Extraído do livro História e desenvolvimento: a contribuição da historiografia para a teoria e prática do desenvolvimento brasileiro, de Caio Prado Júnior (Boitempo 2021).
Na monumental biografia política de Caio Prado Júnior publicada pela editora Boitempo em 2016, Luiz Bernardo Pericás, seu autor, relata um episódio que faz parte do processo em que a ditadura militar, sob a acusação de “incitação subversiva”, condenou e prendeu, aos 63 anos de idade, o grande intelectual. Em determinado momento da instrução, o oficial que entrevistava Caio lhe perguntou: “O senhor é o homem que inventou esse tal de marxismo no Brasil, não é?”.
A feição anedótica do caso não deve, é claro, apagar a violência política que corria naquele início dos anos 1970, menos ainda fazer esquecer quão pouco divertido deve ter sido, para nosso autor, àquela altura da vida, encarar mais essa prisão. Se o trago aqui, neste texto, é porque penso que, em sua inacreditável obtusidade, o inquisidor de coturno esbarrou sem querer com a verdade de seu objeto. Se evidentemente Caio não “inventou” o marxismo no Brasil, ele, no entanto, a partir do paradigma descoberto por Karl Marx, inaugurou por aqui a construção daquilo que poderíamos chamar de a economia política do Brasil, dando assim início à mais fecunda das tradições intelectuais que buscam encontrar respostas aos recorrentes descaminhos do país.
O livro História e desenvolvimento, recém republicado pela Boitempo, escrito originalmente em 1968 como tese de livre-docência para a cátedra de história da civilização brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL-USP), é um dos tijolos dessa base estrutural que Caio constrói, e cuja pedra de lançamento fora a publicação, quase quatro décadas antes, em 1930, de Evolução política do Brasil. Mas, enquanto intelectual (não vamos falar aqui diretamente do militante político), Caio é conhecido, discutido, criticado e louvado como historiador. Com que direito venho eu agora dizer que seu métier é a economia política? Será que puxo a brasa pra minha sardinha?
A bem da honestidade, devo dizer que pode haver aí um fundo de verdade. Quando fui convidada pelo professor Pericás a escrever este texto, minha primeira reação foi de recusa: não sou historiadora (quem me dera!), tampouco grande conhecedora da obra do próprio Caio. Aceitei o desafio, contudo, porque abria-se a oportunidade de voltar ao grande autor, a quem fora apresentada, nos distantes anos da graduação em economia na FEA-USP, por meio das páginas de Formação do Brasil contemporâneo e História econômica do Brasil. Isso posto, organizar o andamento dos argumentos de modo a poder comentar o livro do ponto de vista da economia política, claramente mais confortável para mim, seria uma boa estratégia – e não de todo espúria, a julgar pelos ecos, ainda em mim presentes, da longínqua leitura das citadas obras. Quando me pus, porém, a ler História e desenvolvimento (que não conhecia), fiquei ainda mais feliz por ter aquiescido ao arriscado convite: é de economia política que se trata, e de economia política do Brasil, o continente de reflexão e teoria que Caio Prado inaugurou por aqui.
Poder-se-ia argumentar que, feitas as contas, a associação entre economia e história não é nova e que, sendo nosso autor declaradamente marxista, tampouco deveria ter eu me surpreendido que o livro abordasse de maneira tão direta tal temática. Afinal, não existe materialismo histórico sem economia política nem esta sem aquele. No paradigma marxiano, a chave de tudo, a categoria básica que permite iluminar longos períodos e firmes estruturas, bem como movimentos conjunturais e rupturas, é o conceito do modo de produção, o qual abriga em sua base, como se sabe, o substrato material, econômico, da sociedade (as forças produtivas e a forma como socialmente se organizam). O argumento é válido, mas, ainda assim, insuficiente para negar o fato de serem distintos tais tipos de trabalho e reflexão intelectual, por mais que a afiliação ao marxismo nos faça renegar a cultura de especialistas – a se alastrar como praga de contágio crescente e sempre renovado.
Que a questão é ardilosa revela-se pelas afirmações, em princípio opostas, de dois de nossos mais importantes pensadores, ambos, de certa forma, herdeiros do espaço aberto por Caio Prado para pensar o país. Para Florestan Fernandes, que escreveu o prefácio desta obra, em 1988, para a terceira edição de História e desenvolvimento publicada pela editora Brasiliense e que é reproduzida no presente volume, “Caio Prado Júnior dedicou-se à investigação e à explicação da economia brasileira ao longo de vários anos”. Já para Fernando Novais, no ensaio que escreve à guisa de introdução do Formação do Brasil contemporâneo para a edição da Nova Aguilar (2000), “Caio foi desde o início historiador”. Verdade que Florestan, poucas páginas à frente, fala de nosso autor como “um grande historiador”, enquanto Novais diz, na sequência, que a obra de Caio vai se desdobrando na análise econômica (e também na reflexão filosófica e no ensaísmo político). A troca de posições, longe de contradição, claro, alarga o campo de investigação.
No ensaio já citado, Novais afirma que, em Evolução política do Brasil e História econômica do Brasil, a exposição cronológica oblitera o procedimento analítico, que, no entanto, em Formação do Brasil contemporâneo, se revela inteiramente. Ao começar o livro apresentando a discussão sobre o sentido da colonização, Caio teria tornado manifesto o movimento que sai da aparência empírica para as categorias básicas de análise, o qual permite, na sequência, que os vários setores da realidade sejam iluminados enquanto manifestações desse sentido, explicando-o e sendo por ele explicados.
Na linguagem de Marx, diríamos que Caio, em sua investigação, parte da representação caótica da colônia portuguesa na América no início do século XIX, por um processo de análise chega às suas determinações mais simples e, guarnecido por elas, faz a viagem de volta, tornando inteligível aquela realidade concreta em suas múltiplas e contraditórias determinações. O mais importante aí é que a detalhada narrativa por ele construída sobre os vários segmentos e instâncias sociais do Brasil colônia naquele momento de sua história não produz apenas explicações sobre a natureza de cada elemento, mas vai corporificando e dando efetividade àquele sentido.
Não terá sido, pois, de pouca monta a proeza de Caio. Ao transportar para a exposição o caminho de sua investigação, não só o texto ganha formidável poder argumentativo, como configura o que Novais vai chamar de “um tratamento dialético quase na forma pura”. E esse método, que se torna assim praticamente explícito, deixando de portar aquela expressão rarefeita característica das considerações metateóricas, não é nada mais nem nada menos que aquilo que o próprio Marx chamou, num texto inacabado, de o método da economia política.
Fiz todo esse preâmbulo para dizer que, se Caio é o historiador que é e tem o notável trabalho de historiador que tem, isso só é possível porque ele traz na base de sua análise a economia política. Como seu objeto era a identidade nacional do Brasil e as possibilidades de sua transformação, ele fez debutar no país o território inexplorado da economia política do Brasil. E nosso autor fez isso desde 1930, ano do surgimento de Evolução política do Brasil, a primeira peça desse caminho de investigação do qual o livro História e desenvolvimento, escrito quase quatro décadas depois, também faz parte. E continuou nessa trilha fecunda mesmo depois de se filiar ao Partido Comunista, que tinha sobre o país teses que se chocavam abertamente com as descobertas que ele ia fazendo.
É neste sentido que Caio é o mestre soberano da economia política do Brasil, por ter inaugurado o caminho e nele permanecido firmemente. Não por acaso, portanto, Formação do Brasil contemporâneo tornou-se um clássico, ainda que não de imediato. Segundo Paulo Arantes, sua análise mostrando os vínculos entre sistema colonial e capitalismo comercial, golpeando por isso a convicção dual barateada que então se alastrava na forma de uma crença na justaposição de “dois Brasis”, permaneceu no limbo por pelo menos duas décadas, até ser reativada pela escola uspiana de ciências sociais. Hoje, porém, é difícil pensar em várias das mais importantes reflexões sobre nosso país, principalmente no que concerne às relações entre a base material e as demais instâncias da produção social da vida, sem que se faça referência a seu trabalho. Menciono aqui uns poucos, mas relevantes, exemplos de autores e escolas tributários do esforço pioneiro do mestre, o que nos levará de volta a História e desenvolvimento.
Começo pelo mesmo Fernando Novais, de quem já me socorri aqui. Não é preciso mencionar a riqueza e as profícuas consequências de seus esquemas em torno do antigo sistema colonial para o entendimento do que viemos a ser. Esses esquemas agregam à expansão comercial marítima europeia, que está no cerne do processo de investigação de Caio Prado, o contexto maior do andamento da acumulação primitiva no centro do sistema, sob a régua e o compasso do capital comercial. Note-se também que o corte que produz a análise sincrônica de ambos os autores se dá no mesmo ponto: a crise do antigo sistema colonial que Novais examina, vale dizer, o curto período de três décadas que vai do fim do século XVIII ao início do XIX, é o mesmo “ponto morto” a que havia chegado o regime colonial de que nos fala Caio Prado na primeira página de Formação.
Para o historiador Milton Ohata, a última interpretação abrangente de nossa historiografia antes de O trato dos viventes, de Luiz Felipe de Alencastro, foi justamente Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial, de Fernando Novais, obra que, em sua visão, “aprimora as análises de Caio Prado em Formação do Brasil contemporâneo”. E, sobre o primeiro trabalho, ele diz que Alencastro “com uma erudição de atordoar […] periodiza, multiplica e dá corpo aos enunciados teóricos de mestre Novais”. Um silogismo básico é suficiente neste ponto para que se perceba por que Caio Prado é o mestre soberano.
É verdade que as coisas aqui não são tão simples, e o próprio Ohata afirma logo de início que, ao mesmo tempo que O trato dos viventes dá continuidade ao trabalho de Novais, ele também o modifica. De fato, a argumentação de Alencastro é poderosa no sentido de mostrar a autonomia que ganham os interesses luso-brasílicos frente àqueles da metrópole, de modo que o tráfico negreiro (que já estava no escopo do comércio português desde meados do século XIV), ao funcionar como a cola do sistema, acaba por reduzir a importância que até então se costumava atribuir ao pacto colonial. Todavia, para o que quero mostrar aqui, esse embate não se coloca como empecilho, antes o contrário: revela quão profícuo foi o pioneirismo de Caio Prado.
Também não terá sido casual uma observação de um dos autores mais celebrados da teoria da dependência sobre Caio e sua obra. Em ensaio sobre ele, Fernando Henrique Cardoso afirma que, em Formação, o grande historiador foca a luz no fundamental, isto é, a articulação entre dependência externa e exploração interna, dinâmica que constitui, como se sabe, uma das chaves do famoso livro que o ex-presidente escreveu com Faletto.
Não será demais lembrar ainda uma entrevista de Chico de Oliveira, na qual afirma ele que as pistas do dualismo já estão em Caio; mais ainda, que, em A revolução brasileira, escrito em 1966, e que Chico vê como uma espécie de coroamento de toda uma interpretação do Brasil que ele vinha construindo, a percepção-chave é que, em nosso país, o capitalismo, ao não integrar, desintegra, de modo que nosso desenvolvimento não pode seguir o padrão clássico.
Quando a economia e a história se misturam
Depois de transitarmos pela história de Novais e Alencastro e pela economia política da teoria da dependência e de Chico de Oliveira, percebendo aí, sem grande dificuldade, os vestígios da exploração inovadora de Caio, culminamos, na observação de Chico, no fato de o grande historiador concluir, no livro de 1966, que o desenvolvimento brasileiro não poderia ser canônico. Este História e desenvolvimento, escrito dois anos depois, tem nessa percepção sua tese central. Não é por isso “apenas” um livro de história, ainda que se valha dela e tenha sido escrito para concurso de cátedra na área. Daí também por que me senti menos desconfortável em arriscar esse texto assim que comecei a lê-lo.
Na apresentação à edição em livro, publicada em 1972 (como dito, o texto era originalmente tese universitária), Caio diz, logo no início, que seu assunto é a maneira de conceber a economia como disciplina cientíca e seu objetivo central é reivindicar para a história o papel que de direito lhe cabe como fonte informativa e explicativa do processo de desenvolvimento do país. Daí o subtítulo: A contribuição da historiografia para a teoria e prática do desenvolvimento brasileiro.
Cabe lembrar que, naqueles meados dos anos 1960, estavam no auge da moda as teorias etapistas, que tinham no economista americano Walt Whitman Rostow seu maior expoente. Na base do “eu sou você amanhã”, os países centrais diziam aos subdesenvolvidos que alcançar o status maior era só questão de tempo. O livro de Rostow, The Stages of Economic Growth, é de 1960, tendo aparecido, portanto, depois do surgimento das teses cepalinas, de Formação econômica do Brasil de Furtado e de tantos livros de Caio Prado que iam todos mais ou menos na direção contrária, a saber: a de entender o subdesenvolvimento como um tipo de desenvolvimento capitalista, de modo que a superação do atraso não poderia ser esperada como desígnio inescapável das forças naturais do mercado.
A briga de Caio neste livro não é outra. Para ele, o desenvolvimento e o crescimento econômicos constituem temas essencialmente históricos, que teriam sido açambarcados de modo indevido pela economia. E isso seria ainda mais verdadeiro para países de passado colonial como o Brasil. Assim, na primeira parte do livro, dividido que é em dez partes, Caio vai basicamente defender essa tese. Ele mostra de que modo a teoria ortodoxa do desenvolvimento se relaciona com a teoria dos ciclos e como passam, então, a dominar as teses inversionistas, sem uma explicação clara sobre como se dá o surgimento dos investimentos que podem gerar o suposto círculo virtuoso. Apesar de não fazer uma análise detalhada das proposições de Rostow, Caio é brilhante em desmontar o argumento etapista, evidenciando de forma cristalina que aquela “teoria” não é teoria, porque efetivamente nada explica. Aponta, assim, o caráter fortemente ideológico do prestigiado texto, que, na realidade, pouco passa de panfleto… e que vinha a calhar então para o capitalismo, num mundo ainda impactado pela revolução cubana de 1959. Não por acaso, o subtítulo de The Stages of Economic Growth é A Non-Communist Manifesto – e, além de economista, Rostow foi também secretário de Segurança de Lyndon Johnson.
Para Caio a conclusão é óbvia: sem o socorro da história, os processos de desenvolvimento não são compreensíveis nem se podem discutir seriamente as perspectivas de um país como o Brasil sem que a investigação sobre seu passado tenha papel determinante. Na segunda parte do livro, nosso autor desenha o esquema dentro do qual, a seu ver, se esboça a história brasileira. Resumidamente, ele retoma as teses centrais de Formação do Brasil contemporâneo e do sentido da colonização. O foco está nas contradições crescentemente geradas por uma nação que, em meio à rudimentar empresa comercial inaugurada pelos portugueses, vai se delineando e extravasando os estreitos quadros institucionais do sistema colonial.
Na terceira parte, Caio vai mostrar como surge das contingências do objetivo comercial a ideia de povoar o território e, na quarta parte, de que forma a propriedade açucareira dará o tom da colonização: grandes propriedades, de cultura única, com objetivo mercantil, baseadas em imensos contingentes de trabalho escravo (indígena ou negro), sob a direção imediata do proprietário ou de seu feitor. Para ele, “é nesse quadro que se disporá o conjunto da economia colonial; e sobre essa base se organizará a sociedade brasileira”.
Nas duas partes seguintes, quinta e sexta, o autor vai tratar daquilo que é “um assunto da maior importância”, a saber, a questão da reprodução da mão de obra no que há aí de mais básico: a alimentação. Demonstra que, como a agricultura era inteiramente voltada ao comércio externo, coisa própria do mundo moderno já embalado pelo capital, as atividades destinadas à produção do sustento da base da população eram sempre relegadas a um papel secundário. Lembra, nesse sentido, que um dos principais motivos da insatisfação dos senhores de engenho pernambucanos contra o domínio holandês é precisamente a atenção dada pelas então autoridades ao plantio obrigatório da mandioca. Deriva daí sua conclusão de que a estrutura organizada para a produção externa é incapaz de proporcionar um mercado interno apreciável, pois o bom mercado das classes privilegiadas (proprietários, dirigentes) é pequeno e atendido por importações, ao passo que o grande mercado da massa da população é inefetivo em termos de demanda, já que a maior parte da mão de obra é escrava.
Na sétima parte, Caio traz à cena aquele ponto morto da história, no qual “o regime colonial já realizara o que tinha para realizar”, para usar suas palavras em Formação. Mostra, então, as consequências periféricas do que vai em marcha no centro do sistema. A Revolução Industrial e a nova ordem internacional que ela produz sacodem a colônia e começam a produzir fendas no regime. Ficam para trás o isolamento do Brasil e o domínio político-administrativo português, dando lugar à construção de um Estado nacional. Para nosso autor, pressupostamente, nação significa, no plano econômico, “uma organização voltada essencialmente para o atendimento das necessidades próprias da coletividade que a compõe”, de modo que essas transformações abrem novas perspectivas para o Brasil.
Todavia, e é com tal observação que se inicia a oitava parte, os novos horizontes não decorrem de uma modificação substantiva que teriam trazido a separação da metrópole e a extinção do monopólio comercial. O ambiente externo é que se modificara de tal forma que não deixaria incólume a economia colonial. No bojo dessas profundas transformações, a função exportadora dessa economia, permanecendo, permite, por força da célere ampliação do mercado internacional para gêneros primários, que a economia brasileira logre “ultrapassar suas mesquinhas perspectivas anteriores”, conhecendo relativo progresso ao longo do século XIX e do início do XX, inclusive possibilitando a transformação do Império em República. E, para ele, é o café que vai constituir de modo preeminente “a instância máxima em que se verificam as novas dimensões adquiridas pela função exportadora”.
Não resisto a fazer aqui, antes de concluirmos a análise do livro, um pequeno parêntese, suscitado por essa observação e pela visão de Caio quanto à importância do famoso produto como instrumento potencial de transformação de nossa realidade. O faço também porque presto com isso um tributo àquela fecunda tradição intelectual que, a meu ver, ele estreou. Penso que não desarticula nem enviesa seu argumento dizer que, para ele, o café aparece como a síntese das múltiplas determinações do país em meados do século XIX, exprimindo, portanto, aquela unidade do diverso que a realidade concreta revela quando filtrada pelas categorias.
Assim, o café foi o produto mais bem-acabado de nosso passado colonial agrário, mas também seu potencial coveiro, pois se apresentou como passaporte para uma (promissora?) etapa futura, em que a herança daqueles tempos acanhados viria a ser superada. Em Sentimento da dialética, Paulo Arantes diz que “a dialética está igualmente presente nos dois lados, o mesmo princípio põe em movimento a forma estética e a forma social”. Refere-se aí, de um lado, à prática social do favor numa colônia que se tornou “moderna”, porque independente, mas carregando consigo regime imperial e escravidão, e, de outro, à volubilidade do narrador machadiano, que Roberto Schwarz descobre como sendo a forma estética desenvolvida pelo grande escritor a partir desse solo social. Arrisco aqui um palpite de que poderíamos incluir o café como a forma econômica congruente com aquela realidade e sua contraparte estética. Mais do que um simples produto, e inegavelmente por conta de seu sucesso capitalista, o café seria a tradução, no plano stricto sensu material, daquele antagonismo em que “os incompatíveis saem de mãos dadas” de que nos fala o mesmo Roberto em As ideias fora do lugar. Caminhando da superestrutura em direção à sua base, teríamos forma estética (o permanente capricho do narrador de Machado), forma social (a prática cotidiana do favor) e forma econômica (a bem-sucedida mercadoria café).
Não que as condições do desacerto permanente da vida da nação já não estivessem postas desde sua independência formal, ou seja, duas ou três décadas antes da grande expansão cafeeira; simplesmente que o café, capturado pelo arranque final do capitalismo que se desenrolava no centro, encarnou à perfeição o novo momento prenhe de possibilidades (e contradições) e seguramente o tornou mais relevante. Que o café constitui essa síntese contraditória do diverso, esta “circunstância singular”, para voltar aos termos de Caio, fica evidente pelo debate que atravessou os anos 1970 quanto à natureza das relações entre o café e a indústria, a saber, se o sucesso do primeiro teria criado as condições para o desenvolvimento industrial ou se, ao contrário, o teria obstado.
O interessante é que Caio, e voltamos assim ao livro, escrevendo no fim dos anos 1960, faz conviver, sem forçar a mão, as duas teses que iriam se enfrentar, admitindo, de um lado, que os momentos de crise do setor exportador eram favoráveis ao setor industrial porque dificultavam as importações e estimulavam inversões alternativas ao café e, de outro, que a riqueza acumulada pela produção cafeeira intensificava a vida econômica e fomentava a indústria, de que a vitalidade da capital paulista seria evidência palmar. Uma explicação para tamanha serenidade no trato da questão seria precisamente que nosso autor, dialético, intuíra com tanta felicidade esse caráter sintético carregado pelo café, que as contradições que ele encarnava (e que só vieram a ser pela primeira vez devidamente diagnosticadas por Sérgio Silva em livro de 1976) passearam naturalmente por seu texto, sem reclamar justificação.
Ainda com relação ao café, lembro que Caio discute também a brutal importância do capital estrangeiro na dinâmica economia que se articulava em seu entorno, seja financiando a produção e organizando a exportação, seja investindo em estradas de ferro. Salvo exceções, o capital local ficara adstrito à organização das lavouras, mas é sua indiscutível presença aí que vai distinguir a economia periférica brasileira. Para ele, a forte participação do empresariado local vai permitir uma associação ou uma integração de conjunto entre ambas as partes, que funcionam como um todo coerente. Caio se refere também à importância do café nos dois “fatos máximos da história brasileira do século passado”, que são a abolição e a imigração europeia. Segundo ele, esses dois elementos têm consequências econômicas de extrema importância pelo impulso que trazem à ampliação do consumo e do mercado interno, possibilitando, em princípio, uma substantiva transformação de nossa economia, com gradativo recuo de seu antigo e tradicional exclusivismo exportador.
Mas a situação é complexa, e nosso passado colonial vai pesar mais uma vez. Na nona e penúltima parte, Caio procede a uma alentada análise da evolução da economia brasileira desde o fim do século XIX, com foco no comportamento das contas externas. Passa pela crise dos anos 1930, pelos surtos de industrialização provocados pelos períodos de estrangulamento externo e pelo sucessivo aumento do endividamento. Sobre a presença crescente do capital externo no núcleo dinâmico da indústria brasileira, diz que “isso decorre do fato de o Brasil entrar para a história contemporânea […] na condição, que já era a sua, de uma área periférica e simples apêndice exterior e marginal dos centros nevrálgicos […] da economia internacional”. Pela exigência de vultosas divisas para a realização dos lucros e pelo porte sempre apoucado de nosso mercado interno, os capitais externos, apesar do estímulo inicial que constituem, tendem a permanentemente reconduzir a economia à função exportadora. Desse modo, para ele, “a participação do capitalismo internacional na economia brasileira constitui, assim, um embaraço, e embaraço crescente à transformação da mesma economia e à libertação dela do seu passado colonial”.
Na décima e última parte do livro, o autor busca reafirmar sua tese sobre o caráter histórico do tema do desenvolvimento. Começa por observar que, em nossa economia, diferentemente do que se passa nos países desenvolvidos, os mercados interno e externo não representam meros segmentos que se recobrem, se sobrepõem e se situam no mesmo plano. Aqui, trata-se de uma dualidade, pois eles vivem à parte um do outro, só se interconectando subsidiariamente, e, mais complicado, o primeiro, para onde se dirige o produto da indústria, é função do segundo (baseado no setor primário) e dele dependente. No seu modo de entender, é o avanço do primeiro, de par com o processo de industrialização, que pode representar a abertura para um novo sistema econômico, para uma economia nacionalmente integrada e voltada ao atendimento das necessidades internas da coletividade que a constitui. Mas aqui o mercado interno é dependente, não tem autonomia, vive em função do outro.
Segundo Caio, tal situação é decorrência de um passado que insiste em permanecer. A nacionalidade brasileira, em todos os seus elementos, a começar pela instalação e pela organização dos grupos humanos que para ela evoluiriam, assentou suas bases na existência de mercado externo para os gêneros que se poderiam produzir em seu território. Apesar de toda a complexidade que o cenário socioeconômico ganhou ao longo dos séculos, esse traço ancestral ainda estava presente e visível na citada dualidade e no caráter subordinado das reais necessidades do país. Era, portanto, a persistência do passado que punha obstáculos ao avanço do Brasil, de modo que nosso caso evidenciava que a problemática do desenvolvimento não poderia ser adequadamente tratada ignorando-se a história.
O atoleiro da dependência internacional
O que dizer da análise de Caio, pensando no que se tornou o Brasil meio século depois? Se é verdade que há certo aspecto datado no livro, visto que era seu objeto o desenvolvimento brasileiro de então (fim dos anos 1960), é impossível não reconhecer o caráter premonitório de algumas de suas observações. Por exemplo, logo na apresentação, pondera ele que o recorrente apelo do país aos investimentos externos na indústria “implica transferir para mãos estranhas e subordinar a seus interesses as melhores oportunidades de negócios e atividades econômicas”, o que traduz com grande fidelidade o que se passa hoje na estrutura da produção brasileira.
Mais relevante, porém, vai ele apontar o círculo vicioso que tal movimento reiterado produz e que só faz “avançar […] o processo que torna a economia brasileira nada mais que simples apêndice da finança internacional”. Quem conhece minimamente a evolução da economia brasileira das últimas décadas sabe que nos afundamos cada vez mais nesse atoleiro. Fomos abalroados pela crise da dívida externa nos anos 1980, passamos então por um complicado processo de alta inflação e moratória e decidimos, afinal, no início dos anos 1990, transformar nossa economia numa plataforma internacional de valorização financeira, abandonando qualquer veleidade em torno de uma indústria nacional e, pior, de um projeto para o país. É verdade que a indústria doméstica foi muito além do que previu Caio, e chegamos mesmo a transformar os produtos manufaturados em parcela substantiva de nossas exportações, coisa que ele achava muito pouco provável. Todavia, vista a situação do ponto em que hoje nos encontramos, esse breve momento parece um soluço na “linha central da marcha de nossa história”, para usar suas próprias palavras.
Contudo, o que talvez seja mais interessante é aquilo que, no meu modesto entender, está no cerne da tese de Caio acerca dos entraves ao desenvolvimento brasileiro e que se relaciona também com o “assunto da maior importância” que ele discute na quinta e na sexta partes. Repetidas vezes no livro, Caio se refere à estrutura de classes que a nação brasileira teria herdado daquele passado colonial e que persistiu história afora, a começar pela permanência da nefasta escravidão, mesmo ganhando independência a colônia. Resumidamente, de um lado, uma minoria de proprietários, dirigentes e usufrutuários da produção mercantil, que constituía o nervo econômico do sistema, e, de outro, uma grande massa de trabalhadores, a fornecer o esforço necessário à produção. Ora, a massa trabalhadora, em sua enorme maioria, escrava, era simples instrumento de produção, sendo relegada sempre a uma posição degradada, com níveis de vida muito baixos e consumo insignificante.
De acordo com nosso autor, ainda que a estrutura social tenha se tornado mais complexa, a sociedade brasileira conservava esses traços primevos, sobretudo a habitual inferiorização socioeconômica de suas classes trabalhadoras e populares. O que se deduz, portanto, é que sem a transformação dessa situação o caráter restrito do mercado interno não desapareceria, não viria o desenvolvimento e a economia brasileira permaneceria mero apêndice marginal e periférico do centro desenvolvido.
É difícil olhar para o país hoje e não dar razão a ele, até porque, por força das vicissitudes do processo mundial de acumulação, foi se recompondo a base material original que redundou naquela estrutura, já que a “função exportadora” da economia brasileira (leia-se produtora de alimentos e matérias-primas), que teria então, de acordo com Caio, entrado em declínio, foi devidamente resgatada, dessa vez com traje inteiramente capitalista, pela soja e pelos produtos animais e minerais. Pensando bem, a situação é hoje talvez ainda pior, pois tais setores, já guarnecidos de novas camadas de progresso técnico, incorporam muito menos mão de obra, de modo que boa parte da massa (potencialmente) trabalhadora, que nunca trouxe grandes preocupações aos de cima quanto às condições de sua existência, pode agora ser simplesmente ignorada. Se, em sua versão original, a estrutura da sociedade brasileira carecia de coesão, agora esse atributo, crucial à existência da nação como nação, parece ainda mais distante.
Mas o novo capítulo do eterno retorno do mesmo não é só obra das idiossincrasias nacionais. Resulta também de crises irresolvidas no centro do processo de acumulação. O caráter excêntrico de uma produção escravista destinada ao mercado explica-se, como ensinou Fernando Novais, pelo processo de acumulação primitiva em andamento na Europa, capitaneado pelo capital comercial. Na etapa primitiva, preveniu Marx, não é só a polida expropriação do valor excedente que vale. Tudo vale: roubo, extorsão, aprisionamento, comércio de peles negras. Ocorre que, de fato, como lembrou David Harvey, inspirado em Rosa Luxemburgo, esses mecanismos incivilizados de valorização nunca saíram completamente de cena e, em crises de sobre-acumulação como a enfrentada pelo capitalismo já há algumas décadas, tendem a se multiplicar. As prescrições neoliberais não são nada mais que expedientes desse gênero, na sôfrega busca de novos ativos nos quais desafogar o capital acumulado em excesso. Para o Brasil, onde o ciclo do desenvolvimento burguês ficou a meio caminho, tudo se passa como se nunca tivéssemos conseguido sair do círculo de ferro da acumulação primitiva, que agora dá o tom também daquilo que se passa no coração do sistema.
Em 2005, escrevi com o professor Christy Pato um texto destinado a discutir a evolução dos investimentos no Brasil. Ali, claramente inspirados em Caio Prado, arriscamos falar num “sentido da industrialização”. Argumentamos que a vinda do capital produtivo para a periferia dera uma sobrevida ao processo de acumulação que ia perdendo o fôlego no centro, enquanto se preparavam as condições para a dominância financeira que estava por vir. Hoje, uma grande crise internacional depois, o sistema combina corporações mundiais gigantes, rentismo e montantes espetaculares de capital fictício, enquanto, num misto de acumulação primitiva e reprodução ampliada, algumas periferias se industrializam, ao passo que outras desenvolvem o movimento contrário. As idiossincrasias nacionais explicam por que ficamos no segundo grupo. Entre elas, com total proeminência, a indiferença com que nossas elites puderam sempre, sobranceiras, levar adiante o capitalismo no Brasil, sem terem que carregar consigo, nesse movimento, a massa da população.
Numa entrevista no ano 2000, Roberto Schwarz lembra da inorganicidade nacional a que se referia Caio e observa que uma das chaves dela teria sido indicada por Alencastro, em O trato dos viventes: a combinação entre a América portuguesa e a África portuguesa gerara uma situação em que a classe dominante brasileira não se responsabilizava pela reprodução social da mão de obra necessária à atividade produtiva do país, conforto que se prolongou até as primeiras décadas do século XX, com a imigração europeia. Em sequência, assinala que as feições bárbaras desse mecanismo fantasticamente antissocial, antes de terem se extingui- do, já estariam ressurgindo com força. Assim, tudo se passa, nas palavras dele, “como se a força civilizatória da nação não tivesse sido senão um interregno na história do capital”. Duas décadas e mais uma ilusão depois, a sentença parece mais verdadeira e aterradora que nunca. Como o demonstra este História e desenvolvimento, Caio Prado foi certamente o primeiro pensador que, embasando a economia política na história, ou a história na economia política, logrou desvendar a força dos impulsos que a sustentam.
Sobre os autores
é uma economista brasileira e professora titular da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo.