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LEGENDA: O Presidente Ronald Reagan fica atrás do Presidente sul-coreano Chun Doo-hwan enquanto este discursa na Casa Branca, em 26 de abril de 1985. (Bettmann / Getty Images)

Washington apoiou um golpe contra a democracia sul-coreana

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Tradução
Sofia Schurig

Um filme que retrata o golpe de Estado de 1979 na Coreia do Sul, apoiado pelos EUA, tornou-se uma sensação de bilheteira. 12.12: The Day (O Dia) agora está disponível para o público internacional como um retrato emocionante das manobras da direita contra a democracia, que tem fortes ressonâncias contemporâneas.

No final do ano passado, um militar sul-coreano conseguiu um feito póstumo raro. Chun Doo-hwan, que governou o país com mão de ferro durante grande parte da década de 1980, superou o desafio de Napoleão Bonaparte nas bilheteiras coreanas. Após a sua estreia em novembro, o filme 12.12: O Dia, que retrata o período de nove horas no dia 12 de dezembro de 1979, durante o primeiro dos dois golpes de Chun, ultrapassou confortavelmente o medíocre mas conquistador épico de Ridley Scott.

No Natal, o emocionante thriller político tinha vendido mais de dez milhões de bilhetes em um país com 51,7 milhões de habitantes. O sucesso do filme foi em parte motivado pelos receios em relação ao atual presidente da Coreia do Sul, Yoon Suk-yeol, o ex-procurador-geral que ascendeu à presidência em 2022.

Yoon tem utilizado uma intriga de procuradores para destruir a democracia e solidificar o seu governo de extrema-direita, de uma forma que lembra o governo de Chun. Chun mobilizou um grupo de oficiais num golpe de Estado que primeiro tomou o controle da hierarquia militar e depois assumiu o governo após massacrar centenas de jovens manifestantes na cidade de Gwangju.

O filme já está disponível em plataformas globais de streaming. 12.12: O Dia merece chegar a um público amplo como uma descrição, hora a hora, de como os golpes antidemocráticos de direita podem ser bem sucedidos.

Senhores da guerra rivais

Em dezembro de 1979, grande parte da Coreia do Sul antecipava a “primavera de Seul”, quando finalmente elegeria o seu presidente ao abrigo de uma nova constituição democrática. Dois meses antes, o ditador militar Park Chung-hee foi assassinado pelo próprio chefe dos serviços secretos.

“Em dezembro de 1979, grande parte da Coreia do Sul antecipava a “primavera de Seul”, quando finalmente elegeria o seu próprio presidente ao abrigo de uma nova constituição democrática.”

Park tinha governado o país durante dezoito anos, depois de derrubar o primeiro governo democraticamente eleito em um golpe em 1961. Kim Jae-kyu, o seu braço direito e diretor da Agência Central de Informações da Coreia (KCIA), agiu com medo de que Park desencadeasse uma força militar bruta para suprimir as campanhas de massas que estavam surgindo com o objetivo de derrubar o regime autoritário.

Ao mesmo tempo que recorria cada vez mais a medidas repressivas para manter o controle sobre o país, Park colocava muitas vezes astutamente os membros dos seus círculos internos uns contra os outros. Ele fomentou a competição entre a burocracia e os militares, induzindo oficiais e generais a disputarem por seu favor em troca de lealdade.

Esta rivalidade reprimida acabou contribuindo para o assassinato de Park. O sentimento de humilhação de Kim por ter sido ultrapassado por um rival que serviu como chefe da segurança presidencial também desempenhou um papel na sua decisão de premir o gatilho.

Park preparou Chun e seu grupo de jovens oficiais, fluentes em inglês e na guerra moderna e que serviram ao lado do exército americano no Vietnã, para combater a velha guarda militar daqueles que foram educados durante a era colonial japonesa e recrutados para o corpo de oficiais durante a guerra da Coréia de 1950-53. O grupo de Chun se reuniu em torno de Hana hoe (“Sociedade 1”), um grupo fundado por Chun e pelos seus colegas recém-licenciados da primeira academia militar de quatro anos do país, nos últimos dias da guerra.

O seu orgulho por terem completado quatro anos de educação ao estilo de West Point e de formação nos Estados Unidos significava que estes jovens generais olhavam frequentemente para os seus homólogos mais velhos como um grupo ignorante e pouco qualificado. Chun personificava essa arrogância e ambição. Dois dias depois do golpe de Park, em maio de 1961, Chun, então tenente, levou cadetes da academia militar para marchar pelo centro de Seul em apoio ao golpe. Dois anos mais tarde, em 1963, ele quase encenou o que poderia ter sido o seu primeiro golpe para eliminar os rivais de Park.

Na sequência do assassinato de Park e da subsequente proclamação da lei marcial, as tensões há muito latentes explodiram sobre o controle das forças armadas e até do país. Chun estava em vantagem graças ao seu grupo bem organizado e altamente motivado, bem como ao seu controle dos poderes de investigação e de coleta de informações no âmbito da lei marcial, enquanto comandante do todo-poderoso Comando de Segurança da Defesa.

“Na sequência do assassinato de Park e da subsequente proclamação da lei marcial, as tensões há muito latentes explodiram sobre o controle das forças armadas e até do país.”

O diretor Kim Sung-su tem um culto de seguidores fora da Coreia do Sul pelo seu filme noir de 2016, Asura: A Cidade da Loucura. Em 12.12: O Dia, o diretor exprime habilmente as tensões, os egos exacerbados e o oportunismo burocrático que permitiram a Chun contornar as estruturas de comando e matar ou prender os seus superiores para assumir o controle das forças armadas.

No entanto, a descrição que Kim faz do grupo de Chun e dos seus rivais da velha guarda é às vezes muito simplista, baseando-se numa dicotomia entre bons e maus, para fazer justiça ao caráter dos altos escalões sul-coreanos da época. Apesar da sua intensa rivalidade, ambas as facções partilhavam a convicção comum de que os militares tinham direito a uma palavra final nos assuntos civis.

Após o assassinato de Park, Jeong Seung-hwa (retratado como Jeong Sang-ho no filme), o comandante da lei marcial raptado pelos cúmplices de Chun, deu muitas vezes a entender que iria dar o seu próprio golpe de Estado ao declarar publicamente que ele e os seus generais iriam “vetar” a presidência de Kim Dae-jung. Kim, um líder da oposição e futuro Prémio Nobel da Paz, estava emergindo como um candidato à presidência.

O que se passou na noite de 12 de dezembro de 1979 foi mais do que um golpe de Estado. Foi uma disputa entre dois senhores da guerra rivais, como ilustrado em várias cenas curtas do filme. Muitos dos antigos generais trataram as provocações de Chun mais como uma guerra territorial do que como um ato de traição.

A conexão dos EUA

Uma coisa que está completamente ausente em 12.12: O Dia é o retrato dos múltiplos papéis de Washington no apoio a Chun após o seu golpe, embora haja uma breve cena do ministro da defesa fugindo para um bunker subterrâneo das Forças dos EUA na Coreia (USFK).

Naquela noite fatídica, quando violou a estrutura de comando das suas próprias forças armadas, Chun mobilizou unidades de infantaria da Zona Desmilitarizada Coreana (DMZ) com a Coreia do Norte, infringindo a autoridade do comandante da USFK, John A. Wickham Jr. O general do Exército dos EUA tinha o controle operacional de todas as forças armadas sul-coreanas, com exceção dos paraquedistas e da divisão da guarnição de Seul. Apesar da forte oposição do general Wickham, o embaixador norte-americano William H. Gleysteen convidou Chun para uma reunião na sua residência, dois dias após o golpe, facilitada pelo chefe da estação da CIA em Seul, Robert Brewster.

Encontrar-se pessoalmente com Chun, quarenta e oito horas depois do golpe, na sua própria residência foi uma violação flagrante do protocolo de um embaixador dos EUA em todos os sentidos possíveis. No entanto, Gleysteen foi ainda mais longe, reiterando o raciocínio de Chun e retratando a sua descrição anterior do “incidente de 12.12” como “um golpe em tudo, menos no nome”, com o argumento de que “a estrutura governamental permaneceu intacta”. Ele solicitou ao Departamento de Estado que parasse de classificar o incidente como um golpe.

Chun, que tinha recebido formação em guerra psicológica em Fort Bragg, na Carolina do Norte, em 1959, maximizou os seus ganhos com a reunião. Chegou ao portão da residência do embaixador dos EUA em uniforme militar, acompanhado por um grande grupo de guarda-costas armados. Esta grande visibilidade no centro de Seul ajudou a acelerar a disseminação silenciosa de notícias sobre o seu encontro supostamente confidencial com Gleysteen, especialmente entre a elite sul-coreana.

“O embaixador norte-americano William H. Gleysteen convidou Chun para uma reunião na sua residência, dois dias após o golpe, facilitada pelo chefe da estação da CIA em Seul.”

Nas suas memórias, James V. Young, adido militar e chefe da estação da Defense Intelligence Agency (DIA) na época, recordou que muitos sul-coreanos lhe perguntaram, a partir de 14 de dezembro, se os Estados Unidos apoiavam agora Chun. Se não, perguntavam, porque é que ele e Gleysteen tiveram um encontro tão “aconchegante”? Quer fosse sua intenção ou não, o homem de Washington no terreno em Seul ajudou a levar os escalões superiores da burocracia e da elite sul-coreanas a se alinharem com Chun, com diferentes graus de oportunismo e aquiescência.

Os laços do diretor da estação da CIA, Brewster, com Chun parecem ser anteriores ao golpe de 12.12, embora muitos dos seus telegramas para Langley permaneçam confidenciais. Brewster, que morreu de câncer em 1981, dizia frequentemente ao general Wickham que Chun era “o único cavalo na cidade” e que os Estados Unidos precisaria trabalhar com ele “mesmo que à distância”.

Chun também tentou contornar a autoridade de Wickham, enviando cartas ou emissários pessoais a antigos generais da USFK nos Estados Unidos, pedindo-lhes diretamente apoio. Entre os destinatários encontrava-se John William Vessey Jr., o vice-chefe do Estado-Maior do Exército dos EUA. Vessey conheceu Chun durante o seu mandato como comandante da USFK no final da década de 1970, quando a divisão de infantaria do general sul-coreano descobriu um túnel secreto escavado pela Coreia do Norte para um ataque surpresa em grande escala.

Vessey estava entre os quinze decisores políticos de alto nível que participaram na reunião de revisão da política da Casa Branca, em 22 de maio de 1980, na sequência dos fuzilamentos em massa em Gwangju, por paraquedistas, de manifestantes desarmados que se levantaram contra o golpe de Chun. Não se sabe como ou se Vessey, a única pessoa presente que tinha amizade com Chun, falou em nome do mentor do massacre de Gwangju na reunião, que decidiu efetivamente apoiar a sua violenta repressão. De acordo com a memória do próprio Chun, Vessey apresentou ele e sua equipe a Richard Allen, conselheiro de segurança de Ronald Reagan, que ofereceu a Chun a primeira cúpula de Reagan como presidente em Washington.

O fim do regime militar

Apesar da sua incompetência e miopia política, Gleysteen e Brewster ajudaram muito a moldar a situação a favor de Chun, que efetuou as suas próprias acrobacias políticas para conquistar o apoio dos EUA. Isto porque Washington não parecia ter um plano de contingência para um regime pós-Park, apesar da crise política que se instalava na Coreia do Sul.

“Washington não parecia ter um plano de contingência para um regime pós-Park, apesar da crise política que se instalava na Coreia do Sul.”

De acordo com uma análise de vinte páginas publicada em 9 de junho de 1979, a CIA esperava que Park se mantivesse no poder até à década de 1980, devido ao seu forte controle autoritário e à incapacidade de estudantes ativistas e dissidentes de angariar o apoio político dos desfavorecidos. Nos quatro meses que se seguiram, essa avaliação se revelou incorreta quando confrontada com a morte de Park. No entanto, continuava a ser verdade que os ativistas pró-democracia não conseguiam obter um apoio maior, exceto em Gwangju, onde os estudantes e os cidadãos comuns se uniram, controlando brevemente a cidade depois de derrotarem os paraquedistas leais a Chun.

No final de 1979, as autoridades de Washington pareciam estar a concluir que poderiam precisar de outro homem forte militar para eliminar a volatilidade e restaurar o status quo na Coreia do Sul. Com grande parte dos seus recursos militares e diplomáticos envolvidos na resposta à Revolução Iraniana e à guerra soviética no Afeganistão, a política da Guerra Fria significava que os Estados Unidos não poderia permitir outro fiasco ao estilo do Irã na península coreana. Qualquer agitação deste tipo correria o risco de provocar a invasão de Seul pela Coreia do Norte comunista.

Em “North Korean Reactions to Instability in the South”, um relatório publicado oito dias após o golpe de 12.12, a CIA estimou em 50% a probabilidade de a Coreia do Norte optar por uma ação militar. No entanto, mesmo na opinião da própria agência, a agitação pública generalizada não seria, por si só, suficiente para levar a Coreia do Norte a optar por uma ação militar. Teria que ser acompanhada de lutas internas dentro das forças armadas sul-coreanas.

Em maio de 1980, Chun tinha de fato provado ser “o único cavalo na cidade”. Ele ordenou a captura de vários milhares de dissidentes e reprimiu brutalmente a revolta de Gwangju, depois de ter expulsado a facção rival das forças armadas cinco meses antes.

As manobras paliativas de Washington em 1979-80 contrastaram visivelmente com uma mudança estratégica que começou a ser iniciada a partir de 1987, em resposta ao impasse entre Chun e a população coreana sobre a sua insistência em permanecer no poder. Em um memorando de cinco páginas intitulado “Coreia do Sul: The Time Bomb is Ticking“, o diretor de análise da Ásia Oriental da CIA concluiu que os Estados Unidos teriam de desempenhar um “papel mais assertivo” na Coreia do Sul.

O seu objetivo, de acordo com o memorando, deveria ser mediar um compromisso entre alguns membros do partido no poder de Chun e o partido da oposição sobre uma nova constituição, a fim de evitar que Chun forçasse sua própria versão para perpetuar o seu controle nos bastidores. Caso contrário, alertou o analista, a tentativa de Chun de se agarrar ao poder provocaria provavelmente “violência política sob a forma de um golpe militar ou de revoltas populares lideradas por estudantes e trabalhadores”.

“No verão de 1987, meses de protestos em massa resultaram em reformas constitucionais que garantiram eleições presidenciais livres e diretas.”

No verão de 1987, meses de protestos em massa resultaram em reformas constitucionais que garantiram eleições presidenciais livres e diretas. Estas concessões foram, de fato, feitas sob a forma de um grande compromisso entre os dois principais partidos, à custa da negligência de uma agenda de esquerda mais ampla relativa aos direitos dos trabalhadores e das minorias sociais.

Desde então, não tem sido difícil notar a assertividade dos Estados Unidos nas grandes conjunturas políticas. No entanto, nem Washington nem a elite governante sul-coreana conseguiram sempre o que queriam. O que distinguiu os dois períodos do final da década de 1970 e do final da década de 1980 foi a emergência de um movimento popular na Coreia do Sul. O ativismo nacionalista e de esquerda entre os estudantes e os trabalhadores tornou-se uma força a ter em conta, não só para os militares mas também para os Estados Unidos.

A democracia em declínio

Nos últimos anos, a democracia sul-coreana perdeu rapidamente a vitalidade pela qual era conhecida e desenvolveu a sua própria versão de hegemonia bipartidária ao estilo dos EUA para dois partidos pró-empresariais. Uma legislatura em disputa não consegue, cada vez mais, chegar a qualquer consenso significativo, enquanto os políticos no poder utilizam frequentemente os poderes de ação penal para desacreditar e eliminar os seus rivais.

“Nos últimos anos, a democracia sul-coreana perdeu rapidamente a vitalidade pela qual era conhecida.”

O promotoria sul-coreana é uma raridade nas democracias, pois tem poderes de investigação e de ação penal sem restrições. Desde que o país se democratizou em 1987, tem reduzido progressivamente a influência da sua famosa agência de inteligência. Em contrapartida, a influência da promotoria tem-se tornado cada vez mais forte, com um papel em quase todas as organizações governamentais, desde a agência de inteligência até às principais embaixadas.

O diretor de 12.12: O Dia parece ter enquadrado o filme com a intenção de sugerir paralelismos com o atual presidente da Coreia do Sul, Yoon Suk-yeol. No seu papel de procurador-geral em 2019-20, Yoon frustrou com sucesso os esforços do governo liberal de Moon Jae-in para controlar o Ministério Público. Há dois anos, candidatou-se à presidência na lista dos opositores de Moon, o conservador Partido do Poder Popular.

Mesmo para quem não vive na Coreia do Sul, assistir a 12.12: O Dia deve ser uma experiência estimulante e até inspiradora. Estamos vivendo em um mundo marcado pelo declínio da democracia e pela ascensão da extrema-direita. As suas ressonâncias contemporâneas fazem com que 12.12: O Dia seja um filme imperdível.

Sobre os autores

é um escritor e pesquisador coreano que mora em Nova York. Seus textos são publicados no Labor Notes, In These Times, Business Insider e outras publicações.

Cierre

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Published in América do Norte, Análise, Ásia, DESTAQUE, Guerra e imperialismo, Política and Relações Internacionais

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