UMA ENTREVISTA DE
Eoghan GilmartinDepois de disputar quatro eleições gerais em menos de quatro anos, em janeiro deste ano, a radical aliança anti-austeridade Unidos Podemos finalmente entrou no governo. Juntando-se aos socialistas de Pedro Sánchez (PSOE), tornou-se parceira na primeira coalizão de esquerda da Espanha desde os anos 1930.
No entanto, dois meses após assumir o cargo, o governo mergulhou em uma crise nacional sem precedentes, quando a Espanha se tornou um dos epicentros da pandemia da COVID-19. Hoje, enquanto a segunda onda surge – e a Espanha se coloca entre as maiores taxas de infecção da União Europeia (UE) – a coalizão está sob constante pressão de todos os lados.
A direita está perseguindo uma estratégia de polarização contra o governo, à medida que busca alimentar as tensões em torno de novas restrições da COVID na região de Madri, duramente atingida. O Vox, partido de extrema direita, apresentou uma moção de censura ao governo Sánchez. Ao mesmo tempo, o establishment do país também lançou uma campanha “judicial” de lawfare contra a coalizão, enquanto figurões do judiciário e das forças de segurança pressionam pelo indiciamento de funcionários do governo por motivação política.
O alvo de maior visibilidade desta campanha foi o líder do Podemos e vice-primeiro-ministro Pablo Iglesias. Absurdamente, um juiz conservador está tentando indiciá-lo por relação com um caso de espionagem ilegal da polícia contra a própria liderança do partido. Embora a mais alta corte criminal do país, a Audiencia Nacional, tenha reafirmado a condição de Iglesias como parte lesada no chamado caso Dina, o juiz do caso agora solicitou que a Suprema Corte acusasse o Iglesias de revelar segredos, sabotar informações e apresentar falsa acusação.
Iglesias continua desafiador – argumentando que esta armação do judiciário é prova de que a presença do Podemos no governo inspira medo entre as elites do país. Nesta entrevista, ele disse a Eoghan Gilmartin, da Jacobin, que, apesar das perdas eleitorais de seu partido no ano passado, ele agora se encontra em uma posição para moldar significativamente a paisagem pós-COVID da Espanha – não apenas rompendo com a ortodoxia econômica, mas também estabelecendo um novo horizonte republicano para superar a monarquia pós-franquista do país.
A tempestade perfeita
EG
Você afirmou que o plano de recuperação pós-pandemia é uma oportunidade para definir um novo rumo para o Estado espanhol – observando que “nos próximos dez meses tomaremos decisões que podem mudar o país”. Mas se isso apresenta uma oportunidade histórica, a pandemia também se trouxe muitas outras crises, criando uma espécie de tempestade perfeita. Vemos uma crise social, a direita radicalizada endurecendo o conflito político, as tensões em torno da Catalunha e a crise na monarquia. Como você vê essa combinação de desafios?
PI
Uma boa pergunta. Acho que é importante ter uma visão panorâmica e tentar – por mais difícil que seja – ver o que está acontecendo como um historiador faria. Pois, atualmente, estamos definindo um momento histórico.
Muitos economistas reconhecem que, para encontrar um momento comparável a este, você teria que pensar na crise de 1929 ou na reconstrução da Europa após a Segunda Guerra Mundial – cada um abriu possibilidades políticas sem precedentes, apontando em direções diferentes. O New Deal teve o que poderíamos chamar de versão “social”, nos Estados Unidos de Franklin Roosevelt, mas também houve um New Deal de Mussolini, e outro que conduziu ao Terceiro Reich, rumo ao grande confronto geopolítico do século XX: a Segunda Guerra Mundial, dando continuação a primeira.
Vendo as coisas como faria um historiador como Immanuel Wallerstein, poderíamos dizer que a Grande Guerra na Europa teve dois capítulos, ambos expressando o mesmo tipo de correlação de forças geopolíticas. E se olharmos para o que está acontecendo hoje, vemos que a crise atual está ocorrendo no contexto da crise financeira de 2008. Nos Estados Unidos, Donald Trump é provavelmente a expressão mais recente da deterioração do sistema político estadunidense.
Este é um momento em que tudo é possível – para melhor ou pior.
Vamos trazer este contexto de volta para uma “província” – o Estado espanhol, a quarta maior economia da zona do euro, um país do sul da Europa cujo padrão de desenvolvimento nas últimas duas ou três décadas foi fortemente marcado pelo turismo internacional, pelo desenvolvimento imobiliário e pelas implicações que isso tem em termos de corrupção. E vamos entender o que isso significa em termos do desafio econômico que enfrentamos e a decisão do Conselho Europeu neste verão. Este último viu a União Europeia, podemos dizer, se auto-ajustando, dizendo que havia rompido com o paradigma da austeridade e fazendo algo como euro-obrigações de 70 bilhões de euros em transferências e outros 70 bilhões em crédito.
Certamente, quem sabe o que é a UE – este clube, suas instituições de governança – não teria imaginado tal virada.
Se olharmos para a Espanha, devemos acrescentar que, pela primeira vez desde a Guerra Civil, existe um governo com o DNA político que esta coalizão possui, além dos conflitos tradicionais dos últimos dois séculos em torno do plurinacionalismo e da questão territorial. E, a esse quadro, temos que acrescentar a crise da monarquia e a presença ultradiretista sem precedentes no Congresso. Entre o bloco das três forças de direita, ao lado do Partido Popular e dos Ciudadanos, o ultradireitista Vox lidera a ofensiva cultural – o Vox não tem apenas seus parlamentares, ele é fundamental para a compreensão do bloco de direita na Espanha, que muitos chamariam de bloco monárquico.
Isso significa que se trata de um momento em que tudo é possível – para melhor ou pior. Provavelmente, o barulho ensurdecedor que nos faz sentir tão sitiados significa que fica mais difícil olhar as coisas com olhos de historiador e compreender as grandes oportunidades que temos pela frente. Nossa obrigação no governo é aproveitar essas oportunidades, com a modesta influência que possuímos. Se não tivéssemos essa influência, não seria possível explicar a agressão contra nós pelos poderes entrincheirados e a mídia que os escolta.
Acho que temos que explorar a oportunidade e embarcar em uma série de tarefas históricas. Em termos econômicos, isso significa superar a posição subalterna da Espanha na divisão europeia do trabalho. No plano político, significa avançar com base nos princípios republicanos rumo a um novo pacto social e político na Espanha que melhor se assemelhe à realidade de nosso país.
EG
Você disse que um dos principais objetivos do plano de recuperação é fortalecer o setor público. O que isso envolveria nessa fase do capitalismo? Estou pensando particularmente no livro de Rubén Juste sobre o índice IBEX 35 da bolsa, no qual ele explica como a soberania do Estado foi esvaziada nas últimas três décadas.
PI
O que herdamos são os resultados de uma batalha fracassada para defender o setor público. O livro de Rubén Juste contém muitas ideias para explicar o desenvolvimento de um paradigma neoliberal; isso não começou com Rodrigo Rato, arquiteto do pensamento econômico do Partido Popular, mas já com nomes como Carlos Solchaga, Pedro Solbes e Miguel Sebastián [ministros da Economia do PSOE quando Felipe González era primeiro-ministro nos anos de 1980 a 1990]. Há muitos anos existe um consenso sobre o que deve ser feito pelo Estado, embora tenha diferentes variantes – seria absurdo dizer que o estilo do governo de Áznar era o mesmo dos premiês do PSOE, González ou José Luis Rodríguez Zapatero. Mas podemos dizer que as coisas boas que a esquerda lembra de Zapatero geralmente não têm a ver com a economia.
Nosso governo é diferente, porque nós, do Podemos, estamos aqui. Nos últimos quatro anos, a batalha fundamentalmente era sobre estarmos no governo ou não. Depois das eleições de 2015, houve uma luta enorme para nos impedir, o que levou a uma segunda eleição geral alguns meses depois. Depois disso, o resultado foi que o Partido Popular governou; e se, em 2018, o PSOE decidiu apresentar uma moção contra o PP, como a que já havíamos defendido, foi porque eles não eram obrigados a nos ter no governo com eles.
As eleições de 2019 foram repetidas, novamente para nos impedir de estar no governo. Depois, digamos assim, de subir uma colina muito íngreme e perdendo muitas penas ao longo do caminho – perdendo apoio e perdendo lutadores – finalmente conseguimos. Estamos no governo e conquistamos a existência, na Espanha, do próprio governo que a elite econômica e seu poder midiático há quatro ou cinco anos tentam evitar.
Pablo Iglesias (à direita), Irene Montero (ao lado) e outros membros do Podemos celebram o resultado da moção de censura no Congresso dos Deputados espanhol, em 1º de junho de 2018 em Madri, Espanha. (Pablo Blazquez Dominguez / Getty Images)
Somado a isso, enfrentamos uma crise social e econômica sem precedentes, em decorrência da pandemia. Isso obrigou parte do governo do PSOE a rever alguns elementos de seu pensamento econômico – basta pensar no que os ministros da economia do governo pensavam sobre a dívida e os gastos públicos antes da pandemia chegar. Uma piada muito contada na Espanha diz que grandes desastres transformam ateus em crentes e, como diriam os economistas, transformam neoliberais em neokeynesianos. O que aconteceu na Espanha é que um governo de coalizão, que é tido como o pior pesadelo do establishment, não só existe hoje, mas tem que administrar 140 bilhões de euros provenientes de fundos europeus e um plano de recuperação.
Embora não sejamos fortes o suficiente para administrar um dos grandes ministérios da economia, fazemos parte da coalizão, temos uma vice-presidência e quatro ministérios, e o orçamento é negociado conosco. E algo no espírito dos acordos europeus é que você precisa de um Estado empreendedor que implemente uma série de reformas para que o poder de compra de amplas camadas da sociedade não seja minado pela crise.
Essa é a abordagem subjacente. A partir daí aumentar o salário mínimo; fazer a manutenção da proteção social das empresas e trabalhadores por meio do ERTE [plano de licença]; e o programa de renda mínima para subsistência [introduzida pela coalizão]. Um escudo social cheio de defeitos mas sem precedentes na história do nosso país. E isso também significa aceitar que o setor público deve voltar a ter um papel estratégico.
O governo fará tudo que eu gostaria, nesse sentido? Não, porque a negociação resulta de uma correlação de forças no parlamento. Ele fará mais do que qualquer outro governo em quarenta anos? Acho que já o demonstramos e é isso que preocupa os adversários do governo. Pessoas que eles constantemente chamam de “bolcheviques perigosos” estão no governo quando um momento keynesiano chega – então posso entender por que eles estão arrancando os cabelos e rangendo os dentes.
EG
E isso também pode significar medidas como a criação de empresas públicas? Isso também não é decisivo para a transição verde?
PI
Você pode imaginar o que eu penso. Acabamos de gerar muita discussão no governo sobre a privatização do Bankia. Para nós, o Bankia deveria ser um banco público, mas com os nossos 35 deputados foi muito difícil convencer o partido com o qual estamos no governo – um partido com o qual temos relações muito cordiais, mas que é a cria de Felipe González, de Solchaga, de Pedro Solbes, de Miguel Sebastián. Acredito que vamos dar passos em uma direção interessante. Concordo com você. Você consegue realizar uma transição verde séria sem a presença ativa do setor público? Acho isso difícil de acreditar.
Lawfare
EG
O Podemos é vítima do que alguns chamam de “arapongagem” – operações manipuladas por agentes do Estado espanhol. Na América Latina, nos últimos anos, vimos a lei ser implantada como uma tática política – Lula, no Brasil, é o caso mais paradigmático, mas também poderíamos olhar para a proibição de Rafael Correa e a perseguição a Cristina Kirchner. O que você acha do lawfare, enquanto uma ferramenta que as forças reacionárias usam contra os movimentos progressistas?
PI
A direita espanhola deseja, inequivocamente, latino-americanizar, no mal sentido, o Estado espanhol – eles gostariam de mais um país como certos países latino-americanos, onde as elites possuem totalmente o Estado. A direita espanhola considera o Estado e as instituições como seus; até certo ponto, é verdade que eles têm uma poderosa penetração ideológica no “deep state”, mas não tanto quanto gostariam.
Houve ataques contra o Podemos e todos os inimigos da direita? Sim, isso foi atestado em comissão parlamentar e na esfera judicial, e talvez alguns dos responsáveis vão cumprir pena de prisão. O que isso significa? Que, embora tentem, eles não podem se sair bem, justamente por causa da configuração histórica do Estado espanhol.
As autoridades judiciais espanholas são conservadoras? Alguns dizem que sim. Mas conservador a ponto de todos os órgãos judiciais aceitarem ser a mera corrente de transmissão dos interesses da direita econômica e política? Não acredito. Pode haver algum ativismo jurídico nessas autoridades, mas acho que será difícil para aqueles que desejam assumir o controle absoluto do Estado ter sucesso. E podemos refletir sobre o porquê disso. A Espanha está na UE – e embora não se deva ter ilusões na UE, é difícil imaginar que os interesses daqueles que querem fazer do Estado sua propriedade coincidam com os interesses da classe capitalista interessadas na Europa.
Na verdade, pensando historicamente, uma das grandes virtudes da direita espanhola no passado foi sua capacidade de negociação. O ex-rei, Juan Carlos, que chegou ao trono após a morte de Francisco Franco, em 1975, idealizou uma jogada histórica para os interesses conservadores na Espanha, precisamente porque foi capaz de promover uma linha virtuosa de comunicação com os elementos progressistas. Eu teria preferido que a recuperação da democracia na Espanha fosse mais profunda; que houvesse uma limpeza nas forças de segurança, no exército, o que não aconteceu; que houvesse alguns resultados diferentes; e que a incorporação na UE ocorresse em termos diferentes.
Mas Juan Carlos representou a garantia de que certos avanços democráticos – ou como assim nos foi vendido, e pode ter havido alguma verdade para eles – poderia acontecer. É revelador que alguns digam que esse chefe de Estado – que sempre procurou se distanciar do simbólico abraço da direita – serviu de garantia para esses avanços ao mesmo tempo em que preservava a monarquia. Qual era o seu interesse? Que a monarquia continuasse a existir. Então, o que ele teve que fazer?
Uma solução – que não é má do ponto de vista de Juan Carlos – era ser condição de possibilidade de avanços democráticos, ao mesmo tempo que assegurava que não haveria transição econômica, que as mesmas famílias que enriqueceram por causa de sua proximidade com o Estado franquista poderia se reconverter em empresários democráticos. No momento atual, existe um direito econômico e político capaz de firmar acordos com o outro lado do espectro político, inclusive o nosso? Acho que não, entre outras coisas porque a ultradireita os marginalizou politicamente e porque há um processo de bunkerização que os coloca, pela primeira vez em mais de 80 anos, em uma posição muito fraca em relação às estruturas do Estado. Sua hiperventilação nos últimos tempos é mais uma expressão de fraqueza do que de força.
O jogo acabou para eles? Não, e talvez essa direita vença e transforme a Espanha no Brasil – e faça aqui o que fizeram com o Lula. Acho que aqui eles vão ter um pouco mais de dificuldade, justamente por causa da história e da configuração do Estado. Não que eu ache que as coisas serão fáceis para nós ou que não haverá períodos difíceis. Nenhum ser humano está livre do risco de ser atingido por uma bala perdida. Mas tenho a sensação de que, dado o processo histórico atual, temos possibilidades pela frente – modestas, mas interessantes.
EG:
Absurdamente, o juiz do chamado caso Dina transformou você – uma das vítimas de uma campanha de espionagem policial – em um suspeito neste mesmo caso. É claramente difícil explicar isso para um público internacional. Você poderia tentar?
PI
Sim, e não é tão difícil de explicar. No final de 2015, pouco antes das eleições gerais, roubaram o celular de um importante membro da minha equipe. Isso não é opinião, mas o que aparece nos arquivos da polícia. Apareceu a prova de que o comissário de polícia José Manuel Villarejo – agora preso por crimes gravíssimos, e que basicamente dedicou toda a sua vida à espionagem policial – entregou o conteúdo deste celular a jornalistas, alguns deles publicados pela mídia de direita para nos prejudicar.
Procuraram por provas, neste celular, de financiamento ilegal. Eles não encontraram nada. Talvez pretendessem criar um escândalo sexual, mas novamente não encontraram nada que pudesse permitir isso. E o que eles encontraram foi o proeminente membro parlamentar do Podemos, Pablo Echenique, cantando uma música rude e algumas mensagens que eu enviei para um chat privado, digamos que também tivesse um conteúdo um tanto rude, referindo-se a um jornalista, a quem eu tinha que pedir desculpas. Eles encontraram muito pouco, mas publicaram de qualquer maneira para tentar nos prejudicar o máximo possível.
Agora, a história que eles estão tentando espalhar é que inventamos essa espionagem para que pudéssemos denunciar o fato de que estávamos sendo espionados – e assim descobrir que fomos vítimas durante a campanha eleitoral. Mesmo para um escritor de romances policiais, essa é uma história muito instável, diante dos fatos comprovados do caso e do que foi comprovado no Congresso a respeito dos componentes dessa arapongagem que tenta nos atacar.
Eles queriam nos destruir, como na América Latina, mesmo sabendo que não há nenhum recurso ilegal, mas como possuem jornais, rádios e canais de TV, eles podem dizer por horas a fio que você tem uma conta bancária em algum paraíso fiscal, que a Coreia do Norte, o Irã e a Venezuela nos financiaram, que nosso financiamento é ilegal – esse tipo de coisa.
Como eu acho que tudo isso vai acabar? Em última análise, acho que a Suprema Corte vai rejeitá-lo e não dará em nada, porque qualquer outra coisa seria um escândalo internacional. Mas eu acho que isso é bom para eles, porque tem permitido, por muitos meses, ter certeza de que é basicamente sobre isso que se fala. E depois, eles vão inventar algum novo escândalo e haverá uma mídia poderosa pronta para dizer todo tipo de barbaridades sobre nós.
Futuro do Podemos
EG
Desde sua fundação, há um debate estratégico no Podemos sobre sua relação com o PSOE. No Congresso de Vistalegre II – para não voltar mais – esta foi uma consideração central. E em um artigo de 2015 para a New Left Review (“Understanding Podemos”), você disse: “Nosso objetivo vital este ano é ultrapassar o PSOE – uma pré-condição essencial para a mudança política na Espanha”. Mas você não o superou – e em vez disso, houve uma coalizão de governo liderada por esse mesmo partido. Qual é a sua expectativa de mudança política agora, dado o lugar predominante do PSOE na coalizão? E, de maneira mais geral, que balanço você tiraria desses debates e da experiência atual de governo em conjunto?
PI
O momento crucial em qualquer debate político é quando ele tem que se traduzir em uma decisão política. E houve um momento em que tivemos que tomar uma decisão política sobre esse assunto.
Esse momento veio com a moção de 2018, contra o premier de direita Mariano Rajoy. Isso aconteceu depois que já havíamos apresentado uma moção simbólica em 2017, quando estávamos no mesmo patamar do PSOE nas pesquisas.
Tive um debate com um pequeno grupo de camaradas, no qual chegamos a esta conclusão: apoiaríamos uma moção que entregasse cargos governamentais apenas ao PSOE – de modo a deter o avanço da direita no auge do impasse em torno da independência catalã. Havia a possibilidade de sermos a maior força progressista nas próximas eleições, já que estávamos melhor na oposição, embora as pesquisas mostrassem que a direita conquistaria a maioria absoluta.
Mas se permitíssemos que o PSOE governasse sozinho, ou um governo do PSOE conosco em uma posição muito reduzida – como no final das contas aconteceu – seria difícil para nós alcançarmos uma posição hegemônica no curto prazo. Tínhamos consciência de que estaríamos entregando a Pedro Sánchez um enorme peso eleitoral, por muito tempo, se o fizéssemos.
O líder da coalizão Unidos Podemos, Pablo Iglesias (à esquerda), cumprimenta o primeiro-ministro interino da Espanha, Pedro Sánchez (à direita), após fazer um discurso durante o debate de investidura no Parlamento espanhol em 4 de janeiro de 2020 em Madri, Espanha. (Pablo Blazquez Dominguez / Getty Images)
A chave da discussão era que, em um momento em que éramos a principal força política da esquerda, teríamos que assumir que não governaríamos por décadas, mesmo que ganhássemos as eleições, porque era impossível que, dada a atual correlação de forças, eles nos permitissem governar. A única possibilidade de sermos uma força governamental seria entrar com o PSOE – tendo ele o maior peso. Isso é cheio de riscos, porque eles podem ter prejuízo de qualquer maneira – como de fato está acontecendo – e porque é muito mais difícil obter qualquer recompensa eleitoral quando você é o parceiro minoritário. Mas pelo menos apresenta novas possibilidades.
Isso nos permite fazer parte da direção do Estado, nos permite formar quadros de governo que não tínhamos, nos permite um entendimento e uma práxis no Estado que não se obtém dos governos locais ou regionais. Permite-nos participar – ainda que modestamente – de decisões cruciais sobre os rumos que o país deve seguir. Sempre teremos que lutar com uma mão amarrada enquanto todos os nossos adversários têm a mão livre – sempre teremos que enfrentar um ecossistema midiático pesado contra nós. Teremos inimigos muito poderosos. Mas, novamente, temos que adotar a visão de um historiador e entender como eram as condições políticas no passado. Pessoas que pensam como nós sempre tiveram que trabalhar muito.
Tomamos a decisão mais difícil – é muito mais confortável, mesmo eleitoralmente, ser uma oposição de esquerda permanente. Qual foi, historicamente, o principal canal pelo qual as forças à esquerda da social-democracia acumularam peso eleitoral? Basicamente, criticando pela esquerda.
Mas acredito que fizemos algo extremamente importante. Somos a única força – ouso dizer – de nossa tradição política que está no governo de um país da UE, na verdade, na quarta maior economia da zona do euro. Nesses nove meses de governo, já conseguimos coisas que bastariam para uma legislatura completa. Gostaríamos sempre de ter ido mais longe, sempre teremos críticas da esquerda, como é normal.
Mas, acima de tudo, estamos formando quadros estatais. Quando eu olho para a minha equipe e como eles chegaram aqui, eu vejo que mesmo depois de apenas nove meses, temos cada vez mais pessoas preparadas para governar este país. E nós somos jovens – uma força política que chegou no governo depois de existir por apenas seis anos. Quando você compara a idade média dos ministros, secretários de Estado, diretores-gerais e chefes de gabinete do Unidos Podemos, em comparação com os do PSOE, há uma diferença de quinze ou vinte anos. Acho que, em termos históricos, fizemos a coisa certa. Está cheio de riscos, de perigos; não há garantia de que tudo dará certo. Mas mesmo que a outra opção tivesse dado certo, mesmo que isso nos permitisse ultrapassar o PSOE, acho que nos encontraríamos em uma situação em que eles nunca nos teriam permitido governar.
EG
A imagem do Podemos, vista internacionalmente, pelo menos inicialmente se assemelhava à proposta de Ernesto Laclau para uma força anti-establishment que polarizou o campo político entre as castas e o povo. Este foi também um momento de máquinas eleitorais com estruturas muito verticais. Como você vê a trajetória do Podemos como força política, nestes últimos seis anos – e o que sobrou da ideia original?
PI
Acho que o erro está em confundir uma estratégia discursiva conjuntural com uma espécie de paradigma teórico fechado. O Podemos alguma vez foi uma força política transversal? Não, isso é mentira. O Podemos foi uma força política que – como o tempo mostrou – se baseou nos eleitores tradicionais de forças que operam dentro do espaço político de esquerda. Essencialmente, do PSOE, das forças independentistas ou nacionalistas de esquerda nas nações históricas sem Estado, e depois alguns setores mais exaustos de outros projetos políticos. Da mesma forma, não faz sentido dizer que o 15-M, um movimento anti-austeridade, não pertencia a um espaço ideológico-cultural progressista.
A melhor prova disso é que quando as potências econômicas que avançaram em direção aos Ciudadanos como antídoto ao Podemos, o partido reivindicou um discurso progressista. Mais tarde, ficou claro o que eles realmente são. Mas, inicialmente, eles tinham que se parecer conosco, mas em um estilo diferente, vendendo-se como o “Podemos sem Venezuela”.
Certos devaneios teóricos de um tempo atrás persistiram, mesmo depois de a práxis ter demonstrado a realidade. Acho que fomos capazes de construir uma outra esquerda possível, que falava uma linguagem mais eficaz e falava para muito mais pessoas sem abrir mão de seu programa. Acho que nos mostramos não-sectários em termos de compreensão de quais ferramentas teóricas foram úteis para a compreensão do momento presente. O que havíamos aprendido com a América Latina foi que a perspectiva nacional-popular era uma forma de avançar em uma direção progressista de esquerda muito mais eficaz do que velhas identidades ligadas à estética do movimento operário e da esquerda tradicional na Europa. Mas, na realidade, uma práxis pós-neoliberal implicava isso.
E a política consiste em ocupar o terreno disponível. Não é como escrever um doutorado, quando você escolhe o que vai investigar e depois estabelece hipóteses nas quais já está definindo suas conclusões. A política é muito mais difícil – o trabalho de um líder político é infinitamente mais difícil teoricamente do que o trabalho de um cientista político.
Tive muito menos tempo para estudar do que antes. Mas hoje enfrento problemas muito mais reais. E a política se trata sempre, de alguma forma, da ocupação dos espaços disponíveis que outros atores deixam abertos. Isso também produz situações paradoxais em que alguns dos que defendiam o “transversalismo” como princípio acabaram tendo que se refugiar na identidade verde – algo muito mais restrito.
Nesse sentido, temos um vasto leque de desafios pela frente. A próxima pergunta será: “Então, que espaço existe para o Unidos Podemos crescer?” A resposta é a república. A república pode se tornar o horizonte, o significante vazio, que serve à defesa dos serviços públicos, da modernização econômica, dos direitos das mulheres, dos direitos dos grupos subalternos, do direito ao trabalho na economia pós-fordista e nas identidades cívicas nacional, plurinacional, laica. Isso significa unir a tradição democrática de uma Espanha concebida em diferentes termos. Essa força republicana que vai nos permitir enraizar no Estado com maior poder eleitoral, com o discurso já robusto que acredito ser o do Podemos.