Na semana passada, o presidente boliviano Luis Arce fez sua primeira visita de Estado. Ele viajou para o México, onde o presidente Andrés Manuel López Obrador condenou o golpe de 2019 na Bolívia. Juntos, os dois chefes de Estado exortaram a Organização dos Estados Americanos (OEA), organização que promoveu o golpe, “a respeitar a democracia e não intervir nos assuntos internos de países soberanos”.
A luta pela soberania continua hoje na Bolívia – assim como no México – mesmo depois que o governo progressista voltou democraticamente ao poder após uma eleição geral no ano passado. A “ex-presidente interina” Jeanine Áñez, assim como alguns de seus aliados mais próximos, foram presos pela polícia boliviana no mês passado, acusados de diversos crimes enquanto estavam no poder. Para a OEA e para muitos na imprensa internacional, essas prisões foram interpretadas, intencionalmente, como vingança do partido do governo, o Movimento ao Socialismo (MAS). Mas a violência do regime golpista precisa ser levado à justiça e é justamente isso que está ocorrendo finalmente.
Quando os militares e Jeanine Áñez depuseram o ex-presidente Evo Morales em novembro de 2019, isso gerou violência em todo o país. Os protestos em apoio a Morales para proteger sua presidência foram recebidos com tortura e balas em um esforço para consolidar um governo de direita.
Nos massacres de Sacaba e Senkata, 36 pessoas foram mortas. Esses massacres em particular foram investigados e condenados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, dando início ao árduo processo para obter permissão do governo provisório para realizar uma investigação adequada e propor um caminho de reparação às vítimas. Menos atenção tem sido dada a massacres menores, mortes individuais, num contexto em que pelo menos mil prisões e mais de oitocentos feridos foram causados pelo ex-regime golpista. Qualquer um que tivesse coragem poderia assistir ao derramamento de sangue em seus celulares, sendo filmado por cidadãos, já que os repórteres haviam sido silenciados pelo terror.
Desde os primeiros dias do golpe, grupos indígenas, os pobres urbanos, organizações internacionais de direitos humanos e outros movimentos têm exigido que os golpistas sejam levados à justiça. Na verdade, essa demanda foi crítica para retornar o MAS ao poder com uma maioria de 55% nas eleições gerais de outubro passado.
No dia 13 de março, nas primeiras horas da manhã, Áñez foi finalmente encontrada e presa por uma unidade de elite da força policial. Também foram presos vários ex-ministros e ex-comandantes das Forças Armadas. Em 15 de março, 9 acusações foram feitas contra Áñez, incluindo usurpação da presidência, um crédito indevidamente contratado de 24 milhões de dólares do Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Decreto Supremo 4.200 que criminaliza as liberdades civis usando a pandemia como pretexto. O Senado, por sua vez, abriu 22 investigações contra autoridades golpistas por supostas ações ilegais durante o mandato.
Desde a prisão, depoimentos de pessoas torturadas, baleadas e chicoteadas ao longo da passagem de Áñez no poder, bem como evidências filmadas da violência do governo, foram ao ar na mídia progressista e canais do governo. Um vídeo do noticiário mostrou uma mulher com uma máscara vermelha parabenizando Áñez pelo “golpe”. Eles estavam sentados com outras pessoas em uma mesa de conferência em uma sala elegante, e Áñez não disse nada para contestar o uso da palavra “golpe”. Outro vídeo mostrava seu ministro do Interior revisando veículos blindados em uma praça central à noite. Alguém estava secretamente gravando-o enquanto ele dizia em voz baixa: “Estes são os que atiraram em Senkata, certo?”
“Ser indígena, para eles é um crime”
A mulher que abriu o processo criminal contra os chefes do governo golpista é Lidia Patty. Ela abriu um processo contra várias personalidades, entre elas um líder-chave das iniciativas paramilitares de direita, Luis Fernando Camacho; o sinistro Arturo Murillo, ex-chefe de polícia; e o ex-ministro e assistente pessoal de Áñez, Yerko Núñez.
Mulher indígena quíchua e senadora eleita no último governo do MAS, Patty estava entre as que se recusaram a renunciar com o golpe. Em 15 de março, Patty falou em redes públicas de rádio e televisão: “Houve torturas, os manifestantes tiveram seus dedos cortados. As mulheres nos protestos eram manipuladas pelos soldados, suas partes íntimas apalpadas – assim como nos tempos coloniais. Nas celas da prisão, nossas irmãs foram estupradas”.
Ela falou sobre o racismo do regime golpista em relação aos representantes indígenas e camponeses no parlamento, onde lhes responderam: “vocês são nossas empregadas domésticas” e “voltem para suas cozinhas”.
Quando deixou o cargo após terminar seu mandato em 2020, Patty decidiu entrar com o processo civil contra Áñez.
“Eles queriam fechar o parlamento”, que tinha uma maioria de dois terços do MAS. “Depois do golpe contra o presidente, eles pretendiam dar um golpe contra o parlamento.” Os membros da assembleia do MAS conseguiram finalmente forçar a entrada no edifício, depois “os parlamentares dormiram no chão da assembleia durante 7 dias. Se não tivéssemos feito isso, nós também seríamos cúmplices do golpe”. Ela volta ao presente: “Não podemos deixar que façam isso de novo. Não estou perseguindo ninguém, o que eu quero é justiça”.
Enfrentando a OEA
Em resposta aos processos contra Áñez e seus associados, a OEA reagiu de uma maneira que, para quem acompanhou a política boliviana nos últimos anos, não foi surpreendente. Em um esforço para traçar uma falsa equivalência, anunciou que lançaria uma investigação internacional sobre a corrupção do governo Áñez e do governo Morales. Além disso, insistiu que todo o sistema de justiça boliviano deveria ser revisado por atores internacionais.
As acusações de corrupção são certamente verdadeiras com referência ao regime golpista, mas não no caso do governo Morales. Na verdade, foi no governo dele que a corrupção foi combatida e sua erradicação foi fundamental para a plataforma da campanha do MAS de 2019.
A maioria do Senado do MAS está cada vez mais indignada com o que chama de “intervencionismo” da OEA e registrou uma reclamação formal. Além disso, em 16 de março, o ministro da Justiça da Bolívia, Iván Lima, anunciou a intenção do governo de apresentar denúncias contra o chefe da OEA, Luis Almagro, por não respeitar as convenções da OEA firmadas com a Bolívia.
Poucos dias depois, um membro do Tribunal Supremo Eleitoral instou seus colegas a proibir a OEA de realizar uma missão de observação durante o segundo turno das eleições para governador. Salvador Romero, o chefe do tribunal eleitoral nomeado por Áñez, rejeitou categoricamente a ideia.
Por sua vez, os governos progressistas da América Latina estão trabalhando para fortalecer a diplomacia não intervencionista. México e Argentina, assim como o bloco latino-americano de dez nações progressistas (a Alternativa Bolivariana para a América Latina e o Caribe, ou ALBA), e Parlasul (o órgão parlamentar do bloco comercial do Mercosul) levantaram suas vozes em defesa do governo eleito do MAS na Bolívia. Eles argumentam que as falsas alegações de fraude da OEA abriram as portas para o regime golpista sangrento de Jeanine Áñez.
A direita internacional e seus parceiros bolivianos alimentam jogam gasolina na fogueira com supostas fraudes há quase uma década. A repetição das alegações não comprovadas é um senso comum entre muitos dos setores intermediários. Oito estudos de especialistas de universidades norte-americanas – incluindo os encomendados pelo New York Times e encabeçados pelo Washington Post – afirmam que não há base para alegar fraude nas duas últimas eleições nacionais na Bolívia.
A direita freqüentemente acusa seus inimigos dos crimes que ela mesma pratica. A demonização de Evo Morales é carnavalesca e agora afirma que ele está tramando uma guerra civil para que possa retornar à presidência. Se essa história serve para algo, sabemos que são os Estados Unidos, com a OEA como fantoche, os responsáveis por instigar as guerras civis. Seu homem na Bolívia foi colocado à frente do tribunal eleitoral, Salvador Romero.
Como disse Inocencia Franco, da federação feminista de Bartolina Sisa, na comunidade das terras baixas de Yacuiba: “Derramamos nosso sangue por esta democracia”. Embora seja a paz que as pessoas buscam, elas também estão prontas para defender, se necessário, seu novo presidente eleito democraticamente, Luis Arce. “Cada comunidade está em uma situação de emergência e nós permaneceremos firmes.”
Sobre os autores
é professora de estudos latino-americanos no Scripps College.