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Lenin com um gato na aldeia de Gorki, perto de Moscou, 1922, em uma fotografia de sua irmã, Maria. Fotografia: Cortesia SCRSS

As mentiras que contamos sobre Lênin

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Tradução
Aline Klein

O pensamento revolucionário de Vladimir Lenin e os debates que moldaram a Revolução Russa têm sido incompreendidos igualmente pelos amigos e inimigos.

Ao longo dos anos, a Revolução Russa de 1917 tem sido objeto de estudo na projeção de morais edificantes. Todos que a analisam ela buscam descobrir onde está o grande erro que levou ao desastre final, seja moral, político ou ideológico.

Ao descobrir o erro, podemos estar seguros de que teríamos evitado um desastre e sentir superioridade a todos aqueles que ainda não enxergaram os erros de seus caminhos. A realidade humana da revolução, o sentido irresistível de se ver absorto em um redemoinho de eventos, se perde quando nos apressamos a dar lições e apontar os dedos.

Para alguns, o erro por trás da revolução Russa é principalmente moral. Lênin, por exemplo, é pintado como um demônio encarnado cuja depravação sem fundo é diretamente responsável pela queda da Rússia. Podemos chamá-lo de “Lênin Frankenstein” que esfrega suas mãos com uma alegria sádica e diz: “Acho que hoje vou oprimir alguns camponeses!”. Tenho a impressão de que algo muito próximo do Lênin Frankenstein tornou-se a imagem dominante para o grande público a respeito da Revolução Russa, especialmente nos Estados Unidos.

Outros tem como alvo central o “bolchevismo”, definido como uma espécie de desvio moral recorrente. Para esses, os bolcheviques são aqueles que vivem pelo código moral corrompido de que “o fim justifica os meios”. Algo, é claro, que o público de bem nunca faria. Nós nunca concordaríamos com o uso de meios inaceitáveis, como bombardeio de populações civis ou uso de tortura, não importa quão nobre seja nosso objetivo político. Somente os malvados fanáticos fazem isso.

Há também um certo tipo de liberalismo bem intencionado que usa o bolchevismo para apontar os perigos de se ter objetivos políticos exaltados. Querem criar um paraíso para os trabalhadores? Fique atento para que a própria nobreza do objetivo não leve a crimes terríveis. Durante a Guerra Civil Russa, as pessoas estavam lutando pelas questões mais elementares e inevitáveis: quem governará o país? Como podemos unificar o país? A Rússia irá sobreviver enquanto Estado?

Nossos liberais olham para toda essa turbulência e pregam: agora, não se deixem levar com sonhos de uma sociedade perfeita! Sejam como nós, com nossa política segura, sã e sóbria. Moderação, moderação em todas as coisas!

A esquerda é muito viciada em buscar os erros fatais da revolução, muitas vezes é apenas a esquerda que prefere colocar a culpa dos erros na doutrina ideológica. Uma parte da esquerda que concorda com a visão liberal versus conservadora de que o pecado original do bolchevismo foi o revisionismo de Lênin em O que fazer?. Segundo esse ponto de vista, Lênin não confiava nos trabalhadores, virou Marx do avesso e criou um partido conspiratório de elite baseado em intelectuais. Não é de admirar que tenha sequestrado o programa democrático da Revolução Russa.

Uma abordagem menos obcecada com a identificação e condenação de erros verá que o significado de O que fazer? não surge de nenhuma pressuposta inovação ideológica. O livro de Lênin de 1902 é um resumo de uma versão já idealizada da lógica da organização clandestina, um método que foi elaborada através de tentativas e erros empíricos por toda uma geração de ativistas anônimos da década de 1890. Como tal, o modelo básico de Lênin foi aceito como um guia por todo o movimento clandestino socialista na Rússia. Saindo de 1917, a distinção do bolchevismo não surgiu da organização do partido, mas sim de sua leitura das forças de classe na Rússia.

A criação do movimento clandestino socialista não foi obra apenas de Lênin – ou melhor, ele deu uma contribuição que não foi insignificante, mas também não crucial. Quando o Estado Russo entrou em colapso em 1917 – um evento cujas consequências titânicas não foram previstas por nenhuma ideologia – essa rede clandestina forneceu uma das poucas forças capazes de criar uma nova autoridade soberana e uma nova estrutura de Estado.

As instituições jurídicas da Rússia czarista foram mortalmente feridas pelo colapso do czarismo; em contraste, a organização clandestina e ilegal continuava intacta, possuía um alcance nacional e reivindicações plausíveis com legitimidade e apoio das massas. O movimento clandestino socialista era muito mais um produto da história russa do que de aparatos ideológicos.


Até agora, examinei erros que pretendem explicar os fracassos da revolução, mas os partidários da Revolução de Outubro dos últimos dias também estão engajados na caça à heresia. Para eles, o sucesso da revolução se explica pela rejeição dos erros ideológicos. A interpretação trotskista dominante é construída em torno de uma história desse tipo.

Em 1905-6 (continua a história), Leon Trotsky apresentou sua teoria da revolução permanente e declarou que a revolução socialista era possível mesmo na Rússia atrasada. Visto que sua teoria atacava os dogmas sem imaginação do “Marxismo da Segunda Internacional”, Trotsky foi saudado com uma incompreensão universal.

Felizmente, bem a tempo, Lênin viu a luz e se uniu a Trotsky em abril de 1917. Juntos, os dois grandes líderes rearmaram o Partido Bolchevique, tornando assim possível a gloriosa Revolução de Outubro.

Há uma série de dificuldades com essa história canônica, mas aqui vou apenas apontar para uma característica ímpar desta história pró-outubro: ela tem um forte tom antibolchevique. De acordo com muitos escritores da tradição trotskista, a doutrina do Antigo Bolchevismo era um erro pernicioso que precisava ser rejeitado antes que a vitória revolucionária fosse possível. Somos constantemente lembrados por escritores desta tradição que os próprios bolcheviques, olhando como um todo, eram um bando de enfadonho que permaneceu teimosamente fiel ao que lhes foi dito no passado, mesmo quando seus líderes brilhantes e visionários já haviam partido.

Tão pronunciado é esse sentimento antibolchevique que alguns escritores ainda não me perdoaram por dizer algo bom sobre a respeito dos ativistas clandestinos bolcheviques. Será que eu não vejo que esses militantes komitetchiki eram burocratas enfadonhos e obstinados que por engano se recusaram a ouvir a sabedoria de líderes emigrados como Lênin e Trotsky?

Na minha opinião, no entanto, toda essa abordagem cheira muito a um “culto à personalidade” de certos heróis revolucionários. Mesmo os trotskistas pró-outubro estão longe de estar satisfeitos com o resultado final da revolução e como sempre, procuram erros doutrinários para explicar o resultado. A revolução europeia que deveria agir como um deus ex machina para salvar a revolução russa não aconteceu, em grande parte por causa do marxismo “fatalista”, “mecânico”, “determinista” e apenas geralmente “pré-dialético” de Karl Kautsky e outros líderes da Segunda Internacional. Na Rússia, o sinal externo e visível da degeneração interna da revolução foi a heresia doutrinária do “socialismo em um país”.

Claro, muitas ideias sagazes e essenciais sobre a Revolução Russa vêm da tradição trotskista. No entanto, não posso deixar de sentir que os escritores dessa tradição costumam estar mais interessados ​​em suas abstrações doutrinárias do que na realidade humana da Revolução Russa vivida por aqueles que a viveram.

Um debate importante sobre a Revolução Russa sempre foi: a Rússia estava pronta para a revolução socialista ou apenas para uma “revolução burguesa”? Os bolcheviques mantiveram a primeira posição, os mencheviques a última. Quem estava certo e quem estava errado no debate? Se os mencheviques estavam certos, a Revolução de Outubro foi um erro. Se os bolcheviques estavam certos, o menchevismo deve ser rejeitado como um erro contrarrevolucionário.

Essa abordagem está correta sobre uma coisa: os mencheviques e os bolcheviques recorreram a conceitos marxistas como esses em suas polêmicas de 1917. No entanto, argumentos doutrinários desse tipo estavam longe do cerne da questão. Na verdade, eles eram essencialmente adições, tentativas de dar legitimidade doutrinária a posições baseadas em leituras empíricas da Rússia em 1917. A verdadeira questão enfrentada pelos partidos socialistas era esta: poderia a crise que engolfava a sociedade russa ser resolvida pela cooperação com a sociedade educada, ou uma solução exigia uma nova autoridade soberana baseada exclusivamente nos trabalhadores e nos camponeses?

Traduzido para os termos russos que eram centrais nos debates em 1917, a questão era: poderia e deveria um novo vlast ser baseado em soglashenie? Vlast significa “autoridade soberana” ou “poder”, como em “poder soviético”. Soglashenie é frequentemente traduzido como “compromisso” ou “conciliação”, mas a palavra implica algo mais forte: trabalhar juntos com base em algum tipo de pacto ou acordo. O embate essencial em 1917 entre mencheviques e bolcheviques em questões como essa não foi doutrinal, mas empírico. Além disso, não podemos dizer que um lado estava errado e o outro certo. Cada lado combinou percepção e pensamento positivo. Deixe-me expor o confronto menchevique / bolchevique em 1917, usando os termos vlast e soglashenie para nos lembrar que estamos lidando com realidades empíricas russas, e também tentando colocar a disputa doutrinária em sua posição subordinada apropriada.

Menchevique: acreditavam ser necessário algum tipo de soglashenie  com a elite intelectual, portanto, é permitido algum tipo de aliança com um “burguês” que seja adequado para este soglashenie (além disso, a Rússia enfrenta uma “revolução burguesa” e, portanto, devemos tolerar o Governo Provisório “burguês”).

Bolchevique: Soglashenie com a elite intelectual é impossível e, portanto, o proletariado russo está pronto para assumir as responsabilidades revolucionárias (além disso, a Rússia está pronta para dar “passos em direção ao socialismo”).

Em qualquer dos casos, começamos, não com uma visão doutrinária ou erro, mas com uma visão empírica fortemente sentida e essencialmente correta da sociedade russa em 1917. Os mencheviques perceberam que, por um lado, a sociedade moderna não poderia viver sem especialistas e profissionais qualificados , e, por outro lado, o proletariado russo não era organizado ou “intencional” o suficiente para exercer o vlast isoladamente, nem era o campesinato russo uma base segura para uma “ditadura do proletariado”.

Os bolcheviques perceberam que, apesar das aparências, a elite intelectual nunca trabalharia com entusiasmo para cumprir “os objetivos da revolução” (mesmo quando definidos em termos estritamente “democráticos”) e que, de fato, essa pequena burguesia acabaria por se voltar contra a revolução e trabalhar para algum tipo de “ditadura da burguesia” – isto é, algum tipo de aliança de políticos e soldados liberais ou, em termos russos, Kadets (os democratas constitucionais liberais) e Kornilov (o general que liderou uma tentativa de golpe abortada em 1917).

Tanto para os mencheviques quanto para os bolcheviques, uma visão empírica correta leva a uma afirmação factual que se baseia mais no desejo do que na realidade. Os mencheviques têm de insistir que um parceiro adequado pode ser encontrado na sociedade burguesa para realizar os objetivos da revolução (ou, pelo menos, que a pequena burguesia pode ser forçada a cooperar por “pressão dos de baixo”). A situação é horrível demais para ser contemplada se esse não for o caso.

Os bolcheviques precisaram insistir que grandes e complicadas políticas de transformação social e gestão de crises poderiam ser executadas quase sem dor, se apenas o proletariado afirmar seu poder de classe. A situação é horrível demais para ser contemplada se esse não for o caso.

Em cada caso, um elemento adicional entre parênteses tenta dar a legitimidade da doutrina marxista a uma estratégia escolhida empiricamente. Mas, na verdade, os mencheviques não escolheram sua estratégia por causa de rótulos doutrinários como “revolução burguesa”, mas sim o contrário: eles insistiram que a Rússia enfrentaria uma revolução burguesa porque não queriam dispensar a “burguesia” – isto é , com especialistas educados e treinados (ou spetsy, como os bolcheviques mais tarde os chamaram quando perceberam o quanto precisavam deles). Os bolcheviques por sua vez, não escolheram sua estratégia porque primeiro se convenceram por razões doutrinárias de que uma revolução socialista era possível na Rússia, mas sim o contrário: eles afirmaram que “passos imediatos em direção ao socialismo” eram possíveis porque eles sentiram que o proletariado deveria tomar o poder.

Observadores posteriores tenderam a fazer desses gestos retóricos em direção à legitimidade doutrinária do cerne da questão. Na verdade, em 1917, a atitude em relação à soglashenie com a pequena burguesia era o centro do debate. Essencialmente, havia apenas duas opções para os socialistas: a favor ou contra o soglashenie. Menchevique e bolchevique são apenas os nomes dessas duas escolhas. Mas a tragédia da Rússia em 1917 foi que a soglashenie era necessária e impossível. A situação era de fato horrível – horrível demais para olhar diretamente no rosto, horrível demais para contemplar.

Nessa leitura, a Revolução Russa não é uma questão de cometer ou evitar erros, mas uma tragédia sem uma solução aceitável (isso é a tragédia).

Mas é preciso dizer mais uma coisa sobre o confronto entre mencheviques e bolcheviques. Cada lado era um composto de erro e percepção. Mas no caso dos mencheviques, essa combinação resultou em paralisia. No caso dos bolcheviques, a combinação os levou a se levantar e fazer. Justamente por isso, o futuro, para o bem ou para o mal, pertencia aos bolcheviques.

Sobre os autores

Lars T. Lih é um estudioso que vive em Montreal. Seus livros incluem "Bread and Authority in Russia, 1914–1921" and "Lenin Rediscovered: 'What is to be Done?'".

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Published in Europa, Perfil and Revoluções

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