Há poucas semanas, a visita de Lula à Uniforja em Diadema, na Grande São Paulo, ganhou destaque na mídia. Ela colocou a autogestão operária novamente na ordem do dia, reafirmando que a saída a atual crise se dará a partir das experiências da classe que vive do trabalho que resistiram contra o fechamento na última crise, assumiram a fábrica em cooperativa e agora estão na luta mais uma vez contra o desmonte da indústria nacional.
A Uniforja nasceu da falência da Conforja, o que fez o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC mobilizar suas bases e, com a experiência acumulada com o movimento sindical e cooperativo italiano, colocar a necessidade dos trabalhadores a empresa sob controle operário. O sindicato colocou seu próprio prédio como garantia no processo de recuperação da empresa.
A partir desse processo dialético de mobilização e formação acerca da possibilidade dos trabalhadores assumirem a fábrica, surge a Uniforja, uma empresa autogestionária, se colocando como alternativa ao projeto neoliberal, que estreou no Brasil em 1990, logo depois da primeira eleição presidencial direta em 1989, que se desenrolou após a transição negociada da ditadura para a democracia, gerando crises e desemprego nas últimas décadas.
O neoliberalismo e a classe trabalhadora contra a parede
O projeto neoliberal colocou os direitos e a vida a serviço do mercado, da especulação financeira, e de uma política externa submetida aos interesses expressos no intitulado Consenso de Washington.
A Constituição de 1988, que tem um foco na universalidade dos direitos, foi colocada nos seus primeiros anos entre parênteses com a chegada de Collor à presidência. O neoliberalismo brasileiro sobreviveu à crise que pôs fim ao governo Collor, atravessou o governo de Itamar, mas se consolidou apenas na gestão de Fernando Henrique Cardoso (FHC).
Essa agenda, com abertura indiscriminada ao mercado externo, privatizações, desregulamentações trabalhistas e a ausência de uma política industrial e de desenvolvimento tecnológico, colocou o Brasil a serviço das corporações globais. O projeto que foi apresentado como farsa, já na transição do primeiro governo FHC, terminou como tragédia.
O desemprego estrutural, a crescente informalidade no mercado de trabalho e o fechamento de muitas empresas, colocou uma questão para a classe que vive do trabalho: como responder ao fechamento de empresas e aos trabalhadores informais?
Nesse cenário, o movimento sindical, em especial, os sindicatos dos metalúrgicos do ABC e dos químicos de São Paulo buscaram conhecer experiências de gestão operária das empresas, com destaque a visita de Lula à Itália – e o conhecimento das experiências de recuperação de empresas, que entravam em processos de falência.
A resposta classista ao desemprego estrutural e a informalidade colocou novamente em debate o controle operário da produção. Nesse período também surgiram importantes experiências na Argentina e Uruguai diante da agenda neoliberal na região.
O que é Uniforja?
A Uniforja, Cooperativa Central de Produção Industrial de Trabalhadores em Metalurgia, foi constituída em meados de 2000, como uma central cooperativa em Diadema, São Paulo, em uma área própria de 65.000m2. A experiência da Uniforja colocou uma empresa de autogestão como a maior fabricante de anéis/flanges/conexões de aço forjado de toda a América do Sul.
O Sistema Uniforja é constituído por cooperativas de primeiro grau que garantem um processo permanente de mobilização e participação direta na gestão. A Coopertratt é uma prestadora de serviços de tratamento térmico com laboratório próprio para execução de Ensaios Metalúrgicos e Ensaios Mecânicos (tração, impacto e dobramento). Produz conexões tubulares de forjamento a frio em aço carbono ou inox. A Cooperlafe é fabricante de anéis forjados sem costura até 4000 mm de diâmetro sem costura. A Cooperfor é fabricante de forjados automotivos em aço carbono e aço liga, tais como coroas, engrenagens, discos e flanges e anéis até 12.
A experiência da Uniforja foi parte de um processo mais geral de enfrentamento do neoliberalismo e de afirmação de que a classe que vive do trabalho pode e deve assumir os meios de produção para fazer, através da autogestão operária, uma gestão participativa da fábrica ou empresa.
A consolidação de muitos processos de recuperação de fábricas que culminaram em autogestão são, sem dúvida, grandes expressões da luta da classe trabalhadora contra o tripé do sociometabolismo do capital conforme ensina o marxista húngaro István Mészarós: capital, trabalho e Estado (como garantidor da reprodução social do capital).
As empresas de autogestão e sua consolidação, como é o caso da Uniforja, colocam no cenário político e social a necessidade de produzir uma nova Teoria de Transição — que aponte para uma nova sociedade baseada numa economia política de autogestão dos trabalhadores.
As empresas de autogestão, consolidam-se como uma “escola de gestão” da classe que vive do trabalho. Nelas, a autogestão e a democracia operária são as bases para a construção de novas tecnologias e de novas práticas administrativas, enfrentando o sociometabolismo do capital e seu processo crescente de alienação do trabalho.
Essas empresas demonstram que os trabalhadores são os sujeitos históricos de uma nova sociedade, onde o processo coletivo, associativo, cooperativo e autogestionário são suas bases constitutivas. As empresas de autogestão fazem com que as pautas sobre revolução e construção de uma sociedade igualitária saiam dos discursos para uma práxis concreta de gestão operária.
A crise brasileira e a aposta na autogestão
A crise do governo Bolsonaro se aprofunda. Em virtude disso, é recorrente a sobreposição entre os poderes e a crise do pacto federativo, na qual os Estados, diante da ausência do governo federal, são autorizados pelo STF a realizar ações de responsabilidade federal, sobretudo na área de saúde.
Além disso, a intensa narrativa contra a Constituição e a democracia, que surgem nas falas do presidente e seus apoiadores, inclusive com propostas de uma nova constituinte e a implantação de “estado de emergência”, mostram as fissuras do pacto social aberto em 1988.
O governo Bolsonaro atua na desestabilização das instituições, agindo desde seu início com intervenções na Petrobrás, com o controle da Polícia Federal, com ataques aos conselhos de direitos e com as inúmeras indicações de militares e agentes da ABIN a várias estruturas dos ministérios. Isso pode ser perfeitamente ilustrado pelo caso recente da não punição do general Pazuello pelo Alto Comando do Exército, o qual ignorou a participação dele em ato político comandado pelo próprio Bolsonaro.
Na esfera internacional o governo se isola em meio a uma crise com seus dois maiores parceiros comerciais, EUA e China. Nos BRICS, a votação contra a quebra de patentes das vacinas liderada pela Índia, gerou outro isolamento brasileiro. Impactando diretamente no acesso a insumos e vacinas, contribuindo ainda mais para o atraso na imunização da população.
O Brasil aprofunda sua crise econômica, social e política. A pandemia e suas consequências deixam nítida a ausência de um plano nacional de desenvolvimento, voltado ao fortalecimento de nossas cadeias produtivas e da geração de postos de trabalho, com valor agregado e direitos sociais e econômicos garantidos.
No trimestre de agosto a outubro de 2020, a taxa de desemprego no Brasil foi de 14,3%, atingindo 14,1 milhões de pessoas (PNAD/IBGE). A informalidade chegou a 41,4% do conjunto da força de trabalho, o maior valor registrado até hoje, com quase 39 milhões de pessoas como trabalhadores informais.
São 13,4 milhões de pessoas na fila a procura por uma vaga no mercado formal, número que chega a 31,2 milhões quando levadas em conta aquelas que estão subocupadas – ou seja, que trabalham menos horas do que poderiam e estão disponíveis para trabalhar, além das que nem procuram emprego. A informalidade chegou a 41,4% do conjunto da força de trabalho, o maior valor registrado até então, com quase 39 milhões de pessoas como trabalhadores informais (PNAD/IBGE).
A nova organização do mundo do trabalho, sem respostas econômicas do Estado para essa reconfiguração, contribui para esse cenário. Com quase 50% de postos de trabalho extintos (330 mil postos de trabalho a menos, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados), o trabalho decente, atacado por meio do fim das leis trabalhistas históricas, torna-se um devir cada vez mais distante.
Conduzido por essa política, o Brasil deixou de figurar entre as 10 maiores economias do mundo em termos nominais, em decorrência de uma queda de 4,1% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2020, passando a ocupar a 12ª posição no ranking. Além disso, o potencial exportador do país foi substituído pelo mero papel de vendedor de commodities não-beneficiadas, ou seja, matéria-prima em estágio bruto. A desindustrialização, provocada pela crise política e econômica, também não é enfrentada de frente.
As falências de empresas brasileiras tiveram alta de 12,7% em 2020. A taxa de investimento da economia brasileira, que foi de 20,9% em 2013, caiu para 15,4% em 2019.
A participação do setor industrial no PIB brasileiro vem caindo ano a ano. Em 2018, a indústria de transformação representou apenas 11,3% do PIB, quase metade dos 20% registrados em 1976. Importante destacar que o setor industrial é um grande laboratório de desenvolvimento de inovação e também de uma cadeia de fornecedores, que impactam diretamente no desenvolvimento local e na geração de postos de trabalho.
A descontinuidade do auxílio emergencial e sua redução, o fim da política de valorização do salário mínimo, combinado com o aumento dos alimentos da cesta básica que em 12 meses subiu 26,40% (SP) e 15,5% na média do país, intensifica o empobrecimento geral da classe trabalhadora. A insegurança alimentar moderada e aguda cresceu 13%, sendo que 4,6% são agudo. Domicílios brasileiros que passam fome equivale a 3,1 milhões de famílias.
Outra recente pesquisa apontou:
55,2% dos lares brasileiros, ou o correspondente a 116,8 milhões de pessoas, conviveram com algum grau de insegurança alimentar no final de 2020 e 9% deles vivenciaram insegurança alimentar grave, isto é, passaram fome. De acordo com os pesquisadores, o número encontrado de 19 milhões de brasileiros que passaram fome na pandemia do novo coronavírus é o dobro do que foi registrado em 2009, com o retorno ao nível observado em 2004.
A fome e a miséria voltaram a ser parte da paisagem brasileira.
Nesse sentido, diante da ausência de uma política nacional de reindustrialização, de reconversão produtiva, que só aprofunda a atual crise, é necessário forjar nas ruas e nas redes um programa nacional para construir um novo Brasil, que possa colocar centralidade na constituição de uma política nacional de fomento às empresas de autogestão, valorizando a recuperação de empresas por parte dos trabalhadores.
Sobre os autores
é presidente da Central de Cooperativas Unisol Brasil e diretor tesoureiro da União Nacional das Organizações Cooperativistas Solidárias (UNICOPAS) e ex-presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos.
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