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Bancada feminista formada por Silvia Ferraro, Paula Nunes, Dafne Sena e Natália Chaves com Guilherme Boulos no lançamento da candidatura. Carolina Iara, que estava em isolamento por ser grupo de risco, faz parte da bancada mas não estava presente na foto.

“O que nos une é o socialismo e o feminismo popular a serviço da classe trabalhadora”

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Entrevistamos Natália Chaves, que começou seu processo de politização socialista na brigada de tradutores da Jacobin Brasil e hoje é covereadora eleita pela Bancada Feminista em São Paulo, para entender a estratégia da luta que vêm aquecendo o coração de uma nova geração militante que se insurge contra o racismo, o patriarcado e o capitalismo.

UMA ENTREVISTA DE

Victor Marques

No primeiro turno da capital paulista o PSOL elegeu para a Câmara de Vereadores, com mais de 46 mil votos, a Bancada Feminista, uma candidatura coletiva composta de 5 mulheres: Silvia Ferraro, Carolina Iara, Paula Nunes, Dafne Sena e Natália Chaves. A mais nova é Natália Chaves, nascida e criada na periferia da zona leste. Natália se define como militante ecossocialista e por um veganismo popular, e organiza grupos de estudo sobre a vida e obra de Lélia Gonzalez. Formada em letras e tradutora por profissão, começou seu engajamento político organizado traduzindo artigos para a Jacobin Brasil, logo nos primeiros meses de existência do projeto.

Agora eleita covereadora, Natália conversou com Victor Marques, colaborador da Jacobin Brasil sobre sua formação militante, a importância da campanha de Boulos e Erundina, um feminismo para os 99%, o significado do socialismo hoje e o futuro da esquerda brasileira. Encarando a ascensão do bolsonarismo como um sintoma da despolitização da classe trabalhadora, Natália tem se comprometido como um esforço incansável de propaganda, agitação e educação política, apontando para a necessidade de buscar sínteses e construir uma nova maioria social, com um horizonte comum de transformação.


VM

Natália, antes de se tornar cocandidata da Bancada Feminista, eleita nessa eleição municipal, você já tinha contribuído com a Jacobin Brasil, fazendo algumas traduções. Como foi seu primeiro contato com a Jacobin? E em que medida esse encontro contribuiu para a sua formação política?

NC

Eu tenho, realmente, um carinho muito especial pela Jacobin. Ela marcou demais o início da minha militância organizada. A minha trajetória é bem recente. Acho que é uma das marcas do meu perfil, no contexto da Bancada Feminista, que reúne militantes com perfis muito diferentes. Começou com as eleições de 2018. Com a ascensão do bolsonarismo, ainda antes dos resultados eleitorais, senti a necessidade urgente de fazer algo a respeito, de me mobilizar e me organizar coletivamente, ser uma resposta ao que estava acontecendo. Sentia que, independente do Bolsonaro ganhar ou não a presidência, já estava colocada a necessidade de muito trabalho político de conscientização. Se estávamos caindo no discurso bolsonarista, é porque já existia antes graves problemas de politização, conscientização, educação. Pensando nisso, fui para rua “virar voto”. 

Depois do choque das eleições, quis continuar engajada, procurando formas de me manter politicamente ativa. E como sou tradutora, me formei em Letras (com uma bolsa do Prouni em uma universidade privada), era o que eu sabia fazer e com o que mais podia contribuir. No começo achava que na militância precisaria fazer ações distantes do que já faço no meu cotidiano. Mas daí pensei: “Por que ir tão longe se eu posso fazer o que faço todo dia, que é traduzir?” Foi então que comecei a traduzir como militância, traduzir coisas nas quais eu acredito e gostaria de ver circulando pelo mundo. Antes da Jacobin já tinha até mandado currículo para outros lugares, me oferecendo pra traduzir, mas não havia recebido resposta. Cheguei na Jacobin por uma amiga minha que também tinha feito traduções. Ela tinha ido em uns dos primeiros eventos públicos da revista, quando ainda estava bem no começo, e em uma conversa com um camarada da revista perguntou se estavam precisando de tradutores voluntários. Ela foi atrás disso, me falou, pegamos o contato e foi super rápido, muito tranquilo o processo. E eu adorei! 

Infelizmente, trabalhei em poucos textos. Gostaria de estar traduzindo com vocês até hoje! Isso foi na primeira metade de 2019. Pouco tempo depois, passei a me organizar mais organicamente em uma tendência do PSOL: entrei para um coletivo chamado Subverta. E aí o tempo ficou mais curto. Mas essa foi a minha primeira experiência militante, depois do “vira voto” que era um ativismo mais solto, e entrar em contato com a literatura socialista internacional ajudou muito na minha formação. Foi uma experiência concreta importante porque pude juntar a minha profissão, minhas habilidades, com algo em que de fato acredito. Existem muitas formas de se colaborar na luta, não é? Tudo que a gente sabe pode ser usado a serviço da construção de uma nova sociedade. Então foi muito rico para mim experimentar isso na tradução dos textos da Jacobin, e vejo como a chegada da revista ao Brasil foi um marco para os socialistas, para os que querem fazer avançar a esquerda radical. 

VM

Como se deu o processo de construção da Bancada Feminista? Como foi sua trajetória de militante socialista organizada a alguém que estava diretamente envolvida em um projeto coletivo de disputa eleitoral? 

NC

Nenhuma de nós da Bancada Feminista entrou na política para se eleger, ou começou a militar já com essa ideia de ser figura pública, muito menos de ser candidata. Nós cinco já éramos militantes socialistas, então nosso projeto sempre foi muito maior que as eleições. Continua sendo. Como socialistas, não acreditamos que a solução possa vir exclusivamente das urnas. O que a gente acredita é que o trabalho político eleitoral pode ser também um dos caminhos para aumentar o nível de consciência da população. Então, é importante aproveitar o momento eleitoral para discutir ideias. Isso faz parte do nosso projeto. 

Nós cinco já militávamos no PSOL e em outros coletivos e movimentos, sempre tivemos um alinhamento político e desde o início do ano – acho que talvez esse seja um dos motivos do sucesso da Bancada Feminista: começamos a nos articular cedo no calendário – apresentamos o projeto de uma bancada formada apenas por mulheres. E não só por mulheres, mas por mulheres feministas que representassem a diversidade do feminismo, que fosse de maioria negra (disso não abríamos mão), com a presença de uma mulher trans e com mulheres que, profissionalmente, atuam em diferentes funções. 

Insistimos muito que somos um feminismo da classe trabalhadora. Somos mulheres trabalhadoras. A política não é nossa profissão. Cada uma tem o seu trabalho, e somos afetadas pelos processos de precarização do trabalho. Trazemos a centralidade do mundo do trabalho, das relações de classe, para o nosso projeto feminista. Foram com essas questões em mente que nos juntamos. Nunca pensei, nunca havia imaginado antes, que poderia ser candidata – e muito menos que seria eleita. Mas aconteceu. A gente tomou como uma tarefa militante. Com a vitória eleitoral, vemos como é importante que um feminismo popular chegue às grandes massas, e é mais uma tarefa militante que tomamos para fazer com muita disciplina, muita garra. É esse o feminismo que queremos levar adiante: sem hierarquias. É o que representa a candidatura coletiva – não personalizar o feminismo em nenhuma de nós. O feminismo é diverso e é dessa forma diversa que aparece na bancada feminista. O que nos une é o socialismo e o feminismo popular a serviço da classe trabalhadora. 

VM

Esse modelo de candidatura coletiva é ainda relativamente novo no Brasil. Temos visto as primeiras experiências nos últimos ciclos eleitorais. Como você encara os desafios de uma candidatura coletiva e o que você acredita que é a potência desse tipo de candidatura?

NC

A nossa candidatura, e também agora nosso mandato, é um espaço pedagógico, de pensar e criar outras formas de trabalhar em coletivo. Temos falado muito sobre o problema da fragmentação da esquerda, e da necessidade de construir sínteses. É algo especial que tenhamos sido capazes de construir uma candidatura que não é de um mesmo movimento, porque isso já traz uma diversidade e impõe, claro, o desafio de se criar sínteses. E no final conseguimos construir esse processo diverso, cooperativo, no qual as nossas diferenças nos fortalecem, e temos tirado coisas tão positivas dele, que é algo que me anima e me motiva demais. Acho que estamos precisando de mais espaços de construção coletiva, de um pensar coletivo. É isso que estamos praticando entre nós mesmas, sabendo criar nossas sínteses. 

Trazemos nossos conhecimentos e lutas para dentro do projeto. A nova maioria social que queremos construir não será de pessoas que pensam igual, mas de pessoas que têm um horizonte em comum e conseguem criar sínteses a partir de suas diferenças, divergências e afinidades. Outra potência da candidatura coletiva é a despersonalização. Acredito que, na perspectiva da esquerda radical, personalizar a luta em uma pessoa traz muitas dificuldades para o processo de emancipação, de exercício do pensamento crítico. Hoje vemos na política alguns problemas relativos a essa personalização. Por exemplo, muita gente enxergou na pessoa do Bolsonaro a salvação. 

Não quero dizer com isso, óbvio, que um mandato de uma pessoa só não pode ser combativo. Esse tipo de mandato compõe a ampla maioria dos mandatos de esquerda, e há vários destes que nos orgulhamos, que são autenticamente combativos. Mas há sempre o risco de a pessoa se tornar mais foco do que as questões que deveriam ser o centro do mandato. Já o mandato coletivo apresenta como foco de visão o projeto coletivo. Nós somos cinco pessoas formando o mandato, cinco pessoas trabalhando como covereadoras – não uma vereadora e quatro assessoras. Se acreditarmos efetivamente em mandatos coletivos, devemos pensar que o PSOL agora em São Paulo terá seis cadeiras, mas quinze parlamentares – entre parlamentares e coparlamentares – pois além de nós foi eleito também o Quilombo Periférico, outra candidatura coletiva. Uma vantagem é que podemos dividir entre nós as tarefas: por exemplo, podemos estar em cinco lugares diferentes. Multiplica-se a ação e presença do mandato. 

VM

Como você avalia os resultados das eleições municipais de maneira geral no Brasil, mas especificamente em São Paulo? 

NC

Acho que estamos crescendo. As eleições de 2016 já foram históricas: foi a eleição em que a Marielle Franco foi eleita vereadora no Rio de Janeiro, a Talíria Petrone foi eleita vereadora em Niterói, entre tantas outras. Começou ali um marco importante, que consolidou com a questão da importância de como isso move estruturas. Ficou muito nítido na eleição da Marielle. Marielle e Anderson não teriam sido executados se ela não estivesse confrontando o status quo da Câmara do Rio de Janeiro. Esse é o nosso projeto de toda eleição: não se acomodar às estruturas, mas sim subverter as estruturas. Em 2018, vimos a ascensão da extrema direita, é verdade, mas já tinha também essa semente de renovação: Talíria virou deputada federal, Áurea Carolina também chegou ao Congresso Nacional. A execução da Marielle em 2018 deixou bem nítido o quanto essas mulheres negras estavam subvertendo as estruturas. Estavam incomodando. 

Se em 2016 já tivemos vitórias nesse campo, depois da execução da Marielle isso tomou uma outra dimensão, uma outra importância. Já ouvi de mais de uma camarada que decidiu entrar na política institucional por causa da execução da Marielle: para difundir, para espalhar, para agitar. Criaram-se, de fato, sementes. Se quiseram calar Marielle, terão que calar muitas outras, que estão tirando coragem de onde nem tem para entrarem nesse ambiente violento e reacionário, que é a política eleitoral no Brasil. 

Nesses últimos anos, a população está vendo o estrago da extrema direita no poder. Sofremos ainda muitas derrotas, com o Bolsonaro consolidando uma sólida base de apoio no Parlamento. Por outro lado, muitas pessoas querem mudança, e querem ser elas mesmas a mudança. Esse governo vai contra a subjetividade das pessoas, que têm desenvolvido mais consciência sobre as opressões que sofrem, questões como racismo, machismo, misoginia, transfobia. As nossas vitórias foram uma resposta a isso, ao que temos vivido nesses últimos tempos. Temos um  recorde de candidatas negras, candidatas mulheres. 

Não esperávamos tantos votos para a Bancada Feminista, mas nossa campanha foi muita bonita, foi uma campanha de muita militância. Muitas pessoas que nos conheceram na campanha quiseram somar conosco durante o processo, e assim a campanha foi crescendo. Mesmo assim, não esperávamos ter mais de 46 mil votos – foi um presente, e também um voto de confiança. A responsabilidade aumenta, pois, fomos muito votadas em lugares em que sequer visitamos fisicamente, foi no “boca a boca”. Estamos na obrigação de nos dedicarmos a um projeto que abarque a cidade inteira, que saiba retribuir essa confiança. 

O desempenho do Guilherme Boulos também surpreendeu. Muitos diziam que ele jamais iria para o segundo turno, porque São Paulo é uma cidade muito conservadora, o Estado é governado pelo PSDB há 25 anos e etc.. Havia o receio de uma possível eleição do Celso Russomano, apoiado pelo Bolsonaro, mas, ainda bem, sua campanha foi um fracasso. Havia algum receio, claro, mas desde o começo ficou evidente que a candidatura Boulos e Erundina era a opção mais viável para a esquerda. Sou suspeita pra falar do partido, mas foi o projeto mais completo e a campanha mais bem feita, realmente popular. Boulos é uma liderança de um movimento popular, do MTST, a Erundina quando prefeita, pelo PT, fez uma gestão genuinamente popular, que até hoje é lembrada, um governo que aconteceu faz 30 anos, mas que mudou a vida das pessoas – e as pessoas lembram!

Então sempre foi uma chapa forte. Já esperava um bom resultado, mas confesso que não estava inteiramente confiante que chegaríamos ao segundo turno. Essa vitória política foi resultado de uma campanha militante, aguerrida, que jogava para ganhar. Estamos muito empolgadas pela oportunidade de podermos eleger essa chapa. Chegar na prefeitura para exercer o poder e usá-lo para melhorar a vida do povo trabalhador. Fico pensando: mais de um milhão de pessoas acreditaram em um projeto socialista para São Paulo. Muita gente, óbvio, que nunca nem parou para pensar o que é socialismo, mas o nome é o de menos, o mais importante é a prática, é termos um programa que atende as necessidades da maioria explorada e oprimida. Boulos e  Erundina são socialistas, e fazem parte de um partido abertamente e orgulhosamente socialista. Mais de um milhão de pessoas quiseram apostar nisso. 

Agora o trabalho vai ser fortalecer esse diálogo com a população, para mostrar para as pessoas que ainda não estão com a gente que o projeto do Bruno Covas não é para o povo. Nós somos do povo, e essa campanha trouxe com muita criatividade o trabalho de base, elevando a consciência da nossa classe, por isso está sendo histórica para além da questão institucional e das eleições. É histórica porque está promovendo conscientização e politização, trazendo esperança.

VM

O segundo turno produziu um fato novo interessante, que é uma frente de esquerda,. Para você qual a importância de eleger uma candidatura socialista, encabeçada por um militante de movimento popular e uma militante histórica da esquerda brasileira, que é a Erundina? 

NC

Estou muito animada! Nos dias que não consigo sair para panfletar e conversar com as pessoas, fico agoniada. Temos feito lives, entrevistas, e tudo com o intuito de fazer campanha para Boulos e Erundina. Temos várias outras tarefas, de longo prazo para a construção de uma nova sociedade. Até o último segundo dá tempo de fazer campanha. Aprendi em 2018 que não adianta você acreditar em algo e esperar que outras pessoas façam isso por você. Você precisa se somar à luta. É uma questão de nós, como cidadãos, escolhermos o que é melhor para a gente. 

Um dos desafios é a rejeição à política. Precisamos mostrar para as pessoas que a política define tudo em nossa vida. Tudo é política. A propaganda é importante. As pessoas são diferentes e as campanhas têm que ser feitas de formas diferentes, esse é um grande desafio das eleições que permanece, sendo eleitos ou não, porque o diálogo com as pessoas deve continuar. 

Como falamos em todas as entrevistas, somos socialistas e não queremos nos transformar em algo institucional, algo burguês. Não queremos nos acomodar, estamos entrando na política para mudar as coisas, então a importância das eleições dos camaradas da Câmara Municipal também é por isso, precisamos de uma base na Câmara e o mais importante, a base fora dela para realmente conseguirmos levar a cabo as grandes reformas na sociedade que pretendemos fazer. O desafio é fazer com que as pessoas que votaram não parem no voto, mas continuem ativas politicamente. Em uma cidade que é o centro do capitalismo no Brasil, a eleição de um candidato socialista é uma vitória e um desafio enorme. A classe proprietária usa todas as suas armas para não chegarmos nesse lugar, para nos deslegitimar e nos banir dos espaços de poder. Vimos isso com o próprio golpe do impeachment contra Dilma Rousseff, e olha que nem poderia ser considerado um governo socialista. 

O próprio momento da pandemia, de certo modo, traz uma abertura, assim como traz muitos desafios. Deixará um legado muito difícil, de fragilidade da economia, de desemprego, de pessoas com sequelas da doença. Se formos eleitos, teremos que enfrentar essa situação precária. Mas é um momento em que as pessoas estão abertas e mais dispostas ao novo. Em toda crise vemos isso. A sociedade está mais disposta a tentar políticas distributivas, de justiça social, temos que usar isso a nosso favor. É o momento de avançar as medidas que acreditamos serem necessárias para uma retomada, e não uma retomada dos rumos em que estava, mas por uma mudança radical de rumos. Com Boulos e Erundina, nossa militância tem mostrado a possibilidade de dialogar com pessoas diferentes, com forças diferentes, mas mantendo um programa radical socialista. Mostrar para as pessoas que é disso que a gente precisa, não de engravatados, como Covas e os outros candidatos da direita. 

VM

Você é uma jovem mulher negra, que faz questão de se identificar como classe trabalhadora. Como você enxerga a relação entre feminismo e socialismo, e entre as lutas antirracista e a luta de classes? E o que é socialismo para você?

NC

Começo pela última pergunta: o socialismo do qual eu falo é o ecossocialismo. Acredito em um socialismo em que a gente não só socialize os meios de produção, mas mude a lógica dos meios de produção, mude a lógica produtivista que vem junto com o capitalismo. Romper com tudo isso e trazer outra síntese que seja ecológica. Não é só uma questão de ambientalismo, mas tudo que a gente pensar, quando pensamos em feminismo, antirracismo, temos um pensamento ecológico e pensamos num todo. Por isso, pensar a questão do nosso impacto na natureza é crucial. Queremos o  ecossocialismo para ter uma vida plena, e não há vida plena se a gente trata a natureza como mero recurso. 

O capitalismo se aproveita das opressões que existem na sociedade e as alimenta. As opressões são exacerbadas pela exploração capitalista, se tornam indissociáveis. Quando falamos de feminismo, falamos de ecossocialismo e o mesmo acontece com o antirracismo. Não acreditamos em um feminismo que não seja anticapitalista, não queremos um feminismo das capas de revista, das grandes executivas, de “mulheres no topo” de governos neoliberais ou de empresas que exploram suas mulheres trabalhadoras. Não nos interessa um feminismo em que mulheres no topo vão explorar outras mulheres pobres e negras. Como vamos construir a igualdade entre as mulheres se o capitalismo precisa da exploração do trabalho de reprodução para sobreviver? Não devemos ter como enfoque o discurso meritocrático que repete com orgulho “fiz por merecer, trabalhei muito pra isso”, porque essa não é uma história bonita, é uma história de exploração. 

Falar do feminismo é também falar de uma política de segurança, falar da importância da luta contra o genocídio negro. Nossas lutas estão juntas. Falar de feminismo é falar de antirracismo. Mães perdem seus filhos continuamente, isso também é questão de justiça reprodutiva, é questão de garantir o direito às mulheres da periferia, trabalhadoras pobres, de terem seus filhos e continuarem com seus filhos. Sabemos quem mais luta contra o genocídio da juventude negra são as mães, todos os movimentos de mães que temos no Brasil mostram a relação entre o feminismo com o antirracismo. Mostra, também, como o capitalismo impede que tenhamos avanços concretos. 

O extermínio da juventude negra é também um mecanismo de reprodução do capitalismo, que precisa determinar o lugar das pessoas na sociedade, o lugar de poder de cada um. Para nós, realmente, não existe uma coisa sem a outra. Temos muita inspiração no manifesto do “Feminismo para os 99%”, Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya, e Nancy Fraser. Se 99% da sociedade faz parte da classe trabalhadora, queremos um feminismo para toda a classe. A representatividade é muito importante: precisamos trazer mais mulheres negras para a luta, ainda não somos bem representadas nos espaços de poder. Mas uma representatividade vazia não agrega à luta. Não adianta nada ter pessoas negras com visibilidade para defender um projeto que oprime outras pessoas negras. É crucial ocuparmos os espaços, ter representatividade, mas com um projeto coletivo de transformação. Isso é o que a gente tenta trazer na Bancada Feminista. 

VM

O que você pensa sobre o futuro da esquerda no Brasil? Quais são os desafios e as possibilidades que se abrem?

NC

Um dos desafios centrais é a reorganização da esquerda. A esquerda brasileira teve um momento de ascensão nos anos 80, no processo de redemocratização, e isso marcou um ciclo político. Podemos enxergar semelhanças entre esse momento e nossa conjuntura atual. A esquerda se fortaleceu no momento de redemocratização, mas depois foi perdendo força social conforme se acomodava na institucionalidade. E agora, com o governo do Bolsonaro, de extrema direita, de tendências autoritárias, de certa forma, o que a gente precisa construir é um novo período de redemocratização, e dessa vez uma democratização profunda e verdadeira, a partir da construção do poder popular. O movimento deve ser de voltar para as bases e dialogar, com projetos em comunidades, presença nas ruas, conversando com as pessoas, fazendo com que a política não seja algo distante. 

Uma grande tarefa para a esquerda é ir para além das eleições e usá-las como um momento de fortalecimento da sua base militante para continuar lutando e resistindo nos próximos anos. E claro, realmente reivindicar, não ter vergonha de se dizer socialista, ecossocialista. Não podemos ter medo de ser radical. Vivemos numa sociedade radicalmente desigual, uma sociedade radicalmente opressora, radicalmente exploradora. O capitalismo é muito mais radical que a gente. Precisamos, portanto, de soluções radicais também. 

Temos que aprender a fazer frentes sem diluir nosso programa – criar sínteses. Você pode não ser do mesmo partido ou organização que eu, mas se o nosso horizonte comum for o da transformação social e da construção do projeto socialista, a gente consegue avançar juntos, fazendo a crítica e aprendendo com o outro. A crítica é importante, é o que nos permite avaliar a conjuntura e avançar, melhorar nosso movimento e nossa chance de vitória. Para isso, é bom que a crítica seja propositiva, que nos permita construir algo a partir daí. Construção é uma de nossas palavras chave: não queremos conservar nada, não queremos manter nada do jeito que está aí, queremos construir e reconstruir, e para isso vamos precisar destruir várias coisas também. Para que haja abertura de espaços para a renovação. 

No fundo, as pessoas querem um governo que as proteja, que garanta segurança, saúde e direitos. Não há nenhum projeto político que responda mais a isso do que o socialismo. Então, acredito que devemos ter confiança no nosso projeto. E construí-lo com muito diálogo e muita articulação. Espero que as candidaturas e mandatos coletivos possam trazer novos ares para a política institucional e que o ecossocialismo seja mais apropriado pela esquerda em geral, que ainda precisa avançar na compreensão da centralidade das questões ecológicas. 

É muito fácil redes como a Globo fazer novelas que trazem ideia de empoderamento feminino e negro e usar seus espaços para fortalecer políticas de direita. Temos que lutar contra essa cooptação das pautas. A nossa luta tem que ser sempre com um olhar para a totalidade, nunca desmerecer uma luta anti-opressão, nunca desmerecer iniciativas honestas e sérias, sempre pensando em uma sociedade mais justa. Nosso projeto é de vida. Em um momento de morte, como é uma pandemia, quando temos que conviver diariamente com a morte, precisamos mostrar que o nosso projeto é um projeto do cuidado, da promoção e defesa da vida. O capitalismo é um projeto de morte, genocida, que esmaga lentamente toda a população e rouba diariamente nossa vida. Não precisa ser assim. As coisas podem ser diferentes. Isso é muito importante para ganharmos novos corações e mentes. É meio chavão, mas é verdade. Esses clichês também trazem verdades. Temos que levá-los a sério.

Sobre os autores

é formada em letras, militante ecossocialista organizada na corrente Subvertamos e covereadora eleita pelo PSOL em São Paulo.

é professor da Universidade Federal do ABC e diretor de desenvolvimento da Jacobin Brasil.

Cierre

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Published in América do Sul, Eleições, Entrevista and Política

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