A crise da COVID-19 está revelando uma contradição básica no núcleo do capitalismo. Por um lado, aprendemos que o vírus é um produto de nosso sistema agrícola capitalista. Como Rob Wallace e seus coautores argumentam, as condições para transmissão do vírus estão enraizadas em nossa propensão a cortar as florestas densas – elas geralmente são reservatórios de vírus – e substituí-las por ecologias de plantação homogênea como palmeiras ou pastos com uma única espécie de animal vivendo abarrotada.
Segundo eles:
a totalidade da linha de produção é organizada ao redor de práticas que aceleram a evolução de virulência patógenas e a subsequente transmissão. Monoculturas genéticas em crescimento – de animais e plantas com genomas praticamente idênticos – removem a as fortalezas de imunidade que em populações mais diversas diminuem a taxa de transmissão.
Por exemplo, o surto de influenza aviária e suína de anos passados tem sua origem no confinamento dos criadouros de engorda. A COVID-19 aparentemente emergiu em um mercado de rua que combinou todo tipo de mercadorias naturais de animais exóticos, como cobras, a víveres domesticados, como porquinhos. Pôr em interação múltiplas espécies, em um espaço pequeno, com multidões de vendedores e compradores humanos é uma excelente plataforma para a transmissão de um vírus.
Como um intelectual disse, “nós cortamos as árvores; nós matamos os animais ou os colocamos em gaiolas e os enviamos para os mercados. Nós desequilibramos ecossistemas e nós atiçamos os vírus a abandonarem seus hospedeiros naturais. Quando isso acontece, eles precisam de novos. Geralmente, nós seremos os hospedeiros”.
Por outro lado, para milhões de trabalhadores ao redor do mundo, uma realidade ecológica brutal do capitalismo se auto afirma: para viver, dependemos de dinheiro para acessar aquelas mesmas cadeias de suprimentos agrícolas. Milhões de trabalhadores vivendo apenas de seus salários mínimos veem seus empregos ou rendas serem cortados, forçando as famílias a decidir se devem pagar o aluguel ou comprar comida.
Para aquelas pessoas da classe trabalhadora que ainda possuem renda, a experiência da epidemia tem sido de um ritmo nervoso entre idas aos corredores de supermercados, lutando por papel higiênico e encontrando séries de prateleiras vazias. Especialistas em cadeias de produção de supermercados declaram que “existe comida suficiente no mundo”, mas é claro que a sincronia imediata das cadeias de produção capitalistas é mal equipada para servir a todas as necessidades da sociedade em uma pandemia global.
As cadeias de abastecimento usam algoritmos estatísticos para reafirmar a demanda dos consumidores de forma a sintonizar as redes logísticas e de produção. Esses sistemas são concebidos de forma a poupar gastos das corporações varejistas com custos de inventário (armazenamento), mas elas facilmente falham quando a demanda dispara inesperadamente ou quando a cadeia de abastecimento é “perturbada”.
Agora, a violência do mercado está se impondo através da elevação abrupta do preço de alimentos básicos. As comunidades estão ficando famintas a medida em que os estoques de itens básicos se esgotam, agricultores deixam vegetais frescos apodrecerem nos campos e os produtores de leite jogam leite no ralo por causa da queda dos preços e falta de demanda. É demais para o gracioso e resiliente mercado, supostamente o sistema mais eficiente em alocar recursos.
O sistema agroalimentar é claramente irracional. A demanda socialista que pode nos levar a um sistema alimentar baseado em necessidades sociais e ecológicas deveria soar familiar: comida para todos.
Se a luta por “saúde para todos” tem mostrado a popularidade do slogan “assistência médica é um direito humano”, então por que com a alimentação não é vista da mesma forma? A única coisa que impede a “alimentação como um direito humano” é uma indústria que depende da criação da escassez artificial de alimentos para manter preços e lucros.
Uma abordagem socialista desses problemas não pode dirigir-se a eles de forma compartimentalizada, reformando a agricultura de um lado e delivering: entregando a alimentação como um direito humano de outro. O objetivo deve ser revolucionar todo o sistema alimentar e orientá-lo para as necessidades sociais e ecológicas.
A COVID-19 e o sistema alimentar capitalista
Conforme descobrimos que nosso sistema agrícola é responsável pela disseminação do vírus, também percebemos como perigosamente dependentes somos desse mesmo sistema alimentar para provisão de alimentos e sobrevivência. Ambos os problemas possuem a mesma causa: nosso sistema alimentar como um todo é controlado por entes capitalistas privados em busca de lucro.
Segundo Wallace, o sistema agrícola é estruturado de forma estreita: “o comando privado da produção permanece totalmente focado no lucro”. A motivação e competição por lucro que compele os produtores agrícolas a racionalizar e homogeneizar brutalmente a natureza em forma de monoculturas e criações mono-espécies de animais de pasto. Isso não apenas fornece o sistema ecológico perfeito para uma transmissão viral, também substitui a biodiversidade ecológica que tende a manter vírus selvagem à distância.
Ainda assim, não conseguimos pensar nessas fazendas agroindustriais isoladas do sistema maior. Todo lucro dos agroindustriais capitalistas seria impossível se não fosse pela fonte principal da demanda consumidora: a classe trabalhadora ao redor de todo mundo que não possui meio algum de ganhar a vida, que só pode comer na medida em que trabalha por dinheiro.
Conforme Raj Patel argumentou uma década atrás, vivemos um sistema alimentar “ampulheta” no qual, em ambas as extremidades, milhões de agricultores e trabalhadores-consumidores são explorados por um pequeno grupo de corporações agroindustriais ao meio, os processadores de alimentos e gigantes varejistas. A demanda da classe trabalhadora é essencial para todo o sistema. Mesmo o melhor tipo provisão de bem-estar governamental, como cestas básicas e o interesse atual na Renda Básica Universal (RBU), apenas garante mais fluxo de dinheiro para as mãos das gigantes cadeias varejistas, processadores de comida e companhias do agronegócio.
O que é uma resposta ecossocialista?
A pandemia revela explicitamente uma crise em nossa relação ecológica com a alimentação e com a natureza. Qual seria uma resposta socialista apropriada? Wallace diagnostica corretamente alguns problemas com nosso sistema agrícola, mas suas soluções são insuficientes para a massa de trabalhadores que depende de dinheiro, mercadorias e supermercados para sobreviver.
Wallace sugere que nós precisamos refazer completamente a agricultura, “primeiramente, reintegrando a produção de alimentos às necessidades das comunidades rurais”. Em outro artigo, ele elabora uma lista de demandas que centram em dois pilares principais: priorizar as lutas por terra enfrentadas por pequenos produtores do campo e indígenas, e reintegrar a produção agrícola com princípios ecológicos (com agroecologia, por exemplo) que substituam as monoculturas de escala industrial com rotação de plantio mais diversificadas, fertilizantes orgânicos e gerenciamento integrado de pestes.
Esse estilo de política agrícola é trazido à tona em uma retórica floreada: “Vamos costurar juntos um nova configuração estratégica do sistema-mundo, com autonomia dos produtores rurais, liberação indígena e agroecologia específica para cada lugar que possam redefinir questões de biossegurança, reintroduzir proteções imunológicas de ampla diversidade em diferentes criações de pasto, aves e plantações.”
Isso tudo soa bem aos ouvidos. Os ecossocialistas deveriam sempre apoiar pequenos proprietários do campo e movimentos indígenas pelo que é chamado de “soberania” alimentar e territorial. Isso está no coração de uma longa história de políticas socialistas de apoio a movimentos por “autodeterminação” ou de pessoas oprimidas.
Contudo, a real tensão nesse tipo de política é que não fica claro como priorizar as comunidades rurais ou criar “agroecologia específica para cada lugar” para produzir um sistema alimentar viável para os quase 71% da força global de trabalho que não está inserida diretamente no trabalho agrícola – ou os 55% do planeta atualmente vivendo em cidades que, apesar da tendência da jardinagem urbana, dependem de dinheiro para acessar a comida que precisam para sobreviver.
A pequena agricultura é excelente em alimentar regiões locais, mas a maioria de nós vive e depende de cadeias de suprimento já existente. A autonomia dos agricultores é um valor crítico, mas e a autonomia dos trabalhadores da maior parte do sistema alimentar além da propriedade produtiva? E que tal a autonomia de todos nós que dependemos desses sistemas de fornecimento de alimentos para comer?
Assim como Karl Marx e Frederich Engels colocam, a contradição central do capitalismo é que aqueles de nós que precisam de mercadorias para sobreviver, dependem de uma densa rede de trabalho, mas todo o dinheiro e mercadoria são apropriados por atores privados. O objetivo do socialismo é a apropriação de sistema de trabalho socializados que já existem e socializar o controle e os benefícios.
Portanto, um programa agroecológico ecossocialista para as massas proletarizadas precisa refletir para além da “autonomia do agricultor”. Ele deve levar em conta a socialização de todo um sistema alimentar de forma que inclua as propriedades rurais produtivas, mas também a rede social mais ampla de trabalho e produção que traz comida aos nossos pratos.
Socializar o sistema alimentar
Mas do que simplesmente abandonar a cadeia agroindustrial de suprimentos de que somos dependentes, precisamos pensar sobre como essa cadeia pode ser reconstruída caso não fossem controladas pela lucratividade. Isso significa confrontar o fato de que o atual sistema alimentar possui vantagens que não podemos descartar.
Na agricultura, tecnologias passaram a poupar muito trabalho, o que produziu uma abundância tremenda de alimentos. Países industrializados aplicam porções minúsculas de sua força de trabalho no trabalho agrícola: 1,7% nos Estados Unidos, 2,9% na França, 1,9% da Suécia, daí por diante. Mesmo em economias emergentes como a brasileira – claramente uma potência agrícola – o número é pequeno (10,3%).
Isso não significa que a agricultura está totalmente automatizada ou independe do trabalho. A crise do coronavírus está revelando como trabalhadores rurais migrantes são simultaneamente explorados e declarados “essenciais” para a plantar nossas frutas frescas e vegetais. Qualquer sistema alimentar socialista precisaria encontrar uma forma igualitária de distribuir esse tipo de trabalho entre a sociedade.
Conforme críticos dessa narrativa apontam, países com pequenas forças agrícolas de trabalho também importam alimentos de outros países, muitos dos quais fruto de trabalho intenso, para se dedicar à produção de plantações altamente exploradoras. Deixando de lado os objetivos do socialismo global, seria insustentável argumentar sobre provisão socialista de alimentos baseada em tal relações de exploração trabalho.
Além disso, a tendência geral do “disponível em qualquer lugar do planeta” é uma mudança de pessoas que abandonam a agricultura e são lançadas na economia monetária, o que Farshad Araghi chamou de “descamponização global”. Para as massas que já foram apartadas de suas terras, os socialistas precisam de uma política alimentar preocupada tanto com a provisão quanto com a produção de alimentos.
Vivemos em um sistema que a vasta maioria não produz alimentos diretamente, ainda que alguns pensadores socialistas argumentem que um sistema alimentar “revolucionário” implica que todos nos tornássemos agricultores, onde “praticamente todo mundo teria um dedo na produção da comida que comem”.
Nós devemos ser claros: trabalho agrícola é incrivelmente difícil. A maioria das pessoas em sociedades industriais não possui nem o desejo nem a grande habilidade necessária para realizar esse trabalho (que é justamente a razão pela qual os agricultores capitalistas dependem dos lucros da exploração de trabalhadores migrantes dispostos a aceitar salários baixíssimos e que podem ser mandados para casa às remessas).
Lembre-se da campanha de 2010 da União dos Trabalhadores Agrícolas, “TRABALHE COM A GENTE” para oferecer empregos aos cidadãos norte-americanos, em uma era de desemprego em massa. Apenas “algumas dúzias” de pretendentes sérios ou qualificados apareceram.
Qualquer política revolucionária que tem como premissa a realização do trabalho agrícola por todos não vai criar o tipo de política de massa necessária para um socialismo vitorioso. Seguindo Friedrich Engels, um retorno ao agrarismo local de trabalho intenso representa um “socialismo utópico” fora de sintonia com as condições que nos confrontam.
Alguns podem argumentar que nós devemos tornar o trabalho agrícola mais recompensador e melhor remunerado, mas meu argumento é que uma abordagem verdadeiramente socialista garantiria que os trabalhos mais perigosos e exaustivos deveriam ser automatizados, assim ninguém teria de fazê-los. Uma questão central para os socialistas deveria ser: que partes dessas tecnologias automatizadas pode ser redirecionada para criar sistemas de produção agroecológicos ao invés de máquinas de lucro monoculturas? Isso significa que o debate não se baseia ou produção agrícola industrial ou de pequenos proprietários, mas provavelmente na combinação de ambos.
A rotação de culturas e métodos de gerenciamento integrado de pestes pode ser combinado com tratores (que não usem combustíveis fósseis) e colheitadeiras automáticas? A produção agrícola automatizada pode ser reduzido de forma a prevenir o tipo de destruição de habitat e biodiversidade responsáveis pela transmissão pandêmica do vírus?
Não é apenas tecnologia de economia de trabalho. As cadeias de suprimento imediato interrompidas pelo pânico das compras ainda representam imensas máquinas de planejamento socializado que usam enormes quantidades de dados e poder computadorizado para predizer exatamente quando você pretende comprar um pacote de amendoins. Imagine se esse sistema logístico não fosse aproveitado para o lucro de gigantes firmas do atacado, mas para assegurar que as necessidades sociais fossem atendidas?
Também devemos resistir à ideia de que devemos mudar para um sistema de alimentação puramente local. Se nós descarbonizarmos os transportes, poderíamos criar uma relação de troca mutualmente benéfica que permita que comunidades desfrutem de alimentos mesmo que não sejam cultivados localmente?
Considere a pequena quantidade de pessoas que, de fato, depende apenas de alimentos sazonais cultivados especificamente em suas regiões, quando disponíveis. Nós podemos debater o valor de certos sanduíches de frango, mas uma visão ampla (socialista) das necessidades humanas acomodaria o desejo genuíno por alimentos frescos e deliciosos provenientes de lugares outros que não a região local.
O problema com alimentos não-locais sob o capitalismo não é a sua origem geográfica, mas o fato de que as relações das mercadorias escondem as condições de exploração humana e ecológica da produção. O socialismo torna visível – e sujeito ao controle democrático – essa produção. Se nós não pudermos encontrar maneiras justas e racionalmente ecológicas de prover alface para regiões temperadas no inverno, que assim seja. Mas não devemos rejeitar tal ideia com base em alguma ideia nostálgica de que o “local” é melhor para todos os envolvidos.
Permanece uma questão aberta o modo que podemos transformar nosso sistema capitalista agroindustrial em um que seja socialista. Nós simplesmente não levamos em conta o quanto nosso sistema alimentar privado e com controle para o lucro é restritivo. Se esse sistema fosse baseado nas necessidades humanas e na racionalidade ecológica, não haveria motivos para assumir que a tecnologia e o comércio não deveriam ser empregadas para finalidades benéficas de larga escala.
“Comida para todos”
Na medida em que as pessoas perdem seus empregos e rendas, elas estão começando a passar fome para assegurar que seus filhos comam. Assim como saúde, alimentação deve sempre ser considerada um direito humano fundamental. Isso significa que precisamos de uma estratégia ecossocialista focada em uma plataforma de desmercantilização dos alimentos. É a mercantilização – e as forças de competição e lucro – que compelem o capital a desenvolver cenários de produção de alimentar como se fosse uma fábrica – sequencias da mesma cultura cultivada em estilo de linha de montagem.
A primeira premissa da desmercantilização é a provisão de alimentos como um direito humano para todos. Considere outra necessidade vital para os humanos: água. Apesar dos esforços de privatização, muitas sociedades fornecem água como uma utilidade pública, seja de graça ou a preços baixos. Quando cidades falem, como Detroit, tentativas de desligar o fornecimento de água em residências pobres são justamente acusadas de abuso dos direitos humanos.
Por que não podemos ver o sistema alimentar como um tipo similar de utilidade pública? O alimento é, óbvio, muito diferente de água (embora nossa necessidade por ela não seja). Comida é algo extremamente diverso: vem em diferentes formas e é produto de práticas culturais variadas. Isso não é um chamado para um planejamento central de racionamento de aveia. É sobre tornar o alimento – em toda sua diversidade cultural – uma questão pública ao invés de privada.
Atualmente, os consumidores votam com dólares para expressar preferências alimentares – mais dinheiro, mais votos – e os vendedores privados fazem as decisões com base nos retornos dos acionistas.
Portanto, tornar o sistema alimentar em uma utilidade público também envolve o segundo aspecto da desmercantilização: controle democrático. Ao passo que a desmercantilização é geralmente encarada como a simples provisão de “coisas grátis”, a dignidade humana básica também deveria incluir as pessoas no controle de decisões que afetam suas vivas.
Com o que se pareceria uma democracia do sistema alimentar? Sam Gindin propõe um terreno socialista intermediário entre trabalhadores locais e planejamento estatal democrático e de alto nível. Ele sugere que criemos “conselhos setoriais” para setores importantes e específicos como comida e agricultura. Esses conselhos seriam idealmente representados tanto pelas comunidades que necessitam do fornecimento de alimentos quanto os trabalhadores envolvidos na produção agrícola.
Esses conselhos poderiam dar forma a esforços de larga escala em “planejamento ecológico”. A pesquisa de Wallace e outros mostra que nosso sistema de produção de alimentos é altamente irracional a partir de uma perspectiva ecológica. Não existe uma escassez de conhecimento científico ecológico que possa ser usado para moldar todos os tipos de produção. O capital simplesmente ignora isso. Os ecossocialistas devem argumentar que o planejamento ecológico deve ser integrado em todos os nossos sistemas de produção – e o nosso sistema alimentar é um óbvio ponto de partida.
A crise do coronavírus revelou que o capitalismo é um sistema em guerra com a vida. Vírus mortais emergem em plantios capitalistas e viajam através de redes de dinheiro e da circulação de mercadorias. Os seres humanos que não são mortos pelos vírus acabam se tornando incapazes de acessar os alimentos que precisam para manter uma vida saudável. Essa crise representa uma oportunidade dramática para reimaginar o que nossa sociedade e economia poderiam ser se organizadas em termos diferentes.
Sobre os autores
é professor assistente de Geografia na Syracuse University. É autor de "Lifeblood: Oil, Freedom, and the Forces of Capital".