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Foto: Jim Sheaffer / Flickr

Em defesa dos gamers

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Tradução
Everton Lourenço

Não culpem os gamers pelos pecados do capitalismo.

Houve um tempo em que eu poderia dizer que era um “gamer” – ou seja, alguém que joga videogames, que reflete sobre eles e que os vê como uma forma cultural rica e cheia de potencial, tanto como arte quanto como esporte.

Hoje, no entanto, mesmo as pessoas que geralmente ignoram os jogos de videogame já foram apresentadas à figura do “gamer”, e ele é uma coisa totalmente diferente disso. O gamer se sente ameaçado por mulheres que compartilham seus gostos e as chama de “garotas geeks falsas” ou “falsas nerds”. O gamer reage às críticas de Anita Sarkeesian aos clichês sexistas nos videogames com um bombardeio de ameaças violentas contra ela e sua família. O gamer ataca a criadora de jogos feminista Zoe Quinn com abusos misóginos e alegações infundadas de corrupção em reação a uma postagem sórdida em um blog feita por um ex-namorado cheio de rancor.

Não é nenhuma novidade que os videogames costumam ser hostis às mulheres, tanto enquanto indústria quanto como cultura de fãs. Também não é novidade que há excelentes críticas feministas apontando isso na imprensa de jogos, como Leigh Alexander e Samantha Allen. No entanto, os debates sobre misoginia e games têm fervilhado com nova intensidade nas discussões entre consumidores e criadores de jogos, e também têm ultrapassado esses círculos. (O portal New Inquiry reuniu uma coleção de links sobre o tema.)

Evidentemente, nem todo mundo com um profundo interesse por jogos é um jovem amargo e reacionário que reage com uma violenta misoginia ao menor sinal de justiça social. Mas essa facção de “gamers” tem demonstrado sua capacidade descomunal de policiar os limites do debate e expulsar consumidores, criadores e críticos que os desafiem, com o consentimento de uma maioria silenciosa. Politicamente, o que representa esse grupo demográfico específico de extrema-direita?

A cultura dos videogames há muito tempo tem se mantido bastante provinciana – assim como, em maior ou menor grau, a “cultura geek” mais abrangente na qual ela está inserida, que também abarca fenômenos como Dungeons & Dragons, romances e filmes de ficção científica e fantasia, e histórias em quadrinhos. Todas essas formas possuem uma longa história de experimentação politicamente subversiva, socialista e feminista, mas, em suas formas comerciais que recebem mais financiamento e que são mais amplamente consumidas, elas atendem especialmente a certos tipos de garotos e homens socialmente desajeitados, lhes proporcionando alternativas aos padrões dominantes de masculinidade.

Ao mesmo tempo, porém, eles também cultivam uma misoginia alternativa, baseada no ressentimento de outros homens e no desejo de usurpar seu domínio patriarcal, e não de derrubar o patriarcado por completo. Consequentemente, a cultura geek é um terreno fértil para “Caras Bonzinhos” que se veem como párias perseguidos, mas que são incapazes de superar seu desejo de controlar as mulheres.

É impossível contestar que, em termos puramente econômicos, os jogos eletrônicos se tornaram um fenômeno de cultura de massa completamente convencional: os gastos dos consumidores em jogos agora rivalizam ou excedem os gastos com música e filmes. Ainda assim, esses gamers se agarram a uma identidade de oprimidos e marginalizados, até mesmo enquanto defendem as práticas existentes de sexismo, racismo e exploração de classe no interior da indústria de jogos.

Parte desse fenômeno tem a ver com a defasagem de tempo entre a aceitação econômica e a aceitação cultural. Os jogos podem ser uma mídia dominante enquanto indústria, mas ainda não alcançaram paridade cultural com outras mídias e outras formas de arte. Por conseguinte, ainda temos grandes críticos de cinema escrevendo ladainhas toscas e apaixonadas sobre por que os videogames não poderiam ser considerados arte, e o New York Times expressando admiração com a noção de que esportes competitivos possam ser mediados por computadores.

Isso não é algo inusitado para qualquer mídia jovem; o cinema e a televisão enfrentaram defasagens semelhantes. Eventualmente, pessoas que cresceram com os videogames estarão em posições de autoridade cultural, e a ideia dos jogos eletrônicos como uma mídia inferior ou efêmera desaparecerá.

A assimilação dos jogos eletrônicos na cultura mais ampla, entretanto, representa um problema para um segmento reacionário de gamers. Significa o engajamento com uma sociedade que, embora ainda seja capitalista, patriarcal e impregnada de racismo, também tem sido desafiada durante décadas por aqueles que ela tradicionalmente marginalizou. O envolvimento mais amplo inevitavelmente transforma os parâmetros da cultura geek, à medida que novas vozes e novas ideias vão sendo incorporadas.

Alguns gamers gostariam de ter as duas coisas: que todo mundo leve a sério a sua mídia, mas que ninguém desafie suas premissas políticas ou questione a forma como os jogos tratam as pessoas que não se parecem ou pensam como eles. Eles odeiam e temem um mundo onde os jogos sejam realmente feitos por e para todos, onde as mulheres constituem a maioria do público dos jogos eletrônicos e onde uma mulher trans domine um dos maiores eSports do mundo.

É importante chamar essas pessoas daquilo que elas são: não apenas idiotas anti-sociais e não apenas misóginos, mas, como diz Liz Ryerson, em geral a ala de direita (ou de extrema-direita) das pessoas envolvidas com os videogames. Não surpreende, portanto, que eles se assemelhem aos conservadores que lamentam com ressentimento o viés liberal progressista de Hollywood ou a condescendência de professores universitários elitistas. Não se trata de um problema com a cultura gamer, mas um problema com toda a nossa cultura e, especificamente, com as atitudes e comportamento de uma seção de direita, predominantemente branca e masculina dessa cultura.

Os gamers de direita projetam um senso de superioridade arrogante e se sentem no direito de ter acesso exclusivo a certos bens materiais e imateriais devido à sua condição, ao mesmo tempo em que constroem uma identidade baseada na marginalidade e vitimização. Nisso, entretanto, eles não são realmente tão diferentes de muitos movimentos revanchistas nas sociedades capitalistas. Eles se parecem bastante com a direita do Tea Party, que lamenta o desaparecimento da “América” que reconhece – isto é, os EUA onde os homens brancos heterossexuais são sistematicamente favorecidos.

Esse é um elemento básico da mente reacionária: uma oposição fundamental à igualdade como tal. O mesmo ocorre com esses gamers para os quais, como coloca Tim Colwill, “a pior coisa que pode acontecer aqui é a igualdade”. Esse grupo de gamers raivosos “já não reconhece mais o seu país”, por assim dizer, com todas essas mulheres, LGBTs e esquerdistas circulando por aí.

É por isso que é errado sugerir, como faz Ian Williams, que a cultura gamer estaria “manchada, da raiz às pontas dos galhos, por abraçar o consumismo como um modo de vida.” A ideia de que comunidades organizadas em torno do consumo cultural compartilhado seriam inerentemente reacionárias é tão ampla que chega a ser vazia e poderia se aplicar igualmente a cinéfilos, fãs de esportes ou mesmo aficionados por teoria marxista.

É possível que qualquer visão política, de esquerda ou de direita, se decante em meras escolhas de consumo. Só que esse não é o problema atualmente sendo exibido entre os gamers. Na verdade, o perigo surge de sua escolha de não apenas consumir passivamente, mas de realizar ataques em nome daquilo que acreditam que a verdadeira cultura gamer deveria ser.

Os ataques a pessoas como Anita Sarkeesian devem ser compreendidos como atos políticos coletivos, e os reacionários que os praticam devem ser entendidos como representantes ideológicos de uma tendência política específica entre aqueles que criam e jogam videogames, ao invés de se acenar contra eles com uma retórica moralizante como se fossem um bando de consumidores ingênuos.

Duas coisas ameaçam esses gamers: a noção de que os jogos eletrônicos não existam exclusivamente para reafirmar seus preconceitos misóginos, e o fato de que esses preconceitos possam ser contestados. Não apenas a cultura dos jogos está se ampliando, mas o segmento comercial de grande orçamento que mais atende às suas fantasias retrógradas está se contraindo em relação aos jogos independentes, para celular e na web.

Como aponta Leigh Alexander em sua sofisticada desconstrução da identidade gamer: “é difícil para eles ouvirem que não são mais donos de nada, que eles não são o grupo demográfico de consumidores mais especiais do mundo, que eles têm que compartilhar.” Troque as palavras “o grupo demográfico de consumidores” por “beneficiários de serviços públicos do Estado de bem-estar social” e você poderia estar falando sobre seguidores do Tea Party defendendo que os serviços públicos que utilizam sejam reservados a eles, ao mesmo tempo em que acusam pessoas (principalmente mulheres) mais pobres de serem “sanguessugas” dos programas do governo, que estariam fazendo filhos para receber auxílios e não precisar trabalhar.

Portanto, essa não é uma questão específica aos gamers; e, dentro dos limites do mundo dos jogos, também não se trata apenas de uma história sobre uma “cultura tóxica” entre os fãs de jogos, mas sim sobre uma indústria que é estrutural e sistematicamente reacionária e que cultiva os mesmos valores entre um segmento de seus consumidores. Não são apenas as turbas do 4chan aterrorizando roteiristas e designers de jogos, é todo um negócio de jogos que expulsa os trabalhadores que não se conformam com suas premissas políticas e estereótipos demográficos.

Famosos designers de jogos e proprietários de estúdios de desenvolvimento não endossam abertamente as ameaças e o terror realizado por trolls anônimos, mas esses trolls são as tropas de choque que ajudam a manter a elite existente no poder. Os respeitáveis homens de terno seguem contratando no mesmo clube do bolinha, enquanto inventam desculpas para explicar por que as mulheres simplesmente não se enquadrariam como programadoras, designers de jogos ou jornalistas na área. Mas as táticas fascistas de confronto pela brigada de trolls funcionam para manter o status quo da indústria.

Não se trata apenas de uma ferramenta útil para calar vozes dissidentes; a existência desses movimentos de nerds raivosos entre os fãs e consumidores também realiza aquilo que os movimentos fascistas sempre fazem: dividir a classe trabalhadora, fazendo com que alguns deles se identifiquem com o chefe. Nesse caso, por sua vez, essa identificação serve para escorar a indústria hiper-exploradora que Ian Williams descreveu anteriormente.

A existência de um esquadrão de vigilantes hostis e vociferantes calando os discursos divergentes torna mais fácil para os diretores de estúdio contratar nada além dos mesmos homens brancos e, em seguida, quase matá-los de tanto trabalho; para os administradores de fóruns reivindicar a liberdade de expressão e dar de ombros para o ódio vomitado em suas páginas; e para a indústria alegar que estão apenas satisfazendo “o público” quando reproduzem os mesmos estereótipos estreitos e preconceituosos, ano após ano. Enquanto isso, os “bons” geeks acabam sendo distraídos do evento principal enquanto brigam com os trolls, como skinheads SHARP e skinheads nazistas se digladiando em um show de porão.

O que não quer dizer que as ameaças de morte sejam uma bela vista para o pessoal de terno no topo da hierarquia da indústria de jogos. Os trolls podem às vezes sair fora de controle, assim como o establishment do partido republicano às vezes perde o controle do Tea Party, ou como os capitalistas industriais às vezes perdem o controle dos camisas-marrons nazistas. Mas isso não significa que eles não façam parte de um mesmo projeto político dialeticamente inter-relacionado. Os cossacos trabalham para o czar. As turbas em busca de confronto estão lá para policiar os limites do discurso, para expulsar à força qualquer um que desafie a hierarquia existente – mulheres, pessoas não brancas, LGBTs, e até mesmo aquele excêntrico homem branco considerado simpático demais às mulheres e aos comunistas.

Não é um problema sobre o ato de jogar videogames; é um problema do capitalismo. Em vez de vê-los simplesmente como babacas imorais ou consumistas iludidos, devemos levar a sério a ala avançada de trolls cheios de ódio entre os gamers como representantes das tropas de choque reacionárias que teremos de derrotar para construir uma sociedade mais igualitária – seja na indústria de jogos, ou em qualquer outro lugar.

Sobre os autores

está no conselho editorial de Jacobin e é autor do livro "Quatro futuro: a vida após o capitalismo", publicado pela Autonomia Literária em 2020.

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Published in Análise, Cultura, Sociologia and Tecnologia

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