Extraído do livro O que Lenin aprendeu lendo Marx e Engels, de Leon Denis (Autonomia Literária, 2020).
Na conclusão da biografia de Vladimir Lenin, Tamás Krausz diz que muitos estudiosos eliminaram deliberadamente do legado de Lenin os seus princípios filosóficos e a metodologia que marcaram sua trajetória. Ou seja, a sua interpretação teórica da dialética marxiana e sua aplicação dela. “Lenin compreendeu, ainda na base de suas raízes hegelianas, que o materialismo dialético (e sua epistemologia) incorpora o automovimento consciente para transformar a sociedade”.
Uma leitura histórica e honesta do marxismo de Lenin inicia-se reconhecendo que seu legado está fundado na aplicação prática das principais teses de Marx e Engels e na forma como ele deu substância teórica diante das circunstâncias, e nas experiências, como: o desenvolvimento do capitalismo numa Rússia predominantemente rural, a revolução de 1905, a Primeira Guerra Mundial, a evolução do imperialismo, a revolução de 1917, o comunismo de guerra e a Nova Política Econômica. “Em razão disso”, diz Krausz, “o legado político e teórico de Lenin, como variante histórica do marxismo, é único e irrepetível”.
“O que Lenin fez com maestria foi trazer à tona e aprofundar elementos da tradição marxiana que a social-democracia em toda a Europa estava engajada em sepultar.”
O marxismo de Lenin, ou seja, sua filosofia da práxis, tem como base os trabalhos de Marx e Engels, isso é mais do que claro. No entanto, é importante lembrar que outras fontes também contribuíram para sua formação teórica e prática: o iluminismo francês, a Comuna de Paris, os naródniki, Plekhánov, Kautsky (antes de ser uma renegado), P.P. Máslov, E. Bernstein, o jacobinismo revolucionário, Rosa Luxemburgo, e muitas outras. Sabe-se que “todas as fontes do marxismo de Lenin foram combinadas na articulação da teoria com a prática”.
Ao dissertar sobre a importância de Lenin, Lukács defende que é perfeitamente justificável falar de “leninismo” como uma nova fase do desenvolvimento do materialismo dialético:
Lenin deve ser estudado pelos comunistas como Marx o foi por Lenin. Devemos estudar para aprender a usar o método dialético, para aprender a encontrar o particular no geral, e o geral no particular a partir da análise concreta da situação concreta, a encontrar o que no momento novo de uma situação a liga ao processo de desenvolvimento anterior, e encontrar o que de novo nasce sem cessar a partir das leis da evolução histórica, a encontrar a parte no todo e o todo na parte, o momento da ação efetiva na evolução necessária e na própria ação a sua conexão com a necessidade do processo histórico. O leninismo significa um nível jamais atingido do pensamento concreto até ao presente, antiesquemático, antimecanicista e puramente dirigido para a ação transformadora – a práxis.
Marxismo na prática
Krausz argumenta que apesar de muitos estudiosos contemporâneos falarem em “leninismo” ao sistematizarem a obra de Lenin, ele não teria criado um sistema teórico independente, logo, um “ismo” dentro do marxismo. E em nota lembra: “De acordo com o testemunho de Krúpskaia, quando pouco antes da morte de Lenin, Trótski comparou-o a Marx, Lenin sentiu-se lisonjeado, mas considerou o paralelo um exagero, pois jamais elaborara uma metodologia científica própria, nem uma teoria diferente do marxismo”.
O que Lenin fez com maestria foi trazer à tona e aprofundar elementos da tradição marxiana que a social-democracia em toda a Europa estava engajada em sepultar. No movimentado ano de 1914, com a Primeira Guerra Mundial ao fundo, os estudos de Lenin o conduzem a expor a formatação hierárquica do sistema capitalista, a desigualdade inerente ao seu desenvolvimento, e nessa Era do imperialismo, volta-se para a questão colonial.
Para Eric Hobsbawm é demasiadamente surpreendente e pouco notada:
A grande contiguidade entre os apelos da insatisfação nacional e social que Lenin, com seu habitual olho penetrante para realidades políticas, transformou em um dos fundamentos da política comunista no mundo colonial. Os bem conhecidos debates marxistas internacionais sobre a “questão nacional” não são meramente sobre a interpretação de slogans nacionalistas a trabalhadores que deveriam ouvir somente o chamado do internacionalismo e da classe. Eram também, e talvez de forma mais imediata, sobre como tratar partidos de classe operária que simultaneamente apoiavam demandas nacionalistas e socialistas.
Lenin expôs as diversas formas de lutas nacionais por independência, e dentro delas, as diferentes formações sociais e de classe, e a relação histórica entre a luta de classes com as lutas nacionais por independência. Seu biógrafo comenta que:
Sua ruptura com uma visão de mundo eurocêntrica no verão de 1914 implicou uma ruptura teórica, política e organizacional total com a social-democracia europeia, que se encontrava cada vez mais sob influência do revisionismo de Bernstein. Isso se deu quando os núcleos oficiais da social-democracia na Europa decidiram apoiar os governos imperialistas de seus respectivos países. No curso das análises, Lenin delineou não apenas as formas históricas do nacionalismo, mas também o nacionalismo em suas manipulações, sua função quase religiosa no interior das políticas e da propaganda da classe dominante. O colapso da social-democracia em 1914 fez com que Lenin se desse conta de que ela representava os interesses do escalão superior, do estrato “inclinado à burguesia” do proletariado: que a social-democracia revisionista era a expressão política daqueles que tinham abandonado a concepção e a práxis da revolução universal e da luta de classes conforme teorizada por Marx.
A experiência da Primeira Guerra Mundial apontou em direção a uma nova época, que caminhava para condições favoráveis para a revolução. Concomitantemente, ocorria uma guinada nas “táticas revolucionárias de Lenin inspiradas por seu estudo de Hegel, que era uma concepção integrada de teoria, política e organização”.
“É Lenin que vai resgatar a visão de Marx do socialismo como o resultado de um processo histórico longo, como a primeira fase tão esperada da sociedade comunista.”
A guinada se dá de um materialismo contemplativo para uma filosofia prática dialética, ou seja, o foco é direcionado à totalidade. Acreditava-se que com a Primeira Guerra Mundial havia chegado o momento em que no mundo todo, os trabalhadores poderiam trilhar seu próprio caminho. Em lado oposto à social-democracia ocidental, que trazia desde o fim do século XIX soluções parciais, apenas reformas; Lenin tinha o olhar no todo. Krausz comenta que:
Ele restaurou a consciência teórica e metodológica marxista hegeliana baseada na “totalidade”, a seu lugar legítimo, incluindo, antes de tudo, o salto qualitativo da mudança revolucionária, a superação dialética da antiga civilização. De acordo com esse objetivo básico, o marxismo de Lenin chegou à teoria e à pratica da transformação social no momento histórico em que, de fato, provou-se possível romper a superfície da ordem capitalista mundial, ao menos por um tempo.
A importância da união entre a teoria e a prática na trajetória de Lenin dentro dessa perspectiva é resumida por Lukács na frase: “A supremacia da prática não é, portanto realizável senão na base de uma teoria que vise a totalidade”, e conclui adiante:
O essencial é estar a postos. Um dos traços mais característicos e fecundos de Lenin é o de jamais ter cessado de se instruir teoricamente na escola da realidade e de ter estado ao mesmo tempo sempre pronto a agir. É isso que marca o caráter notável e aparentemente paradoxal da sua atitude teórica: ele considerava que a sua aprendizagem junto da realidade jamais se encontrava terminada, e, no entanto, o que ele tinha adquirido deste modo está ordenado de tal maneira que ele tinha a possibilidade de agir a qualquer momento.
Pode-se dizer que a filosofia da práxis de Lenin busca unir os setores econômico, cultural, científico e outros que se apoiam mutuamente. O entrave a materialização dessa perspectiva está no fato de as condições materiais, históricas objetivas, serem marcadas pelo antagonismo entre a forte ideologia política burguesa (que faz tudo para se manter no poder, legitimando o status quo) e a teoria socioeconômica comunista. É Lenin que vai resgatar a visão de Marx do socialismo como o resultado de um processo histórico longo, como a primeira fase tão esperada da sociedade comunista.
Sintetizando Marx e Engels
Ao fazer a apresentação da tradução da obra Que fazer?, o sociólogo marxista Florestan Fernandes destaca algumas frases ditas por Lenin que se tornaram máximas no movimento socialista mundial: “Sem teoria revolucionária, não existe movimento revolucionário”, “toda a vida política é uma cadeia sem fim composta de um número infinito de elos”, “é preciso sonhar”. Lenin colocou todo o seu potencial intelectual e sua perspicácia prática na aplicação de suas leituras de Marx e Engels a serviço da revolução proletária contra a brutalidade do capitalismo.
Longe de afirmar aqui que Lenin foi um santo, um indivíduo perfeito, sem falhas. Não cabe aqui divinização desse líder revolucionário (o mesmo, provavelmente, reprovaria tal atitude), mas reconhecer o seu legado como estudioso e agente social. Do seu legado devemos herdar a importância dos estudos filosóficos e científicos para a mudança prática da realidade vivida. Teoria e prática andando lado a lado, uma revisando a outra, uma sustentando a outra, sem se deixar levar pelo canto das sereias do revisionismo, do reformismo e do espontaneismo.
Enfim, Lenin foi a pessoa que munido do melhor instrumental teórico, do melhor método – os materialismos histórico e dialético – tentou mudar a degradante realidade concreta de milhões de pessoas. Por isso, nada mais certeira que sua famosa definição de marxismo como “análise concreta de situações concretas”:
A obra e vida de Lenin confirmam que o marxismo, tanto como teoria quanto como prática política, lida diretamente com o projeto de ir além do capitalismo. Para ele, o marxismo não era uma disciplina abstrata que valesse por si própria. Certamente, não era um filosofar abstrato sobre o significado da vida. A ciência e a filosofia eram apenas ferramentas para atingir a emancipação humana. O ponto de partida do marxismo de Lenin é, portanto, o mapeamento correto de seu próprio contexto histórico. No centro de seu pensamento e de toda sua atividade encontra-se a exploração das oportunidades para a revolução proletária na Rússia e no mundo e seu potencial inerente de realização prática.
Sobre os autores
é licenciado em Filosofia e pós-graduado em Psicopedagogia Clínica e Institucional e autor do livro O que Lenin aprendeu lendo Marx e Engels.