de investimentos, e as recomendações do conselho provavelmente serão moderadas pela mesa diretora do banco central, que toma as decisões finais.
O Paradoxo Verde da Noruega
O petróleo e o gás são essenciais para a riqueza norueguesa, mas a maior parte dos noruegueses se identifica como cidadãos de um país verde e ecológico. A Noruega desempenha um papel ativo nas negociações internacionais sobre o clima, ajuda a financiar a luta contra o desmatamento e implementou uma redução substancial de impostos sobre os carros elétricos, o que significa que os estacionamentos agora apresentam uma grande parcela desses veículos. O paradoxo de financiar carros elétricos com dinheiro da exportação de petróleo raramente é mencionado.
As organizações ambientalistas insistem para que o fundo aborde os problemas relacionados às mudanças climáticas com mais seriedade, excluindo empresas prejudiciais o meio ambiente e aumentando investimentos em empresas verdes. A estratégia do fundo inclui, de fato, considerações ambientais, mas, como o próprio seriado mostra, elas não dominam a totalidade do seu portfólio. O paradoxo verde ou outras questões controversas raramente são mencionados.
A intenção do seriado é ser uma comédia leve, mas recebeu críticas mistas por não desafiar a autogratificação norueguesa: um crítico chegou a chamá-la de desperdício de dinheiro do petróleo, visto que o diretor Zwart recebeu 4.2 milhões de coroas norueguesas (aproximadamente meio milhão de dólares) em apoio à produção. Mas talvez a falta de sucesso do seriado não se deva inteiramente ao seus criadores. Embora o Fundo Petrolífero seja o principal contribuinte para o Estado de Bem-Estar Social, a maioria dos noruegueses não se sente à vontade para falar sobre sua riqueza. Tal como as famílias de “dinheiro antigo”, falar sobre esse assunto é considerado falta de educação: e é claro que não há necessidade de se falar sobre abundância quando se tem muito.
Esta situação não vai durar para sempre. Prever futuros retornos financeiros é uma tarefa difícil, mas os fluxos de renda do petróleo e do gás terminarão um dia, possivelmente devido a fontes de energia renováveis que substituirão a necessidade de petróleo. Até o momento, no entanto, tem havido pouco debate público sobre o paradoxo verde da Noruega. Resta saber se a redução no valor de mercado do fundo e as consequências crescentes das mudanças climáticas podem mudar isso.
Sobre os autores
é economista e escritora e recentemente publicou um livro sobre o Fundo Petrolífero Norueguês, Drømmefondet.
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