Era meio dia, 10 de julho de 1930, no lago Maggiore, que fica situado na fronteira da Itália fascista com a Suíça. Duas mulheres saem de um barco a remo e cumprimentam um homem quando chegam à terra firme. Os três esperam encontrar outros militantes em uma reunião clandestina que levou meses de planejamento. Mas a reunião nunca ocorre; um espião alertou a polícia de Benito Mussolini, que prende os três e os leva às celas.
“Meu nome é Camilla Ravera”, uma das duas mulheres diz ao policial. Após uma caçada de oito anos, o regime finalmente prendeu Ravera, secretária geral do Partido Comunista da Itália (Partido Comunista d’Italia, ou PCI). Por oito anos ela trabalhava sob nomes falsos. Começou a vida clandestina quando os fascistas a proibiram de dar aulas. Nos anos seguintes, Camilla fora “Silvia” e depois “Micheli”, tornando-se um fantasma de si mesma – mascarando sua identidade com tanta eficácia que a polícia tinha certeza de que a famosa “Micheli” era um homem.
Com seu rosto austero e estrutura leve, Ravera, de quarenta anos, era frequentemente chamada de maestrina (“professorinha”). Um nome tão diminuto não combinava com ela; por trás de sua aparência nada ameaçadora e voz frágil havia um caráter de aço. Era uma mulher que assumiu o fardo de manter o Partido Comunista unido quando estava sob constante ataque da polícia fascista. Um partido que teria desaparecido se não fosse pela tenacidade de suas lideranças: Palmiro Togliatti, Umberto Terracini, Alfonso Leonetti, Felice Platone e Camilla Ravera, que se tornou secretaria – o principal cargo do partido – em 1927.
Já no ano anterior, diante da proibição do partido e da prisão de Antonio Gramsci, Ravera exibira seus grandes talentos como organizadora. Nesse período, a situação do PCI parecia absolutamente desesperadora – tanto que a ala da direita do partido liderado por Angelo Tasca chegou a sugerir que ele se dissolvesse e incentivasse os militantes a se retirarem para suas próprias vidas privadas. No entanto, essa tendência “liquidacionista” encontrou imediatamente a resistência de Ravera.
Em vez disso, ela começou a reorganizar os contatos entre o grupo de liderança e os ramos periféricos do partido, interrompidos pelo regime fascista. Nesse trabalho, ela usou seus chamados “flamingos”, militantes pouco conhecidos, que provavelmente não atrairiam suspeitas policiais, que carregavam documentos e mensagens pelas várias regiões da Itália. Nesse mesmo período, Ravera organizou a sede central do partido em uma pequena casa de campo nos arredores de Gênova, trabalhando para reconstruir suas várias agências e grupos de trabalho em torno do secretariado. Esta casa tornou-se o local de constantes idas e vindas de comunistas clandestinos; o escritor Ignazio Silone o batizou “o hotel dos pobres”.
Anos clandestinos
Esta foi uma fase crucial na existência do Partido Comunista. Graças ao árduo trabalho que Ravera realizou “no escuro” durante esses anos, o PCI conseguiu sobreviver à dura repressão que o movimento operário enfrentou durante a consolidação do regime de Mussolini. Apenas mais tarde, talvez, com o papel de liderança do partido na construção da resistência antifascista de 1943 a 1945, seria possível apreciar plenamente o valor dessa continuidade organizacional – e a tenacidade dos líderes comunistas em defender a necessidade de manter o partido vivo.
Este foi sem dúvida um trabalho exaustivo. Ravera teve que viajar constantemente para construir e reconstruir a densa rede de relações que mantinham o partido unido. Isso significava garantir a distribuição de uma imprensa clandestina; reuniões clandestinas pela Itália; viagens a Paris para se comunicar com outros líderes no exílio; e até a participação do sexto congresso do Comintern (Internacional Comunista) em Moscou em 1928. Lá, ela recebeu uma oferta de mudança permanente para a capital soviética para trabalhar na Secretaria Internacional da Mulher. Mas mesmo tendo essa oportunidade de se libertar do trabalho clandestino em solo italiano, Ravera recusou – em vez disso, direcionou seu ativismo contra o regime fascista.
Seu retorno da União Soviética destacou os perigos desse trabalho subterrâneo contínuo; depois que um informante falou à polícia sobre a base clandestina do PCI perto de Gênova, Ravera foi forçada a mudar apressadamente suas operações através da fronteira para a Suíça. No entanto, esse período suíço seria breve, pois, Ravera estava convencida de que o partido deveria explorar todas as possibilidades de operar na própria Itália. Assim, ela voltou para a fronteira em maio de 1930, para ser presa apenas dois meses depois, perto do lago Maggiore.
Seguiu-se uma sentença de quinze anos – um tempo de provações intensas sentidas na própria pele. Ravera passou o resto do período fascista sendo transferida de uma prisão para outra em condições terríveis. Esses tempos terríveis culminariam em agosto de 1939 em uma ruptura trágica com seus companheiros – sua expulsão do partido em confino (exílio interno) em Ventotene – por causa de suas diferenças sobre o Pacto Molotov-Ribbentrop com os outros comunistas confinados. Para Ravera, este foi o mais duro dos golpes – uma profunda humilhação superada apenas em 1945, quando ela foi finalmente readmitida para as fileiras do partido.
Essa acolhida de volta ao partido foi retratada de maneira comovente pela jornalista Miriam Mafai, que contou o momento em que Togliatti – neste momento o Secretário Geral do partido e, de fato, seu líder inquestionável – chegou ao quartel-general de Turim. Cercado por camaradas e guerrilheiros comemorando a queda do fascismo, ele olhou em volta e perguntou, inocentemente:
“E onde está Ravera?” Alguém respondeu, envergonhado, que ela não estava por perto, que não podia estar, pois não estava mais no partido. E Togliatti respondeu: “Você deve estar brincando… Traga Ravera aqui e deixe que não se fale mais dessa tolice.”
“Para nós, foi um encontro emocionante”, lembrou Ravera, “nos abraçamos em silêncio. Nós não nos víamos há mais de 13 anos”. Sem debate ou qualquer confusão, Ravera foi imediatamente reinserida. Ela foi convidada a reintegrar o Comitê Central do partido, antes de ser eleita para o parlamento em 1948.
Camarada Ravera pede para falar
Voltemos um pouco. A posição revolucionária de Ravera tinha raízes distantes em uma atitude que colorira toda a sua família. Como para muitos de sua geração, o estímulo à ação política foram as trágicas consequências da Primeira Guerra Mundial; um irmão, Giuseppe, morreu no front, enquanto outro, Francesco, foi envenenado por gás.
Em 1918, um terceiro irmão, Cesare, foi recrutado e enviado para as trincheiras. Membro do Partido Socialista Italiano, Cesare confiou a Ravera que fosse à filial de Turim para pagar seus subsídios mensais para apoiar o partido. Foi assim que Ravera se aproximou dos círculos socialistas; ela logo se inscreveu e começou a dedicar cada vez mais tempo ao ativismo socialista.
Em uma época em que era quase impossível para as mulheres participarem ativamente da vida política e social, Ravera, no entanto, fez sua descoberta. Ela rapidamente se tornou protagonista do foco da elaboração teórica e da atividade política que Turim havia no período de L’Ordine Nuovo – o jornal semanal fundado pelo jovem Antonio Gramsci, em meio às ocupações das fábricas após a Primeira Guerra Mundial e à ascensão do fascismo. A ascensão de Camilla não foi fácil, dada sua timidez. Ela lembrou que ficou muito tempo incapaz de falar em público, por vergonha – a primeira vez que discursou em um comício foi porque um camarada mentiu e declarou à plateia “a camarada Ravera pediu para falar”.
Mas – como dizíamos – a jornada política de Ravera tinha raízes profundas em sua vida familiar. Em muitos escritos posteriores, ela associou seu “batismo” político a um episódio de sua infância. Com apenas oito anos, ela estava andando com a mãe pelas ruas de uma cidade no Piemonte quando se viu cara a cara com uma enorme falange de mulheres marchando atrás de um homem segurando uma grande bandeira vermelha. Foi uma marcha de trabalhadores em greve, e a pequena Ravera ficou assustada com seus slogans que gritavam:
Percebendo que estava com medo, minha mãe me disse que essas mulheres eram polidoras de ouro, protestando que não podiam se dar ao luxo de comer mesmo quando trabalhavam doze horas por dia e que suas mãos estavam sendo destruídas pelo ácido que usavam para polir o ouro. Ela me disse que eu não deveria ter medo de trabalhadores em greve e que muitas vezes teria motivos para lutar com eles. Perguntei para onde eles estavam indo e por que aquele homem estava as levando. Ela respondeu que não sabia para onde estavam indo, mas que o cavalheiro que segurava a bandeira vermelha era Filippo Turati, fundador do Partido Socialista Italiano.
Esse encontro “messiânico” com Turati e os grevistas foi, nas memórias de Ravera, o ponto de partida para toda a sua jornada política. Para ela, essa era uma vida marcada por sua necessidade urgente de “estar sempre entre a classe trabalhadora” – nunca perdendo contato direto com movimentos políticos reais. Nas décadas seguintes, Ravera insistiu que era precisamente esse sentimento sincero que a colocava em seu primeiro emprego, como professora.
Ravera mudou-se para ensinar em Turim e seus escritos logo atraíram as atenções de Antonio Gramsci, que se mostrou decisivo em direciona-la para um papel de liderança no recém-nascido Partido Comunista. Ele primeiro lhe confiou a responsabilidade por La Tribuna delle donne (uma seção famosa em L’Ordine Nuovo, por e para mulheres) e, em julho de 1921, a convidou para integrar a equipe editorial do jornal. O momento em que ela foi convidada para o conselho editorial aparece com frequência em seus escritos, como uma medalha presa ao peito:
Gramsci e eu conversamos um pouco e no final da conversa – ele havia me abordado como lei (a versão formal de “você” em italiano), e disse que queria que eu participasse do trabalho da equipe editorial. Tímida que era, tentei levantar razões triviais para não aceitar. Família, escola, inexperiência eram minhas desculpas; mas depois de ouvir pacientemente minhas bobagens, ele disse: “Estou formalmente pedindo para você se juntar ao conselho editorial de l’Ordine Nuovo”.
Diante de tal pedido de Antonio Gramsci, ninguém poderia dizer não. Quando Ravera aceitou, ela sabia que esse trabalho editorial a afastaria do ensino – mas mais importante: ela sabia que essa era uma opção de vida abrangente, que a tornaria uma militante em tempo integral.
Gramsci não escolheu Ravera apenas por sua “devoção”. Ele a nomeou por causa de seu temperamento, suas habilidades de organização e sua autoridade – algo que era devido, em parte, às características que ambos compartilhavam. Ravera e Gramsci mostraram uma capacidade rara de ouvir e um desejo sincero de entender os humores e aspirações da classe trabalhadora. Isso significava uma determinação em dar forma organizada às lutas – baseada não nas preferências de um intelectual, mas no desejo e na capacidade dos trabalhadores de se libertarem.
Uma mulher comunista
A partir de então, a vida de Ravera foi uma sucessão de papéis cada vez mais importantes, incluindo responsabilidades de nível internacional, como participar do Quarto Congresso do Comintern em novembro de 1922 como delegada do PCd’I. Durante essas muitas viagens ao exterior, ela conheceu algumas das figuras mais importantes do movimento internacional dos trabalhadores.
Estes variaram de Clara Zetkin – feminista e colaboradora próxima de Rosa Luxemburgo – a Khristo Kabakchiev – a representante do Comintern búlgaro que liderou o brinde aos “bolcheviques italianos” na fundação do PCd’I – o “sempre quieto e educado” Stalin, e Lenin. Ravera lembrou não apenas as palestras que Lenin deu na escola do partido, mas também seus comentários mordazes sobre a questão da emancipação das mulheres: “’sobre a questão das mulheres’, ele me disse, ‘esprema um comunista e lá você encontrará um reacionário.’
Contar essa relação entre questões de gênero e seus dias no lendário L’Ordine Nuovo foi uma das anedotas mais interessantes de Ravera sobre seu tempo como militante em Turim. No período imediatamente antes de os fascistas de Mussolini assumirem o governo, os camisas-negras intensificaram seus ataques a sindicatos e partidos operários – e todos da L’Ordine Nuovo também temiam a possibilidade de um ataque armado em seus escritórios. Um dia, um colega veio a Ravera e disse:
— Gramsci acha que talvez seja melhor você ir para casa.
— Por quê? — eu perguntei. — Aconteceu algo com meus pais?
— Não, mas há rumores de que os fascistas estão chegando. É melhor colocarmos você em uma distância segura – sabe-se lá o que poderia acontecer aqui.
— Você vai embora, então?
E eu respondi:
— Não, eu tenho que ficar aqui. Com licença, então, mas por que devo sair? Eu não obedecerei. Vá para Gramsci e diga a ele que você precisa de uma explicação.
Um pouco mais tarde, Antonio Gramsci chegou visivelmente envergonhado e disse: “Eu entendo. Fique aqui. Nós éramos errados.”
Além de liderar pelo exemplo, sendo uma mulher comunista em um partido liderado principalmente por homens, Ravera concentrou grande parte de seus esforços políticos em questões de gênero. Ela nunca se entitulou “feminista”, mas sempre – e apenas – “uma observadora atenta das condições de vida das mulheres”. Lutando com toda a sua energia contra a discriminação na sociedade, ela era inevitavelmente atraída pela situação das mulheres em particular. Ela travou essa batalha em La Tribuna delle donne, tentando dar voz direta às demandas das mulheres.
Apesar de sua grande determinação, muitas vezes era difícil para Ravera conseguir que as mulheres escrevessem. Elas ficaram felizes em falar sobre os temas que ela propôs, mas foram intimidadas pelo jornal, pela imprensa – coisas que sempre consideraram estar fora de suas próprias experiências. Diante dessas barreiras objetivas, Ravera e Gramsci começaram a colocar o problema (e isso foi verdadeiramente revolucionário, para a Itália da época) sobre como organizar um movimento que, embora ligado ao quadro das lutas trabalhistas, não seria formado de mulheres comunistas sozinhas,
mas sim de mulheres, não importando a que partido ou religião pertencessem, e mesmo de mulheres que não tinham intenção de se organizar em um partido; mulheres que compartilharam problemas, em um partido ou em outro, em uma classe ou em outra.
As tentativas de organizar um movimento de mulheres continuariam mesmo nos primeiros anos do governo de Mussolini; em 1924, Ravera foi encarregada de administrar a quinzena La compagna (“camarada mulher”). No entanto, a verdade é que após a Marcha Sobre Roma, no final de 1922, as prioridades do Partido Comunista eram mais uma questão de sobrevivência do que de luta aberta. Em uma situação política se voltando rapidamente para uma ditadura que buscava a aquiescência da hierarquia da Igreja Católica, os espaços para as demandas das mulheres se estreitavam ao ponto de desaparecer.
Somente após a Segunda Guerra Mundial o trabalho de Ravera sobre a questão das mulheres foi retomado. Agora que se tornou membra do parlamento, ela colocou seu nome em numerosos projetos de lei focados principalmente na proteção das mães e salários iguais para as mulheres e para os homens. Os primeiros anos do pós-guerra provariam ser os últimos de Ravera como uma figura verdadeiramente politicamente ativa – em 1958, ela se retirou da vida pública. Mais tarde, entretanto, ela voltou ao cenário político nacional, em 1982, quando o ex-partidário Sandro Pertini – hoje o primeiro presidente socialista da Itália – a nomeou a primeira mulher a ser senadora vitalícia. Somente em certo sentido foi uma escolha surpreendente. Como o democrata-cristão Giulio Andreotti colocou no Parlamento:
O fator dominante na escolha de Pertini foi uma oposição intransigente à ditadura. Para aqueles que propuseram como senador vitalício um banqueiro ilustre, irrepreensível em todos os aspectos, Pertini respondeu: “Ele não estava comigo quando estávamos lutando contra o fascismo”. Então, ele escolheu Camilla Ravera.
De fato, ela sempre esteve presente na luta contra o fascismo; foi a mulher que manteve vivo o Partido Comunista na sua hora mais sombria.
Sobre os autores
é formado em História Contemporânea e é especialista em Gramsci.