O texto a seguir foi publicado na 1ª edição da Jacobin Brasil sobre marxismo cultural. Adquira a sua agora mesmo!
O Movimento Brasil Livre (MBL) entra na categoria dos novos movimentos da direita brasileira. O grupo se destaca não somente por defender um projeto privatista e fundamentalista de mercado, como também por fazê-lo através de uma militância anti-esquerdista fundada em ataques e polêmicas. Não surpreende, então, que o MBL tenha sido um dos líderes na campanha pelo golpe da presidenta Dilma Rousseff.
Outros momentos emblemáticos do movimento foram a mobilização que fizeram contra a “arte imoral” da exposição Queermuseu, sua denúncia de uma “ideologia de gênero” representada pela luta por direitos das mulheres e LGBTs, e a cruzada contra o “vitimismo” do movimento negro na defesa das cotas raciais. O MBL também enxerga “doutrinação marxista” por todos os cantos e o Escola Sem Partido é o carro-chefe da atuação de seus militantes.
Juntas, essas pautas foram o suficiente para torná-los um grande expoente de uma guerra cultural no Brasil, que contribuiu para a campanha vitoriosa de Jair Bolsonaro – a quem ofereceram um “apoio crítico”. Desde então, o movimento, incluindo seus parlamentares eleitos, vem atuando de forma convergente nas suas pautas centrais: a agenda de Paulo Guedes na economia e a do ex-ministro Sérgio Moro na política criminal.
Mais armas, menos livros
Apesar do tal apoio crítico, o MBL e o bolsonarismo possuem pontos diretamente relacionados. A liberação da posse e do porte de armas é apenas uma das bandeiras em comum. Kim Kataguiri, a liderança de maior destaque do movimento, se orgulha de ter como referência Benedito Barbosa. Barbosa é um aclamado “especialista” em segurança pública e política armamentista que, por sua vez, tem como referência explícita o modelo estadunidense. Seus argumentos são simples: o Estatuto do Desarmamento seria um completo fracasso, pois teria desarmado os cidadãos de bem, tornando-os indefesos à criminalidade muito bem armada. O armamento do cidadão de bem teria um efeito intimidador sobre a criminalidade, sendo então uma medida eficaz contra a violência. O direito às armas é tratado como um “direito natural” vinculado ao direito de autodefesa.
A política armamentista do grupo ignora os efeitos negativos que a proliferação do estoque e da circulação de armas em uma sociedade causam. O Instituto Sou da Paz, ONG que há mais de 15 anos trabalha para a redução da violência no Brasil, aponta que o Estatuto do Desarmamento foi um fator importante para reverter o crescimento acelerado das mortes por arma de fogo no país. Segundo dados do Mapa da Violência de 2015, entre 1993 e 2003, a taxa de mortes por armas de fogo por 100 mil habitantes crescia aproximadamente 6,9% ao ano. Essa tendência passou a ser revertida a partir de 2004, com o crescimento caindo para 0,3% ao ano. Já outra pesquisa realizada em 2000 pela Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) apontou que a existência de armas em residências contribui para mortes durante atentados ao patrimônio.
Não é como se o MBL desse de ombros para uma argumentação baseada em evidências. O movimento apresenta, sim, indicativos em seus discursos, mas estes não são coerentes com a produção acadêmica sobre os temas. Em vez de enxergarem nisso uma contradição, o movimento busca desqualificar conclusões científicas como sendo fruto de centros universitários afetados por uma “infiltração gramsciana”, voltada a solapar as bases do conhecimento baseado na tradição “judaico-cristã”, como prega constantemente o polemista Olavo de Carvalho.
O próprio Benedito Barbosa defende em seu livro Mentiram para mim sobre o desarmamento (Vide, 2015), que o desarmamentismo é uma ideologia de dominação estatal sobre os indivíduos, fruto de uma conspiração internacional de esquerdistas. Quando utilizam referências científicas, elas são escolhidas a dedo de acordo com o propósito. É o caso da citação do economista John Lott Jr., cuja longa trajetória na apologia de leis armamentistas frouxas o tornou o braço ideológico da National Rifle Association (NRA) nos Estados Unidos, organização sempre a postos para fazer o lobby antirrestricionário. Lott Jr. é alvo de críticas pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e seus pesquisadores, cujas análises apontam uma correlação positiva entre menos armas e menos crimes com armas de fogo.
Um pacote prisional
A trapalhada no uso de dados para justificar políticas aparentemente lógicas também se repete no quesito do encarceramento. Roberto Motta, militante do MBL e um dos principais assessores do ex-governador carioca Wilson Witzel, se ancorou no trabalho de um economista estadunidense para defender que mais prisões reduzem a criminalidade.
O economista Steven Levitt argumenta em um artigo de 1996 que há uma relação de causa e efeito entre maiores taxas de encarceramento e menores taxas de criminalidade registradas – o que sustentaria a alegada eficácia prisional na redução do crime. Contudo, na revisão e desenvolvimento de suas teses, em outro artigo de 2004, Levitt admite que sua hipótese é incapaz de explicar a correlação inversa em outro período de análise. O conjunto de evidências em que o MBL se ampara é tão frágil que até mesmo Levitt reduziu as incongruências de suas conclusões como parte de um “enigma”.
Entre os criminólogos e sociólogos da violência, o consenso é o inverso do propagado pelo MBL: a taxa de encarceramento não possui nenhuma relação de causalidade com a redução da taxa de criminalidade encontrada.
Há, inclusive, casos empíricos atestando todo tipo de relação: positiva, negativa e neutra. De acordo com o Departamento Penitenciário Nacional, de 1990 a 2016, a população carcerária brasileira aumentou 707% (de 90 mil para 726 mil), e sua taxa por 100 mil habitantes cresceu 477% (de 61,1 para 352,8).
A política prisional brasileira é um desastre no combate ao crime. Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias, autores de A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil (Todavia, 2018), defendem que o modelo de encarceramento em massa no Brasil, com superlotação média de cerca de 200% e com condições degradantes no cárcere, está na base do fortalecimento de facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV). Os grupos criminosos se aproveitam desse estado de coisas para aliciar novos detentos, gerir o caos penitenciário e manter um lucrativo negócio em torno de drogas arbitrariamente criminalizadas. O mercado de drogas opera em uma lógica que promove massacres entre facções rivais disputando hegemonia, sendo esta uma das principais razões do aumento no índice de homicídios no Nordeste nos últimos anos.
Além da intensificação da tragédia e da violência que a multiplicação de armas trará para todos nós, a política policial do MBL é digna de um filme de horror. Como se não bastasse a altíssima letalidade policial no país, sobretudo com Estados em permanente “guerra às drogas”, como o Rio de Janeiro, a ideologia punitiva do senso comum distorce até mesmo a realidade das ações policiais. O discurso padrão é que policiais estariam morrendo porque não podem se defender adequadamente. O problema está nos defensores de direitos humanos que perseguem policiais implacavelmente e exigem punições injustas para corporações inteiras.
Por isso, a aliança MBL-Moro promoveu pacotes anticrime com a presunção automática de inocência para policiais que matam em serviço. A polícia brasileira já goza de um acobertamento estrutural por meio dos “autos de resistência”. Nesse tema, a pesquisa do delegado Orlando Zaccone é de interesse, já que analisa cerca de 300 pedidos de arquivamento desses autos por parte dos promotores do Ministério Público. Segundo ele, o discurso dos promotores toma partido a favor dos policiais envolvidos e coloca o holofote nas características do local do evento, sobretudo os territórios das favelas, e nos antecedentes criminais da vítima; ou seja, “investigam-se os mortos, e não as mortes”. Essa impunidade padrão pode ser intensificada ainda mais por uma política criminal desenhada sem qualquer preocupação com evidência concreta.
Eficácia na promoção de danos
A coalizão de novos atores da direita que vem mandando no Brasil advoga uma concepção de segurança pública bélica, que prioriza o enfrentamento militarizado no controle do crime e expõe a força policial a grave risco de morte – a verdadeira razão por trás da alta taxa de mortalidade policial. O mesmo ocorre em relação ao “cidadão de bem”, que, ao portar armas e visar a autodefesa, acaba por se tornar mais vulnerável à letalidade criminal do que se estivesse desarmado.
O MBL investe na narrativa simplória de enfrentar o crime pela força bruta porque isso funciona como discurso eleitoral. Já depois das eleições, a materialização do discurso em política criminal é ineficaz na proposta de redução da insegurança pública e gera uma espiral de violência que acomete tanto a força policial quanto a população civil. Esses atores rebatem defensores de direitos humanos acusando a esquerda de manipulação ideológica “gramscista”, porém é a sua própria distorção ideológica das razões e das circunstâncias da criminalidade que coloca a sociedade em risco.
A defesa do hiperencarceramento como melhor resposta à violência serve para ocultar sua função real de criminalização racista da pobreza. O foco em crimes patrimoniais e o pequeno varejo de drogas promove a supremacia da propriedade privada, enquanto menospreza crimes violentos de homens contra mulheres e de empresários contra trabalhadores e o meio ambiente. Seu objetivo é esconder a todo custo que as principais vítimas da violência urbana não pertencem à classe média branca amedrontada, mas consistem em jovens negros da periferia presos em um ciclo vicioso de marginalização e vulnerabilidade social.
Quando Kim Kataguiri publicou um vídeo no YouTube em que fala de Karl Marx como se ele ainda estivesse vivo durante o século XX, é difícil não rir ou debochar dos erros da direita que promove intensamente o pânico moral contra um suposto marxismo cultural. Só não se pode ignorar que por mais que pareçam despreparadas, as táticas do MBL e seus aliados vêm dando certo uma após a outra, com consequências irreparáveis para a sociedade. É preciso afirmar que eles distorcem fatos e mentem sobre a esquerda, mas isso não quer dizer que não tenham um projeto.
O que pode parecer mero descaso ou falta de capacidade de gestão só ocorre porque o efeito dessa situação é exatamente o desejado. O permanente fracasso em atingir os objetivos declarados é proposital, pois reproduz as condições para continuar intensificando o programa punitivista, militarista e armamentista como a solução que um dia vingará. Enquanto isso, se promove um controle funcional para perpetuar as dominações estruturantes da sociedade brasileira. Sua política criminal é fraca e é por isso que, para os propósitos da direita, é tão forte.
Sobre os autores
é doutorando em sociologia na UNB e produtor do canal Cifra Oculta.