Prefácio extraído do livro As Almas do Povo Negro, de W.E.B. Du Bois (Veneta 2021)
A importância da obra de W.E.B. Du Bois transcende as fronteiras de seu país de origem, os Estados Unidos da América. Seus livros, seus artigos e suas intervenções políticas constituem um dos mais importantes legados intelectuais do século XX.
Du Bois, nascido em 1868, padece da sina de todo intelectual negro: ser reduzido a um intelectual “negro”. Du Bois era um homem negro que, certamente, falava a partir de sua condição existencial. Mais do que isso: ele foi um militante na luta pelos direitos civis, além de fundador de uma das mais importantes organizações negras da história americana, a National Association for the Advancement of Colored People (NAACP). Seu compromisso com o antirracismo era inegável e a reflexão sobre a condição do negro constitui o núcleo de suas reflexões.
Entretanto, o perigo de denominar Du Bois como um intelectual negro é não captar a amplitude de sua obra que, justamente ao refletir sobre a situação racial nos Estados Unidos pós-abolição, se lança à investigação dos processos mais profundos de constituição da sociedade e da subjetividade humana.
O livro As Almas do Povo Negro, é a demonstração de que Du Bois parte da experiência negra para compreender o mundo em suas tramas mais complexas. O livro é formado por um conjunto de ensaios que retratam e analisam a trajetória, a cultura e a luta dos negros e negras nos Estados Unidos após a abolição e a Guerra Civil (1861-1865). O que Du Bois faz é mostrar como a sociedade estadunidense se reorganizou depois da Guerra Civil para reconstituir, sob novas bases, a subalternidade do povo negro. A violência da escravidão foi substituída pela violência do racismo em uma sociedade industrializada. Com isso, o autor nos ensina que “liberdade” e “cidadania” nunca foram independentes da condição negra; ou seja, o racismo sempre funcionou como um fator limitante de quaisquer perspectivas emancipatórias. Como afirma o próprio autor, trata-se de um livro que pode revelar “o estranho significado de ser preto” no que, quando da publicação do livro, era a “alvorada do século XX”.
Du Bois nos traz nesta obra dois conceitos fundamentais para a compreensão do racismo e da história dos Estados Unidos: véu e dupla consciência. O véu é algo que impede que sejamos vistos como realmente somos, mas também nos impede de ver o mundo como ele realmente é. Nesse sentido, a metáfora de Du Bois diz respeito ao modo como as relações raciais nos Estados Unidos foram constituindo-se.
Nas palavras de Du Bois: “Foi quando me veio a percepção quase imediata de que eu era diferente dos demais; ou semelhante, talvez, em termos de coração e de força vital e de aspirações, mas apartado do mundo deles por um enorme véu”. Negros e brancos vivem simultaneamente no mesmo mundo e em mundos distintos. Negros e brancos são criações desse processo permanente de divisão da vida por um “véu” em que cada lado implica uma distinta forma de existir. A raça é, portanto, uma condição existencial que, para além das características físicas, se define pelo processo de formação de nossas “almas”. O racismo é, com efeito, um processo de formação de almas cindidas e despedaçadas, tanto de negros como de brancos. Com o tratamento da raça como condição existencial, Du Bois inaugurou o que mais tarde seria conhecido como o campo dos estudos sobre a branquitude. O segundo conceito trazido por Du Bois é o de dupla consciência. Segundo Du Bois, ser negro é:
“uma sensação peculiar, essa consciência dual, essa experiência de sempre enxergar a si mesmo pelos olhos dos outros, de medir a própria alma pela régua de um mundo que se diverte ao encará-lo com desprezo e pena. O indivíduo sente sua dualidade — é um norte-americano e um negro; duas almas, dois pensamentos, duas lutas inconciliáveis; dois ideais em disputa em um corpo escuro, que dispõe apenas de sua força obstinada para não se partir ao meio.”
Ser negro, como eu disse antes, é ser permanentemente cindido. E Du Bois publicou este livro quando os negros dos Estados Unidos estavam sob o domínio das Jim Crow, como ficaram conhecidas as leis segregacionistas que separavam negros e brancos, especialmente no sul dos Estados Unidos, e que permaneceriam em vigor até 1965. Vale ressaltar que a Suprema Corte Americana, apenas sete anos antes da primeira edição de As Almas do Povo Negro (1903), havia julgado o caso Plessy vs Ferguson, em que as leis de segregação racial foram consideradas constitucionais.
Assim se coloca um grande dilema: ser um cidadão dos Estados Unidos e ser negro é algo inconciliável — especialmente, mas não só, no contexto da segregação racial — e é disso que nasce o que Du Bois chama de dupla consciência. Mas aí repousa a genialidade de Du Bois: essa impossibilidade de conciliação entre ser cidadão e ser negro, esse conflito, é algo constitutivo da “história do negro norte-americano”.
Desse modo, a história do negro nos Estados Unidos é a história, nas palavras de Du Bois, “desse desejo de tomar consciência de si mesmo como homem, de fundir esse duplo eu em um único indivíduo, melhor e mais verdadeiro”. A fusão depende, portanto, da superação dessa dupla consciência, que não é somente um processo mental, mas é, sobretudo, um processo político em que a reconciliação consigo mesmo depende da retirada do véu que impede o negro de ver a si mesmo. Ultrapassar os limites entre os mundos impostos pelo racismo depende do ativismo político e da atividade intelectual. Essa “tomada de consciência de si” é o que se chamaria depois de “Consciência Negra”.
Assim, As Almas do Povo Negro é um livro especial porque trata das dimensões subjetivas e objetivas do racismo sem separar ou priorizar qualquer uma das duas dimensões. A busca pela compreensão existencial da situação do negro nas dimensões subjetivas e objetivas fez Du Bois avançar sua reflexão para a filosofia, a história, a sociologia e a psicologia, o que o coloca como um dos mais profundos investigadores da constituição material e espiritual da sociedade contemporânea.
A raça é o resultado das múltiplas formas de dominação, de exercício da violência e da exploração econômica em nível global, que se manifesta de modo diferente em diferentes contextos. Negros e negras do mundo, por mais diferentes que sejam, dividem o mesmo lado do véu. Essa conclusão é que leva Du Bois ao ativismo em prol dos direitos civis, mas também à defesa do socialismo e à construção do pan-africanismo.
A publicação de As Almas do Povo Negro no Brasil nos permite agora pensar questões centrais levantadas por um dos maiores intelectuais do nosso tempo a partir de nossa experiência. A violência que nos caracteriza como país é também uma violência racial. A desigualdade que nos marca enquanto país é uma desigualdade estruturada pelo racismo. O véu que nos divide enquanto sociedade é o da democracia racial. Nossa dupla consciência está em ser negro e ser brasileiro. Todas essas são questões importantes para pensar a luta política, sobretudo a antirracista, dentro das condições específicas de nossa experiência histórica.
Sobre os autores
é doutor em Direito pela Universidade de São Paulo, presidente do Instituto
Luiz Gama e professor da Fundação Getulio Vargas e da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
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