Não se pode falar de um plano deliberado, por parte do governo Bolsonaro, de lidar com a pandemia por meio da infecção natural em massa da população brasileira (que resultaria então na famigerada “imunidade de rebanho”) sem entender um ponto essencial: o objetivo dessa estratégia sempre foi garantir o trabalho presencial de boa parte dessa população. A campanha lançada pelo “isolamento vertical” era chamada #OBrasilNãoPodeParar, e sua finalidade óbvia era manter a continuidade do trabalho e da normalidade capitalista mesmo em tempos de pandemia.
No entanto, por algumas semanas, o Brasil praticamente parou. Isso aconteceu por uma confluência de fatores: houve um consenso na classe dominante de que a situação era de fato grave, e que seria possível subsidiar uma paralisação temporária das atividades e um home office mais amplo, enquanto, no andar de baixo, se expressava uma indisposição generalizada a se submeter a condições de contágio.
Pouca gente lembra, mas de acordo com o Datafolha de março de 2020 73% da população tinha medo do coronavírus e era favorável a medidas de contenção. Já naquela época, no entanto, jovens e setores de renda mais alta predominavam entre os que pararam de trabalhar. Nas favelas, em abril de 2020, 71% eram contra a posição do Bolsonaro de isolar apenas grupos de risco, mas 51% tinham comida apenas para a próxima semana. Havia já um impasse, mas a maioria estava a favor das medidas de isolamento. O auxílio emergencial foi em parte uma resposta positiva, e de esquerda, a essa esmagadora mobilização da opinião pública por uma solução que oferecesse condições materiais à população trabalhadora a fim de tornar possível um isolamento social efetivo.
Essa opinião favorável ao isolamento se manifestou nos ambientes de trabalho na forma de uma espécie de absenteísmo de quarentena. Conforme a quarentena foi decretada, os patrões eram comunicados pelos empregados que era “impossível ir para o trabalho”. Os patrões que se recusaram a aceitar essa justificativa foram obrigados a enfrentar uma onda de greves relacionadas a medidas sanitárias como distanciamento, e disponibilidade de álcool gel e máscaras. Foi o caso dos call centers, que viram em 19 e 20 de março paralisações por parte de seus trabalhadores em Salvador, Teresina, Juiz de Fora, Goiânia, Curitiba, Limeira, São Paulo – frequentemente apesar (ou mesmo contra) dos sindicatos oficiais e pelegos de suas categorias. Essas mobilizações conquistaram o direito ao home office em muitos call centers no Brasil inteiro, mesmo naqueles que não paralisaram.
A resposta do governo federal para essas duas formas de mobilização dos trabalhadores foi decretar como serviços essenciais um número cada vez maior de serviços, nos quais os trabalhadores simplesmente se recusavam a comparecer. O primeiro setor foi o de call center, dia 21 de março, em resposta direta à agitação dos trabalhadores, com a finalidade expressa de evitar mobilizações abertas e coletivas, conforme relatou a própria Uol. Depois veio o decreto de 29 de abril, que afirmou a essencialidade dos serviços bancários e logísticos, e o de 11 de maio, que incluiu serviços como o de cabeleireiros. A quase totalidade dos serviços passou a ser considerada como “essencial”, retirando a possibilidade do empregado alegar que a quarentena o liberava de ir presencialmente ao lugar de trabalho. Esses decretos de essencialidade não tiveram resposta adequada por parte da oposição parlamentar, nem por parte do movimento sindical. Dessa forma, as categorias afetadas puderam ser mobilizadas para retornar ao trabalho – e, portanto, para ser infectadas – livremente.
Uma exceção foram os professores do ensino básico público e as categorias do ensino superior, que organizaram greves sanitárias toda vez que se ameaçou um retorno ao trabalho presencial. Os professores do ensino básico particular tiveram que enfrentar situações de maior precariedade e desigualdade interna, seguindo mais os decretos estaduais e municipais, como o restante da classe trabalhadora, do que a sua contraparte no serviço público, que conta com um sindicalismo mais forte e atuante. Uma exceção notável vem sendo a mobilização de professores de algumas escolas ditas de “elite” em São Paulo, que têm conseguido manter o ensino à distância com algum sucesso desde que as aulas foram liberadas em abril de 2021, conforme relata o Estadão. Os colegas professores de escolas menos organizadas, no entanto, não tiveram tanta sorte, e estão enfrentando a pandemia em cada escola de um jeito.
A exceção e a regra
A regra, no entanto, para as categorias sem representação trabalhista ou de base forte e atuante tem sido o cada um por si e salve-se quem puder. A maior parte da intelectualidade de esquerda (incluindo uma boa parcela da “militância digital”), que tem garantido o direito de ficar em casa, em parte porque dispõe de sindicatos organizados e atuante, capazes de impor a negociação coletiva, parece ter dificuldade em se conectar com esses trabalhadores mais precarizadas, que não conseguiram ou não podem realizar seu trabalho remotamente. E, no entanto, esses constituem a imensa maioria da classe trabalhadora brasileira. O abismo que normalmente já existe entre camadas qualificadas de trabalhadores intelectuais mais protegidos por direitos e aqueles que executam trabalhos manuais (e são menos protegidos) aprofundou-se ainda mais durante a pandemia.
Houve, no entanto, uma curta exceção. Foi o Breque dos Apps. Nesse momento, em 1 e 27 de julho de 2020, conseguiu-se construir uma aliança real entre trabalhadores que ficavam em casa, e consumiam as entregas, e os trabalhadores de aplicativos, que não podiam ficar em casa e realizavam as entregas. Essa aliança se deu, para ser sucinto, basicamente por meio das redes sociais – com boicote e doações – e foi forte o suficiente para arrancar algumas conquistas reais, além de dar considerável visibilidade pública para a categoria dos entregadores.
Uma das propostas que surgiu das mobilizações do Breque foi o Projeto de Lei 1665/20 de autoria do PSOL que determinava que “esses profissionais devem receber orientações adequadas sobre a doença e ter direito a equipamentos de proteção individual além de proteção financeira caso venham a contrair o vírus e sejam obrigados a se afastar do trabalho em razão da necessidade de isolamento social”.
Apesar de ser uma proposta simples, quase compensatória, foi retirada do plenário e nunca foi votada, tendo enfrentado divergências por parte de grupos de entregadores que puxavam a mobilização dos Breques e não ter encontrado consenso entre os deputados.
A solidariedade entre os trabalhadores de diferentes situações sociais, expressa em sua representação parlamentar, durou pouco e, infelizmente, não causou consequências institucionais duradouras. Restou para os informais em geral, inclusive os entregadores, apenas o auxílio emergencial para segurar os piores momentos da crise até dezembro de 2020.
Podemos mudar essa história
De acordo com o Ipea, apenas 11,7% dos trabalhadores estavam em home office em junho de 2020 – momento em que essa forma de trabalho estava no auge no Brasil, após várias conquistas da mobilização. Desses trabalhadores, 64% eram brancos, e 53% mulheres. A maior concentração de pessoas trabalhando remotamente (58%) foi no Sudeste. A idade desses trabalhadores em sua maioria era entre 30 e 39 anos, boa parte com ensino superior.
Se formos olhar os dados de mortalidade da COVID-19, o cenário se inverte. De acordo com o Núcleo de Operações de Inteligência em Saúde, pretos e pardos morrem bem mais que brancos. Pessoas sem escolaridade sofreram com uma taxa de morte cerca de três vezes maior em relação às pessoas com nível superior. A mortalidade também foi maior no Norte e Nordeste do que no Sudeste (onde se concentra o trabalho remoto).
Como fica evidente, há um problema sério com o “#FiqueEmCasa se puder” quando se leva em conta materialmente a composição da classe trabalhadora brasileira e a forma como a pandemia a afeta. Não é que as pessoas sejam, em abstrato, contra a ideia de isolamento: a maioria é favorável ao fechamento do comércio e ao distanciamento social. Acontece que para a maioria da população trabalhadora, ficar em casa simplesmente nunca foi uma opção real. Os trabalhadores até gostariam de ficar em casa e cumprir o isolamento social, mas lhes faltam as condições materiais para fazê-lo. É inevitável que esse impasse gere, psicologicamente, uma situação de ambiguidade e de disputa de identificações, amplamente explorada por Bolsonaro.
Se houve um plano de infecção deliberada por parte de Bolsonaro e seu governo, a maior vítima foi justamente a classe trabalhadora, obrigada a se expor sem as adequadas condições sanitárias. No entanto, a comunicação e a mobilização de esquerda raramente se dirigem a essa maioria dos trabalhadores, e na maioria das vezes acabam se focando especialmente naqueles que já conseguem ficar em casa. É só essa contradição que pode explicar o medo de convocar manifestações para disputar as ruas com o bolsonarismo. Para o setor específico que hoje é a principal base social da esquerda nas redes sociais, a presença em massa nas ruas representa um risco de exposição inaceitável. A questão claramente não foi posta por quem corre riscos todos os dias – em locais de trabalho fechados e no transporte público lotado em direção ao trabalho.
Bolsonaro, quando diz que “tem uns idiotas que ficam em casa” e “tem que enfrentar”, explora essa dissociação cognitiva entre saber que o melhor seria ficar em casa, mas ter que enfrentar todo dia a necessidade de se expor no mundo do trabalho. A maioria dos trabalhadores precisa lidar e viver isso na pele, diariamente. A esquerda optou por simplesmente ignorar a questão, dando o terreno de graça (junto com as ruas) para o presidente e seu movimento de extrema direita. É nesse contexto que o tratamento precoce aparece como uma solução individualista e ilusória, e ganha espaço o masculinismo agressivo e a virilidade de se expor e “tocar o foda-se”. A expressão ideológica do fenômeno seria a celebração do número de “recuperados”.
Se essa correlação de forças já foi alterada no contexto da aliança com os entregadores do Breque, também pode mudar agora a partir nos atos do dia 29. Essa mudança é possível porque hoje há um conhecimento que faltava na época: as máscaras PFF2 constituem proteção adequada e suficiente para eventos ao ar livre. Essa condição “técnica” quebrou uma barreira forte que existia para setores amplos da classe que nem conseguiam falar de ir pra rua sem ver aí um risco imenso e impeditivo.
Essa maior consciência acerca das máscaras como instrumento de luta está ligada a emergência de pequenos coletivos de ativistas como a @qualmascara, @pffparatodos, @estoquepff que se dedicam a distribuir ou facilitar a distribuição dessas máscaras de melhor qualidade para as pessoas, alguns deles diretamente inspirado pelo antigo ativismo pela distribuição da camisinha frente a epidemia da AIDS.
Esses coletivos que pautam a segurança individual como questão coletiva e constituem uma estrutura de solidariedade também foram estratégicos para que hoje seja possível, na esquerda organizada, falar de mobilizações de rua de massas. E não se trata apenas de realizar manifestações, mas também de se reconectar com outros trabalhadores – justamente pelo instrumento da máscara, que nos iguala e nos garante a segurança igualmente. A máscara, apesar de ser um equipamento individual, pode servir como instrumento de identidade coletiva daqueles que se cuidam e cuidam uns dos outros e a distribuição de máscara como processo de construção de identidade coletiva para além dos nichos fragmentados em que nos encontramos (e nos quais Bolsonaro gostaríamos que permanecêssemos).
Por isso, é vital irmos para os protestos do dia 29 de maio com nossas máscaras PFF2 e organizarmos voluntariamente estruturas de distribuição de PFF2, a fim de viabilizar a participação em massa de trabalhadores que querem se manifestar contra o governo Bolsonaro, mas não querem correr risco de se expor à infecção. Essa disponibilidade de máscaras é uma das condições cruciais para diferenciar, de modo real e definitivo, as “aglomerações” irresponsáveis do bolsonarismo e as nossas manifestações pela vida. O uso e distribuição sistemática de máscaras PFF2 sinalizaria um importante contraste em relação ao individualismo e o “salve-se quem puder” que são traços marcantes do plano genocida de Bolsonaro.
Reconstruir a solidariedade coletividade é uma tarefa formidavel. Já estava difícil antes de nos isolarmos em quarentena, e os obstáculos para a recomposição política da nossa classe são agora ainda maiores. Mas essa é a tarefa necessária e imprescindível. Nossa denúncia ao plano bolsonarista de nos pôr a trabalhar a qualquer custo não pode ser baseada na hipocrisia ou cinismo – e para uma parcela considerável da classe trabalhadora, é exatamente assim que a esquerda soa. Sem a confiança e a mobilização dos trabalhadores mais precarizados e desprotegidos será impossível constituir um sujeito coletivo capaz de arrancar vitórias concretas e salvar vidas.
Para além do dia do protesto, mas aproveitando-se dele, precisamos pensar em conjunto em como ampliar a luta pela vida, e, sobretudo, como forjar solidariedade – prática, real, concreta – entre os setores precarizados e setores mais estáveis da nossa classe. A distribuição de máscaras PFF2 como ato de solidariedade, assim como a demanda coletiva organizada para que os poderes públicos e patrões distribuam máscara PFF2 nos transportes públicos, nos locais de trabalho, nos postos de saúde, oferecem uma oportunidade para essa rearticulação local.
No final das contas, acumulando aos poucos as lutas e os encontros, precisamos conseguir pautar a grande questão: por que as pessoas precisam se expor ao vírus? Por que não parar tudo? Essa é uma demanda que nós, socialistas, precisamos formular, mas só vai ser possível a partir de uma conexão com as várias lutas – de entregadores, empregados de escritório, comerciários, rodoviários, professores, e outras categorias. Seu horizonte, por mais improvável que possa nos parecer hoje, é a greve geral pela vida.
Ao acumular forças e construir sínteses a partir do debate franco e camarada de nossas diferenças internas, temos que manter a orientação estratégica de colocar na mesa o problema central: o capitalismo está nos matando, nos deixando desprotegidos frente ao vírus. Cada vulnerabilidade e precariedade sentida individualmente é uma oportunidade para desenvolver politização coletiva. Pautar a questão e construir esse acúmulo é uma responsabilidade que devemos assumir desde já.
No final das contas, se queremos que o “Fique Em Casa” não seja uma mera frase vazia, sem aderência com a realidade vivida pela maior parte da nossa classe, então precisamos lutar por um verdadeiro “Fique Em Casa” para todos. Ir à rua sábado faz parte dessa luta. Essa deve ser nossa bandeira se quisermos ter esperança de recompor nossa classe politicamente, diante do perigo real de fascistização de nossos colegas de trabalho, de bairro e de cidade. Essa esperança deve ter uma bandeira prática e um compromisso comum: a construção de um grande movimento social dos trabalhadores em defesa de suas condições sanitárias e, por consequência, de suas vidas. Se não houver lockdown nacional, que se organize a greve nacional sanitária!
Sobre os autores
é jornalista e funcionário da Universidade Federal de Goiás.
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