Trecho extraído do livro A Revoada dos Galinhas Verdes: uma história da luta contra o fascismo no Brasil, de Fúlvio Abramo, publicado pela Veneta.
O relato dos acontecimentos do dia 7 de outubro de 1934, à distância de 50 anos, exige o máximo de objetividade se desejarmos trazer ao conhecimento de hoje a visão mais aproximada possível do que ocorreu. As causas que exigem esses cuidados são numerosas. Uma das mais importantes é a escassez de documentação contemporânea ao fato. Em que pesem as longas reportagens publicadas em jornais da época, tomando páginas inteiras da Folha da Manhã, Folha da Noite, Diário de S. Paulo, Diário da Noite, O Estado de S. Paulo, A Platéa e A Plebe, material editado e necessariamente impreciso, escasso e às vezes mais opinativo que descritivo. Para benefício dos colegas jornalistas da época, concedamos que lhes era impossível relatar com maior detalhamento o que acontecera, dado que os jornais de então designavam um único repórter para coberturas como essa. Seria demais exigir maior precisão na descrição de um acontecimento que se desenrolara num espaço muito amplo, impossível de ser testemunhado por um único observador.
Por sua vez, os maiores interessados na manutenção da memória do dia 7 de outubro, nós, os que então militávamos na Liga Comunista Internacionalista e havíamos criado a Frente Única Antifascista, sofremos logo a seguir uma crise profunda que abalou e praticamente liquidou as nossas fileiras. A expulsão de Aristides Lobo e seus acompanhantes, a liquidação da FUA pela Aliança Nacional Libertadora, a sucessiva prisão e exílio de quase todos os seus membros, com o que foi selada a extinção da LCI, privaram-nos dos meios de examinar e rememorar o acontecimento.
Outro motivo que torna laboriosa a tentativa de construção histórica do 7 de outubro é a visão errônea que dele têm até respeitáveis historiadores, “brazilianists” e jornalistas interessados em acompanhar comemorações de fatos históricos: referimo-nos à incapacidade dos analistas de compreender que a dissolução do ajuntamento integralista e dispersão de suas hostes uniformizadas não foram apenas uma briga de rua, um doesto entre políticas antagônicas, mas, antes de mais nada, o desmantelamento de um plano arquitetado pelos integralistas para convencer o ditador da absoluta necessidade de chamar para a sua companhia, no poder, a força fascista, a única que supostamente poderia dar-lhe meios para combater a crise econômica e social em que se debatia o Brasil. Plínio Salgado estava desejando demonstrar que seus milicianos poderiam servir à consolidação do capitalismo contra as ameaças do comunismo, pois estavam preparados para enfrentá-lo na rua. Sem levar em conta isso, a análise do que ocorreu naquele dia não passa de uma avaliação inepta.
Acrescentem-se ainda fatores como o desaparecimento de quase todos os homens que lideraram os acontecimentos de então e a relutância, em alguns casos, ou recusa, em outros, dos poucos sobreviventes, de dar o seu testemunho pessoal; a pretensão, ainda mais grave do que isso, de certas pessoas que não se encontravam no centro das decisões naquele tempo, de desejarem apresentar-se hoje como pivôs únicos e imprescindíveis dos fatos. E o silêncio absoluto que o Partido Comunista do Brasil e seus sucessores PCdoB, PCB, MR-8 e quejandos, mantiveram em torno desse e de outros fatos daquele período de lutas internas intensas, quando o PCB acabou criando a ALN e o próprio desastre. Não se encontra entre respeitáveis memorialistas que pertenceram ou ainda pertencem aos quadros comunistas qualquer referência aos fatos de 7 de outubro e à Frente Única Antifascista.
Dispenso-me de dar os nomes desses autores, pois são todos, até mesmo os mais sinceros e honestos, conhecidos.
Há, ainda, mais uma causa grave: a fruição, o gosto que todo brasileiro sente e que recebeu como traço cultural transmitido pelos primeiros povoadores, de queimar, de atear fogo a tudo quanto se considera estorvante; refiro-me ao verdadeiro auto de fé particular que praticamente cada militante fez com os documentos que possuía, pelo receio de ser comprometido ante a brutalidade policial nas épocas de perseguição do Estado Novo e do golpe empresarial-militar de 1964. Quase tudo foi incinerado.
Finalmente, mais dois motivos dificultam a completa elucidação dos fatos: a literatura, que não está sujeita a manter-se nos limites da realidade e a reelabora ao seu gosto pessoal, e o subjetivismo de quem escreve, nem sempre imune de aparecer, na hora da evocação de momentos que demarcaram a vida e a visão de si próprio.
O enfrentamento
Quem se der ao trabalho de consultar a revista Isto É, de 10 de outubro de 1979, encontrará nas páginas 81 a 84 matéria sob o título “Um dia de luta e de união”, assinada por Paulo Sérgio Pinheiro, Ângela Ziroldo e colaboração de Maurício Dias, que após uma breve introdução sobre os acontecimentos que comemoravam então 45 anos, estampa três depoimentos “de algumas das lideranças que participaram daquele confronto”. Autores: Mário Pedrosa, Hermínio Sacchetta e eu.
O depoimento de Sacchetta e o meu apresentam várias contradições. A primeira é que ele afirma ali que o “Partido Comunista é que tomou a iniciativa de convocar essa reunião”. Creio que a memória do grande companheiro que foi esse homem dinâmico e inteligente falhou, como está evidente para quem acompanha a cronologia dos acontecimentos exposta nas páginas anteriores. A outra contradição entre os dois testemunhos é sobre quem “abriu” o comício. Sacchetta diz que ele o fez, subindo ao pedestal do relógio que então se encontrava no fundo da praça, no lugar onde atualmente se localizam as barracas dos vendedores de bilhetes de loteria.
No meu depoimento, afirmo que fui eu quem o abriu, subindo no pedestal da coluna que enfeita o portão do edifício A Equitativa, do lado esquerdo de quem olha para a Praça desde as escadarias da catedral. Também neste caso há, no meu entender, falha de memória. Os detalhes parecem insignificantes, mas na realidade têm alguma importância para a narrativa fiel do enfrentamento. Deixemos por ora esses desencontros atribuíveis tanto à falta e falhas daquela documentação a que me referi linhas atrás, quanto às infidelidades da memória de fatos ocorridos há tantos anos. Vamos ao dia 7 de outubro.
Entre 8h e 12h
Durante a manhã, depois de rápida leitura dos jornais para tomar conhecimento do que os integralistas estavam aprontando para a sua manifestação, realizei uma verdadeira maratona pelo centro da cidade, contatando elementos da FUA, do PSB, anarquistas, comunistas e meus companheiros trotskistas em pontos que haviam sido escolhidos em reuniões dos dias anteriores.
Eram poucos elementos de cada grupo que serviam de ligação com os contingentes maiores que deveriam chegar à Praça da Sé somente na hora da concentração. Os pontos principais eram o Largo João Mendes, o pátio do Convento do Carmo, no início da Avenida Rangel Pestana, o Largo de São Bento e a Praça Ramos de Azevedo. Um círculo amplo, dando fácil convergência para o centro da Praça da Sé. Encontrei tudo em ordem: os companheiros indicados lá estavam, à espera de receber os outros companheiros e rumar para a Praça quando fosse necessário. Com essa tática, despistamos os observadores adversários e evitamos que a polícia cortasse os acessos ao ponto central.
No pátio do Carmo, encontrei o socialista Godói, que me informou ter notícias de que os integralistas já estavam se reunindo: ele os vira ocupando um largo trecho da Avenida Brigadeiro Luís Antônio, a começar da Avenida Paulista até a sua sede, localizada junto ao cruzamento da Brigadeiro com a Riachuelo, próximo ao Largo de São Francisco. Os camisas-verdes deviam ser mais de três ou quatro mil, já que suas formações, escalonadas por fileiras duplas, interrompidas apenas pelas ruas transversais, ocupavam praticamente todo aquele trecho da Brigadeiro.
Os jornais noticiavam que chegariam quinhentos milicianos do Rio de Janeiro e de outras cidades. Na Estação do Norte, nossos observadores informaram que centenas de integralistas uniformizados desembarcavam de todas as composições que chegavam do interior do Estado. Como se constatou depois, realmente foi numeroso o contingente de plinianos procedentes das cidades de Bauru, Jaú, Sorocaba, Campinas, Santos e outras.
O abundante noticiário dos jornais sobre a concentração da Ação Integralista Brasileira para comemorar o segundo aniversário da sua criação e a profusão de manifestos e panfletos das mais variadas associações antifascistas distribuídos por toda a cidade tinham despertado o interesse da população, que ao meio-dia já acorrera à Praça em grande número. O local fervilhava de pessoas que circulavam ou formavam grupos por toda a sua extensão.
Companheiros antifascistas começaram a entrar na Praça, localizando-se nas áreas destinadas a cada grupo. Às 12h, completando a terceira volta pelos pontos de encontro, subi na sobreloja do prédio que faz esquina da Rua Barão de Paranapiacaba com o Largo da Sé, onde se localizava um salão de jogo de sinuca de nome Taco de Ouro. Era o ponto combinado nas reuniões de trabalho anteriores, de contato do PCB com a FUA e a LCI para manter unidade de ação na luta que se avizinhava. Ali encontrei Arnaldo Pedroso D’Horta e Noé Gertel, encarregados de manter os corredores de comunicação abertos entre nós. Poucos minutos depois chegou Miguel Costa Filho, que manteve com eles uma palestra muito breve, transmitindo-lhes informações sobre a situação da mobilização, segundo me pareceu.
Arnaldo me comunicou que permaneceria no interior do prédio na companhia de Noé Gertel por decisão da direção partidária, que exigia que eles não se expusessem a serem presos, pois eram muito conhecidos da polícia. (Anos mais tarde, Arnaldo, na militância comum que tivemos no PSB dos anos 1950, confirmou os fatos e confessou o constrangimento com que recebera a “ordem”. Quando a batalha da Praça já tomava aspectos graves, Arnaldo e Noé Gertel juntaram-se aos manifestantes, abandonando o “abrigo”. Mas, antes disso, encontrei-me mais uma vez com os dois no mesmo local, durante o segundo giro de minha atuação de coordenação). Considerei prudente a medida e saí acompanhado de “Miguelzinho”, que tomou direção contrária a minha.
Entre 13h e 15h
Eram 13h quando os primeiros contingentes de cavalaria e infantaria da Força Pública iniciaram a ocupação da Praça, distribuindo pelotões junto a todas as entradas, em frente ao prédio Santa Helena e nas saídas para o Pátio do Colégio e Rua Wenceslau Braz. Grupos de soldados também se postaram junto à Rua Barão de Paranapiacaba. Subindo em direção ao Largo João Mendes, encontrei Mário Pedrosa, que chegava naquele momento, em companhia de Machek e outros companheiros de seu grupo. Troquei algumas palavras com esses companheiros, dando conta do que fizera até então e confirmando a decisão tomada pela reunião ampla das organizações antifascistas de que eu abriria o comício.
Na militância comum com Mário Pedrosa, sábio homem de pensamento e ação, numa conjunção de qualidades não muito frequentes. Mas Mário realmente surpreendia. O seu entusiasmo por estar na linha de frente da luta antifascista e por dar mais uma demonstração de que a condição de trotskista era legítima expressão do espírito revolucionário transparecia no seu sorriso entre exultante e irônico. Conforme a decisão, Mário permaneceu com o grupo que o acompanhava nas proximidades do trecho da calçada da Praça na altura da Rua Senador Feijó.
Continuei circulando, fui até a porta do Santa Helena, onde falei com um membro do PSB que conhecia só pelo primeiro nome, Joaquim, muito ligado ao presidente do seu partido, Francisco Giraldes Filho, e recebi dele informação de que estavam todos os companheiros daquele ponto sequiosos por “começar a inana”, conforme se dizia então. Fiz a volta completa da Praça, passando em frente às esquinas da Wenceslau Braz, 15 de Novembro, Direita e Barão de Paranapiacaba, de onde passei para a Quintino Bocaiúva e, finalmente, Largo de São Francisco.
Quem se aproximou de mim, seguido de um homem alto, foi o doutor Nestor Reis, que me apresentou o seu acompanhante Euclydes Krebs, que “vai tomar conta deste setor”, cuidando que os integralistas “se comportem por aqui”, segundo me disse. Krebs ficou ali, em frente à Faculdade de Direito. Soube depois que ele passou a maior parte do tempo na Rua Quintino Bocaiúva, até a entrada da Barão de Paranapiacaba, fustigando sem trégua os integralistas.
Voltei para o Taco de Ouro. Os dois representantes do PCB permaneciam no lugar. Arnaldo inquiriu sobre como eu vira a situação lá fora. Limitei-me a um breve relato e confirmei a decisão de abrir o comício quando os integralistas iniciassem o deles, conforme estava combinado entre todas as organizações agora coligadas em ação comum. Pouco antes das 14h, a polícia começou uma “operação limpeza” nos prédios da Praça.
Os delegados Eduardo Louzada da Rocha e Saldanha da Gama entraram no Santa Helena, passaram um “pente fino” em todas as salas de frente e nas sedes dos vários sindicatos ali localizadas. Vasculharam todos os cantos e não encontraram arma nenhuma. Mandaram lacrar as portas dos sindicatos e das salas de frente e colocaram uma guarda de vários soldados no portão do prédio, proibindo a entrada de quem quer que fosse. Depois atravessaram a Praça e repetiram a operação no prédio de A Equitativa. Encontrando Ruy Fogaça, membro do PSB, nas proximidades, o delegado Saldanha o prendeu e o remeteu à Central de Polícia.
Essas medidas, previstas por nós quando recusamos aceitar o plano de colocar livre-atiradores no alto dos edifícios, desmentem as notícias de jornais e declarações de Plínio Salgado e outros chefões que acusaram os antifascistas de “atirar covardemente das janelas dos prédios contra os indefesos milicianos”. Os jornais escreveram que tiros saíam em profusão da sede da UTG, situada à Rua Barão de Paranapiacaba, nº 4, segundo andar. Mas a entidade publicou uma nota desmentido, no dia seguinte, em vários jornais, informando que a sua sede se mudara daquele local para a Rua 3 de Dezembro, nº 47, terceiro andar, bem longe dali e que a polícia a havia interditado desde as 12h de domingo (dia 7), colocando dois agentes de guarda.
No próximo giro do circuito de pontos de contato, encontrei as filhas de Rudolf Lauff, Anna e Maria, a primeira de 21 e a segunda de 12 anos de idade. Haviam se desencontrado do pai, alinhado naquele momento com um grupo de pedreiros, mas estavam a postos, prontas para agir. A presença da menina Maria impressionou fortemente Mário Pedrosa, que, até os seus últimos dias, no estágio final de sua doença, na presença de Mary, sua mulher, me perguntava, no Rio de Janeiro, “onde está a filha do Klassenkampf [luta de classes em alemão]?”
Minha irmã Lélia e uma tecelã, Catarina, juntaram-se às duas. Aos poucos, outros militantes da LCI e simpatizantes engrossaram o grupo que iria garantir minha proteção para o momento de fazer uso da palavra na abertura da contramanifestação. A esses juntaram-se cerca de dez ou doze anarquistas, alguns ainda guardando na memória a figura de meu avô materno anarquista, Bôrtolo Scarmagnan. Bem por perto, membros da Juventude Comunista, entre os quais o estudante Décio Pinto de Oliveira.
A essa altura, quatrocentos homens, pertencentes ao 1º, 2º e 6º Batalhões de Infantaria, Corpo de Bombeiros e Regimento de Cavalaria, já ocupavam toda a Praça, sob o comando do coronel Arlindo de Oliveira. A Guarda Civil também estava presente com um grande dispositivo armado de fuzis e metralhadoras. Logo, todas as ruas que levavam à Praça da Sé foram fortemente policiadas. Na João Mendes, cavalarianos, com grossos mosquetões, estavam cuidando das passagens que davam acesso à Sé. Na Rua Santa Thereza (que desapareceu com a demolição do prédio Santa Helena), um contingente da Guarda Civil ostentava fuzis-metralhadoras.
O dispositivo policial pareceu satisfazer aos integralistas, que iniciaram a sua comemoração enviando à Praça um grupo de moças e crianças, uniformizadas, desfraldando bandeiras com o sigma no centro. Elas se dirigiram às escadarias da Catedral, onde já se encontravam alguns milicianos integralistas, e, acompanhados por estes, começaram a entoar hinos e “anauês”, a saudação típica dos membros de sua grei.
A essa altura, os contingentes antifascistas estavam todos na praça, distribuídos, aproximadamente, de acordo com a divisão de áreas logísticas de que já falamos. Havia um grupo muito grande de manifestantes antifascistas em frente ao prédio Santa Helena. Estavam mais próximos que os demais das escadarias da Catedral, onde o festivo contingente de meninas e moças integralistas se colocou. Começaram então os “morras”, “fora galinhas verdes” e outras qualificações mais expressivas.
Alguns integralistas procuraram reagir e se estabeleceu um início de tumulto, com bengaladas, pontapés, safanões e cenas de pugilato. A polícia procurou intervir. Alguns tiros estouraram sem que se soubesse de onde provinham. Estabeleceu-se um começo de pânico, com integralistas, antifascistas e público em geral correndo por todas as partes. Mas esse primeiro estouro durou pouco. Cerca de dez minutos depois, os integralistas se reagrupam e o grosso das suas formações entrou na Praça e foi se colocando nas escadarias da Catedral, entoando o seu hino oficial e dando “anauês”.
Das 15h às 16h
Chamo a atenção para um pormenor, que deve ser considerado para a avaliação correta dos acontecimentos. Os jornais da época estabelecem uma certa confusão ao separar, nitidamente, “duas fuzilarias”, sendo a “primeira” produzida pelo disparo acidental de uma metralhadora. Na realidade ocorreram, sim, duas fuzilarias, com um intervalo de cerca de vinte minutos entre uma e outra.
As coisas se passaram do seguinte modo: o “primeiro” conflito, ocorrido quando ainda se encontravam nas escadarias da Catedral as moças e meninas e alguns milicianos integralistas, durou apenas alguns minutos e terminou com tiros. Foi durante o período de calma sucessivo a esse primeiro conflito que parte dos integralistas deu entrada na Praça, contornando os fundos da Catedral, no Largo João Mendes, e aparecendo pelo lado do prédio Santa Helena, ocupando depois as escadarias.
Eu me encontrava, nesse momento, junto à esquina da Rua Senador Feijó, com o grupo de membros da LCI, anarquistas e Juventude Comunista, a espera de desempenhar a tarefa que me fora incumbida. Troquei algumas palavras com Mário Pedrosa e Juan Hernandez, um anarquista, e comuniquei-lhes que já havia escolhido o lugar de onde iniciar comício: o pedestal da coluna lateral do edifício A Equitativa (o prédio está ainda no mesmo estado em que se encontrava até então. A única diferença é que a coluna em cujo pedestal subi está agora meio oculta por uma vitrina comercial). A Praça ecoava com os gritos contra os integralistas e seus hinos triunfalistas.
É esse o momento em que se verifica o “primeiro” incidente.
Até hoje não se pôde conhecer a versão exata de como aconteceu a descarga acidental, ou, segundo querem alguns, especialmente os integralistas, propositada. Uma das versões diz que os policiais haviam colocado sobre um tripé, bem em frente à Catedral, uma metralhadora distanciada do edifício uns trezentos metros. Um dos populares, que “se retirava apressadamente” do local, temendo um conflito, teria tropeçado na arma, que começou a detonar. A primeira rajada colheu em cheio três guardas civis, matando um deles. “O encarregado da arma atirou-se à mesma, segurando-a pelo cano e fazendo, assim, que o resto dos projéteis se perdessem no ar” (segundo a Folha da Manhã, de 8/10/34).
A outra versão diz que os soldados haviam montado uma metralhadora sobre um tripé na esquina da Rua Senador Feijó. Um cavalariano que não conseguiu dominar o nervosismo de sua montada teria sido levado pelo seu animal até onde se encontrava a arma, derrubando-a e causando os disparos.
Provavelmente nunca se saberá como de fato ocorreu o incidente da metralhadora, nem se foi acidental ou propositado, mas o certo é que foi essa descarga que fortaleceu a decisão de reagir dos antifascistas. Para todo o povo presente, que não sabia da acidentalidade dos disparos, seus autores eram os integralistas. O ódio popular foi excitado e, daí a pouco, mostrou como é perigoso despertá-lo.
Enquanto se retiravam os feridos e o corpo do morto, serenaram-se os ânimos. Houve intervalo de cerca de dez a quinze minutos entre a descarga e o tumulto, e nesse particular, talvez um dos poucos, combinam todos os jornais da época e minhas lembranças pessoais, confrontadas com as de outras dezenas de companheiros com quem conversei sobre o caso nestes últimos trinta anos, a contar do meu regresso do exílio na Bolívia.
Os integralistas, refeitos do pânico causado pela descarga da metralhadora, começaram a lotar as escadarias da Catedral. Achei que era esse momento para iniciar a contramanifestação. Subi ao pedestal da coluna e pronunciei breves palavras. Sei que disse algo semelhante a isto: “Companheiros antifascistas, viemos à Praça para não permitir que o fascismo tome conta da rua e de nossos destinos…” Nada mais pude dizer porque uma furiosa saraivada de balas foi dirigida ao nosso grupo, partindo dos integralistas e de cidadãos não uniformizados que os acompanhavam, provavelmente policiais. Senti projéteis zumbiram ao lado de minha cabeça e atingiram a parede bem perto de mim. Vi que Mário Pedrosa vinha descendo em minha direção acompanhado de homens e mulheres da LCI e de membros da Juventude Comunista que faziam cobertura à nossa defesa, atirando contra os integralistas. Todos estavam procurando abrigar-se contra a fuzilaria que era dirigida contra nós enquanto alguns faziam uso de armas.
Desci de meu palco improvisado e me juntei aos companheiros. Correndo, ouvi Mário dizer: “Estou ferido”, então tropeçou. Agarrei-o com a mão esquerda pelo braço. Nesse momento, vi que o jovem que corria à minha direita tivera como que um sobressalto e lançava pela boca uma golfada de sangue. Era Décio Pinto de Oliveira atingido mortalmente por uma bala na nuca. Com a mão direita agarrei-o pelo braço, enquanto ele ia caindo. Não pude aguentar o peso do corpo de Décio e por isso ele escorregou e caiu ao solo no meio-fio da calçada. Então continuei segurando Mário e o levei até a entrada do prédio do Taco de Ouro, onde o deitei ao solo, auxiliado por meu irmão Lívio, que ali se encontrava, sem meu conhecimento, junto com outros companheiros. Lívio me ajudou a colocar Mário no hall de entrada do prédio. Pedi a ele que cuidasse de Mário e voltei para socorrer o Décio. Seu corpo jazia no chão, no meio-fio da calçada, bem em frente ao prédio de A Equitativa. Auxiliado por um jovem que não conhecia, carreguei-o até a esquina.
O tiroteio estava no auge e o ponto em que me encontrava parecia ser o preferido pelos atiradores integralistas. Lembro-me bem de tê-los visto, de arma na mão, atirando na minha direção. Era, com efeito, entre as Ruas Benjamin Constant e Barão de Paranapiacaba onde se verificara o maior número de vítimas. Além de Mário e Décio, naquela parte da Praça foram atingidos gravemente diversos militantes: Cipriano Cruz Afonso, um português ativo simpatizante da esquerda, com ferimento no peito causado por uma bala de fuzil; Orácio Otromac, com ferimentos na coxa esquerda; Paulo Pinto de Carvalho, com ferimento penetrante na região torácica; Adelino Campos Brasil, com ferimento de bala na mão esquerda e mais dez ou doze cujos nomes se encontram na lista das vítimas.
Morreram, também, naquele trecho, três agentes policiais. Outros feridos faleceram no dia seguinte.
Das 16h às 17h
A batalha continuou, cada vez mais forte. A fuzilaria partia de todos os lados, numa confusão incrível, que facilitou, posteriormente, várias interpretações. A primeira, que surgiu no local mesmo dos acontecimentos, foi a de que houvera um acerto de contas entre policiais da Segurança de São Paulo e da Polícia Federal, recém-criada, cujos poderes centralizadores forjados para retirar das instâncias estaduais a relativa independência de que gozavam irritavam profundamente os paulistas.
Estava ainda bem presente à memória do governo de Getúlio a rebelião “constitucionalista” de 1932, de São Paulo, quando o poder central experimentou na própria carne como era ainda grande a margem de poderes administrativos e políticos dos estados, que deveriam ser aniquilados para a instauração de seu próprio regime personalista, centralizador e autocrático. Há fortes indícios de que algo pelo estilo possa ter ocorrido, pois o número de agentes policiais feridos e mortos foi percentualmente muito alto mesmo para uma refrega que juntava milhares de pessoas e que empregou dezenas de milhares de projéteis.
A outra versão é a de que a Força Pública de São Paulo tinha forte tendência a seguir o rumo que lhes indicavam o coronel Cabanas e o general Miguel Costa, os quais teriam influído sobre o seu comportamento contrário aos integralistas no próprio dia 7, pouco antes e durante os primeiros momentos da luta. É sabido que a Força Pública de São Paulo teve momentos em que o controle da ideologia da corporação fugiu aos donos do poder. Muitos de seus membros sofreram, em diversas oportunidades, pesados castigos por defender opiniões políticas e ideológicas contrárias ao governo.
Personagem e testemunha ocular dos acontecimentos da Praça da Sé, inclino-me a admitir que ambas as interpretações das causas da ocorrência de percentual tão expressivo de policiais atingidos têm algo de real. Mas recuso-me a aceitar a conclusão de que foi por essa “contribuição” das forças policiais que a contramanifestação teve êxito. O sangue de Décio Pinto de Oliveira, os ferimentos de Mário Pedrosa, Cipriano Cruz Afonso e de tantos outros mostram a quem se deve o mérito da vitória: ao heroísmo, à dedicação, à coragem de todos os militantes da causa proletária, aos anarquistas, socialistas, stalinistas, trotskistas, social-democratas, liberais de esquerda, estudantes, operários sindicalizados ou não, mulheres, até crianças, que foram à batalha para barrar o caminho ao integralismo.
Creditar o desbaratamento dos cerca de oito mil homens que os integralistas tentaram reunir na Praça da Sé à atuação quase exclusiva de dois militares e de seus soldados, como se tentou fazer, constitui a prova da total descrença na força da classe operária, quando esta assume sem confusões políticas ou ideológicas o seu verdadeiro papel de classe revolucionária.
Depois desse dia, o movimento “camisa-verde” não teve mais ânimo para exibir tão ambiciosas pretensões em suas aparições em São Paulo.
Aproxima-se o fim
A batalha prosseguia. Os integralistas contavam com alguns elementos que não são tão covardes como nós próprios os qualificamos mais por inimizade e desprezo (justificados) do que por amor à verdade. Esse grupo continuava a atirar e ainda não tinha abandonado a Praça. Finalmente se retirou, seguindo pela Rua Senador Feijó e atingiu o Largo de São Francisco enquanto a maioria dos gloriosos milicianos fugia a toda velocidade da Praça, por todas as direções da cidade.
À tarde, à noite, nos dias seguintes, são recolhidas camisas verdes largadas pelos seus donos em lugares os mais distantes da cidade: no Paraíso, na Vila Mariana, no Cambuci, na Lapa, no Pari, no Brás, enfim, em toda a cidade. Foi a grande fuga que passou a ser denominada daí por diante de a “revoada dos galinhas verdes”. Mas o grupo que foi para o Largo de São Francisco, protegido a essa altura pela polícia, que bloqueou todas as suas entradas com contingentes fortemente armados, exigia a continuação do comício. Queria a todo o custo realizar a comemoração de seu segundo aniversário nem que fosse com os remanescentes estropiados de seus poucos milicianos dispostos a brigar.
Entretanto, a polícia resolveu proibir definitivamente a continuação da manifestação e obrigou os integralistas a evacuar o Largo de São Francisco. Plínio Salgado, que não arredara pé da proteção da sede da AIB, começou a derramar as suas lamúrias a partir desse momento.
Dispersados os integralistas, a Praça da Sé ficou deserta. Tinham sido “quatro horas de ditadura do proletariado”, segundo disse mais tarde o militante Anton Machek. Os milicianos barrete vermelho da polícia especial ocuparam toda a área brandindo seus característicos cassetetes e seus fuzis-metralhadoras, sob o comando do capitão Kauffmann, um emigrado húngaro partidário do ditador fascista Horty, servindo nas fileiras da polícia getulista.
Pouco antes, eu havia voltado ao Taco de Ouro. Os feridos e os mortos haviam sido transportados para os hospitais da Santa Casa. No interior do salão de sinuca, um jovem militante comunista de quem nunca consegui saber o nome chorava pela morte de Décio Pinto de Oliveira. Entre lágrimas, disse-me que tudo estava bem com Arnaldo e Noé Gertel. Abracei-o e me retirei.
No dia seguinte, acompanhei o enterro de Décio, segurando a alça de seu sarcófago, durante a maior parte do trajeto, que fizemos a pé da residência de sua mãe, na Avenida São João, até o Cemitério da Consolação. No ato do sepultamento pronunciei um breve discurso, saudando o seu heroísmo e a sua dedicação à luta que o havia feito alinhar-se a todos os companheiros, sem restrições. Saí do cemitério antes de Hermínio Sacchetta terminar a sua saudação e não ouvi a do líder socialista Zoroastro Gouveia. Dei umas voltas pela cidade e dirigi-me à Santa Casa para visitar Mário Pedrosa e os demais feridos. Fui preso antes de chegar à porta do hospital. No interrogatório, ao responder a pergunta sobre minha participação nos acontecimentos, declarei que não sabia de nada. Eu apenas havia passado pelo Largo de São Bento e seguido adiante.
Anos depois, um solerte militante não sei de que facção do suposto movimento de “esquerda” que continua se apresentando como “o representante exclusivo do povo”, mostrava a cópia desse depoimento, obtida por favor da Polícia de São Paulo (nem sempre tão generosa) como prova de que eu não tinha nada a ver com o dia 7 de outubro de 1934.
São Paulo, 4 de outubro de 1984.
Sobre os autores
foi um importante jornalista e militante trotskista de destaque. Neto do anarquista italiano Bortolo Scarmagnan, por parte de mãe, e parte de uma família muito influente na arte, na imprensa e na política brasileira.