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Mulheres militantes do Partido Democrático Popular do Afeganistão (PDPA) manifestam-se em Cabul durante a retirada das tropas soviéticas em fevereiro de 1989. (Patrick Robert / Sygma via Getty Images)

As lágrimas de crocodilo pelas mulheres afegãs

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Tradução
Gercyane Oliveira

Os falcões de guerra constantemente citam a libertação das mulheres em apoio à invasão dos EUA no Afeganistão. Isso é uma enorme hipocrisia: durante a Guerra Fria, os EUA apoiaram os fundamentalistas patriarcais contra um partido dedicado a militar pela causa das mulheres afegãs.

Toda a classe política dos EUA está derramando lágrimas pelo destino das mulheres afegãs por causa do recente domínio do Talibã no país. Estas lágrimas são consonantes com um discurso de 20 anos que apresentava o desejo de libertar as mulheres afegãs do jugo do Talibã como uma motivação chave na invasão do Afeganistão liderada pelos EUA. Outro objetivo imediato era extinguir a Al-Qaeda em resposta aos ataques do 11 de Setembro.

Esta pretensão é, de fato, muito hipócrita. A falsidade é especialmente transparente à luz da Guerra Fria, quando os EUA apoiaram fundamentalistas patriarcais contra um partido dedicado a promover a causa das mulheres afegãs.

A pretensão de agir em nome das mulheres afegãs poderia ter sido utilizada da mesma forma, se não de forma mais convincente, para justificar a ocupação soviética de dez anos no seu país. Afinal, sob o governo do Partido Popular Democrático do Afeganistão (PDPA), apoiado pelos soviéticos, foram tomadas medidas cruciais na tentativa de emancipar as mulheres afegãs das tradicionais algemas patriarcais. Um relatório de 2003 do Grupo Consultivo Internacional de Crise da OTAN (ICG) detalhou estas medidas aplicadas pelo regime do PDPA e a dura regressão na condição feminina que prevaleceu após a queda do partido. Como resumido dez anos mais tarde num relatório de 2013 pelo mesmo ICG:

Destituindo Daud num golpe militar, o Partido Democrático Popular do Afeganistão (PDPA) prometeu às mulheres igualdade de direitos, educação obrigatória e proteção contra o casamento forçado, arranjado e infantil. O regime do PDPA também encorajaram o emprego feminino. Em meados da década de 1990, quando os Talibã assumiram o comando, 70% dos professores, cerca de metade dos funcionários públicos e 40% dos médicos no Afeganistão eram mulheres.

Com certeza, o ICG criticou o regime PDPA e a ocupação soviética pela sua brutalidade e pela imposição de medidas pesadas como o fim da segregação nas escolas, mas não há dúvida de que os anos do PDPA foram um grande esforço para melhorar a condição das mulheres afegãs nas áreas (especialmente urbanas) sob controle do regime. Entretanto, a oposição islâmica ao regime PDPA, dominada por fundamentalistas linha dura, era fortemente anti-mulheres: a diferença entre os mujahidin dos anos 80 e início dos anos 90 e os talibãs é uma das tonalidades do mesmo extremo – não uma diferença qualitativa. Como o relatório da ICG de 2013 observou: “Os mujahidin usaram o seu controle no interior do Paquistão para impor a sua interpretação idiossincrática do papel das mulheres à população refugiada, apoiada pelo regime do General Zia-ul-Haq, que compartilhava a sua versão puritana do Islã”.

Para além da ditadura militar paquistanesa, os mujahidin eram apoiados pelo mais antigo e mais próximo aliado muçulmano dos EUA, o reino saudita, igualmente conhecido pelo seu terrível tratamento com as mulheres. E, no entanto, foi este arco de forças que Washington escolheu apoiar na sua luta contra o regime PDPA e os seus aliados soviéticos.

Zbigniew Brzezinski, Conselheiro de Segurança Nacional de Jimmy Carter de 1977 a 1981, fez muito barulho com a entrevista que deu a uma revista francesa em 1998, dois anos após a tomada do poder pelos talibãs em Cabul. Depois de se gabar de que seu governo tinha dado à URSS “sua guerra do Vietnam” e que “provocou a desagregação do império soviético”, foi-lhe perguntado se lamentava “ter apoiado o fundamentalismo islâmico, tendo dado armas e conselhos a futuros terroristas”. Brzezinski respondeu cinicamente: “O que é mais importante para a história do mundo? Os talibãs ou o colapso do império soviético? Alguns muçulmanos revoltados ou a libertação da Europa Central e o fim da guerra fria?”

Brzezinski pelo menos não tentou desculpar os talibãs – ao contrário de Zalmay Khalilzad, que, depois de ter servido nos departamentos de Estado e Defesa nos governos Reagan e Bush Sr., se tornou embaixador dos EUA no Iraque e depois no Afeganistão sob George W. Bush. Mais tarde, foi encarregado das negociações dos EUA com os talibãs por Donald Trump e desempenhou esse papel até à conclusão da retirada dos EUA em agosto passado. Em 1996, Khalilzad argumentou o seguinte no Washington Post: “Com base em conversas recentes com afegãos, incluindo as várias facções talibãs, e com paquistaneses, estou confiante de que eles acolheram com agrado um novo envolvimento americano. O Talibã não pratica o estilo de fundamentalismo anti-americano praticado pelo Irã – está mais próximo do modelo saudita”.

As feministas apreciarão a elevada preocupação de Khalilzad com os direitos das mulheres, que não passa de uma amostra da duplicidade de padrões de Washington que vem de longa data no combate ao fundamentalismo islâmico do Irã, ao mesmo tempo que desculpam os sauditas – embora, em comparação com o último, o primeiro pareça um farol da democracia e da emancipação das mulheres. O que impediu o reengajamento que Khalilzad tinha recomendado não foi, no mínimo, o destino das mulheres afegãs. Foi apenas o aumento dos ataques da Al-Qaeda aos alvos norte-americanos, que levou Bill Clinton a ordenar um ataque com mísseis às bases de Osama bin Laden no Afeganistão em 1997. O resto da história é bem conhecida: o 11 de Setembro e os vinte anos de envolvimento dos EUA naquele país devastado pela guerra, terminando no resultado catastrófico que todo o mundo testemunhou em agosto.

Se a condição das mulheres estava globalmente mais avançada sob a República Islâmica do Afeganistão patrocinada pelos EUA (2004-2021) do que sob o regime do PDPA é discutível. Ao contrário deste último, porém, o regime patrocinado pelos EUA teve de acomodar a tradição patriarcal encarnada pelos antigos aliados afegãos de Washington, os mujahidin que tinham combatido o PDPA e a ocupação soviética e mantido o seu domínio sobre o novo regime (ver as seções sobre os direitos das mulheres e das meninas nos sucessivos relatórios anuais da Human Rights Watch sobre o Afeganistão).

Além disso, as mulheres nas zonas rurais, onde vive a grande maioria dos afegãos, suportaram o peso da guerra liderada pelos EUA e suportaram um enorme sofrimento em consequência da mesma. A Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão (RAWA) tem denunciado esta situação em termos fortes. E apesar dos apelos à inclusão de mulheres no processo de paz que Washington conduziu com os talibãs sob o comando de Barack Obama, Donald Trump e Joe Biden, a participação das mulheres permaneceu à margem. A alegação de que os EUA conseguiram promessas de moderação por parte dos talibã já provou ser uma piada – o que teria sido arriscado se a situação não tivesse sido tão trágica.

Sobre os autores

é professor da SOAS, University of London. Seus livros mais recentes são Marxism, Orientalism, Cosmopolitanism (2013), The People Want: A Radical Exploration of the Arab Uprising (2013) e Morbid Symptoms: Relapse in the Arab Uprising (2016).

Cierre

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Published in Análise, Ásia, Imperialismo and Militarismo

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