Trecho extraído do livro Paulo Freire: a prática da liberdade, para além da alfabetização, de Venício A. de Lima (Autêntica, 2021).
Os pensamentos humanistas têm um verdadeiro horror ao vício da departamentalização dos saberes e a uma certa cultura analítica que compreende a totalidade a partir da justaposição funcional dos conhecimentos especializados sobre as diferentes esferas da vida social. Nas tradições da filosofia política clássica, renascentista e moderna, o princípio da totalidade elabora as relações de mútua compenetração com as particularidades, o singular e o universal.
Não há maior equívoco do que classificar o pensamento de Paulo Freire na pasta da educação, promovendo uma ruptura ou colocando como mero fundo de inspiração a sua relação com a cultura do humanismo. Mas é assim, como “pensador da educação” que ele tem sido quase invariavelmente identificado.
O mérito exponencial, subversivo e possibilitador de uma nova compreensão do pensamento de Paulo Freire no livro de Venício Lima, Paulo Freire: a prática da liberdade, para além da alfabetização, sintético e súmula de cinco décadas de pesquisa e reflexão, é o de identificar Paulo Freire como um pensador da política que se expressa na educação e na cultura. É um passo coerente mais além de toda uma trajetória de pesquisa: já a sua tese de doutorado, editada em 1981, trilhava o caminho da interdisciplinaridade e procurava pensar a obra de Paulo Freire a partir do campo da comunicação pública.
“Encontramos já em Émile, de Rousseau, a crítica à educação que Freire chama de “bancária” (depósito de conhecimento).”
Esta departamentalização da recepção das obras de autores que tinham exatamente a busca de uma visão histórica da totalidade o seu alfa e ômega não é, decerto, um limite apenas para pensar Paulo Freire: Celso Furtado, “economista”; Antonio Candido, “crítico literário”; Florestan Fernandes, “sociólogo”; Caio Prado Jr., “historiador”; Milton Santos, “geógrafo”. Um caso clássico: Mary Woolstonecraft, a grande pensadora fundadora do feminismo moderno, autora do clássico A Vindication of the rights of Woman, de 1792, foi à sua época recebida como uma pensadora da educação.
O que se ganha ao pensar a obra de Paulo Freire como uma criação no interior de uma tradição política moderna, a do humanismo cívico, é nada menos do que a possibilidade de bem compreendê-lo. Esta tradição, de Jean-Jacques Rousseau a Thomas Jefferson, de Mary Woolstonecraft a Antonio Gramsci, em suas várias matrizes modernas, sempre pensou a educação no plano da política ativa na cidade, como fundamento da cidadania, como elixir da liberdade, que se quer pública, comunicativa, intersubjetiva, expressão de sujeitos autônomos que mudam o mundo.
Talvez a singular e de sentido universal contribuição de Paulo Freire a esta tradição de pensar a educação a partir da política da liberdade seja a de, inserido em um contexto periférico de opressão, radicalizá-la como uma práxis de superação de um sujeito historicamente oprimido. Encontramos já em Émile, de Rousseau, a crítica à educação que Freire chama de “bancária” (depósito de conhecimento), a formação como consciência da autonomia do sujeito que se preparara para ser cidadão. Mas Émile não é propriamente um sujeito em estado de opressão: em Paulo Freire, mais do que um exercício da formação em liberdade, a educação é umas práxis de libertação. O conflito entre opressor e oprimido está no centro do pensamento de Paulo Freire, no centro mesmo da personalidade do oprimido, e se conecta às estruturas históricas da dominação. Se não se pode ler Émile sem O Contrato Social, por uma razão mais forte ainda não se pode ler Pedagogia do Oprimido sem a política da libertação de Paulo Freire.
Por isto, esta obra é visceralmente uma práxis da liberdade. A revolução paulofreireana, a radicalidade de seu pensamento que o tornou hoje objeto central de execração da cultura mais regressiva da história brasileira, desde aquela que legitimava o genocídio de índios ou a escravidão dos negros, é o de ser um verdadeiro epicentro da cultura da emancipação dos brasileiros e latino-americanos.
Neste exato sentido, o livro de Venício Lima é, ao mesmo tempo, um documento de reparação e uma moção de esperança. Porque o que pode refundar a democracia brasileira é este sentimento político radical de liberdade que sopra na obra de Paulo Freire.
Uma polêmica clássica e contemporânea
Devemos às obras de grandes historiadores eruditos do pensamento político clássico, renascentista e moderno a releitura da gênese da Modernidade, antes referida de modo antipluralista, à beira do sectário, apenas ao liberalismo.
A documentação de um momento maquiaveliano nas revoluções dos séculos XVII e XVIII, a longa viagem do humanismo cívico na fertilização de culturas da emancipação contra o domínio colonial, o patriarcado, a escravidão e o racismo, levaram à incontornável identificação de um conceito de liberdade anterior ao próprio nascimento do liberalismo. Este conceito de liberdade, irmanado à ideia de igualdade, formulado a partir das noções de autonomia do cidadão e da soberania popular, está na origem das declarações de sentido universalizante dos direitos humanos na Modernidade.
Esta verdadeira revolução na consciência do passado que nos formou é, por isso mesmo, uma chave imprescindível para a compreensão dos impasses democráticos da contemporaneidade. A Modernidade deixa de ser vista apenas como um desenrolar historicamente progressivo da história do liberalismo e passa ser, ela própria, um lugar desde sempre do conflito entre os que querem dominar e os que não querem ser dominados. A cultura da liberdade nasce deste conflito no centro da política.
“A conjuntura de 1968 ligou a luta pela liberdade nos países capitalistas centrais, contra os regimes burocráticos do Leste Europeu e as lutas anticoloniais.”
Esta consciência nova do passado atualiza a presença da obra de Paulo Freire na cultura política brasileira. Não por acaso ele é o único autor brasileiro clássico, no sentido que formou uma irradiação e uma herança de ideias em movimento, que traz a liberdade e a superação de seu outro, a opressão, no título de suas obras nucleares. Em quatro sentidos, a sua concepção de liberdade é afim a este conceito de liberdade que formou as revoluções democráticas da Modernidade.
Em primeiro lugar, a sua identificação com o sentido de autonomia, que a vincula à noção de igualdade estrutural: não pode ser livre aquele que está submetido a uma situação de escravidão, servidão ou dependência estrutural de um outro.
Em segundo lugar, o sentido intersubjetivo, público e dialogal da construção da liberdade. Ela não preexiste à comunidade política, não pode ser naturalizada, depende da vida pública.
Em terceiro lugar, ela reivindica o sujeito ativo, não conformado e não conformista, mas criativo e disposto à transformação do mundo como criador.
Por fim, ela só pode existir em uma cultura cívica, que institua o amor à liberdade compartilhada entre os cidadãos e cidadãs, a fraternidade. Ela demanda, pois, uma revolução cultural dos valores que antes legitimavam a opressão.
O modo como Paulo Freire se vincula a esta tradição é através do socialismo democrático. Daí o seu diálogo com Karl Marx e com os autores humanistas do marxismo.
Uma obra 68
Esta visada política da obra de Paulo Freire permite melhor situá-la em seu contexto de criação: ela é atravessada pela imaginação libertária de 1968. Pedagogia do Oprimido, identificado como uma espécie de ponto elevado a partir do qual se pode perscrutar toda a obra freireana, é um livro todo ele escrito em fogo e liberdade. Queima nas mãos do leitor. Escrito desde o Chile, parece sair mesmo das barricadas de 1968.
É muito feliz, neste sentido, o segundo capítulo deste livro ao trazer à tona os modos de presença de Frantz Fanon na obra de Freire. A conjuntura de 1968 ligou a luta pela liberdade nos países capitalistas centrais, contra os regimes burocráticos do Leste Europeu e as lutas anticoloniais. Paulo Freire escreve sobre a liberdade em meio ao subdesenvolvimento, ali onde a colonização e suas permanências exerce sobre o oprimido sua potência de desumanização. A moção de Fanon, que reivindica a legitimidade do uso da violência contra o colonizador e seus necropoderes, é recepcionada pela cultura da emancipação de Freire como uma contraviolência, como uma reação a uma violência de origem e estrutural.
“Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão.”
Se 1968 marcou o dramático e feliz reencontro das esquerdas no século XX com o fundamento da liberdade, após décadas de dominância do stalinismo, o livro de Paulo Freire é o grande documento na história intelectual dos brasileiros do reencontro de um pensador com Marx livre, fora dos dogmas e pensado a partir da emancipação. Todo o livro é vazado pelas referências e diálogos com as tradições humanistas da leitura de Marx, inspirando-se, mas indo muito além das reflexões dos cristãos brasileiros iniciadas no fim dos anos cinquenta pelo jesuíta e eminente filósofo Henrique de Lima Vaz.
No centro do livro, como se fosse uma âncora, o terceiro aforisma das chamadas “Teses sobre Feuerbach”, de Marx, que Freire cita na nota 15:
A doutrina materialista sobre a modificação das circunstâncias e da educação esquece que as circunstâncias são modificadas pelos homens e que o próprio educador tem de ser educado. Ela tem, por isto, de dividir a sociedade em suas partes – a primeira das quais está colocada acima da sociedade. A coincidência entre a alteração das circunstâncias e a atividade ou automodificação humanas só pode ser apreendida e racionalmente entendida como prática revolucionária.
Esta tese, para ser melhor compreendida, deve ser pensada como uma crítica ao dilema da cultura do iluminismo – educar os homens para mudar as circunstâncias ou mudar as circunstâncias para educar o homem? – e às teses socialistas autoritárias ou substitucionistas. A síntese está escrita em letras garrafais em Pedagogia do Oprimido: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão.” A coincidência entre o ato da mudança e a mudança do sujeito faz toda a fortuna da obra de Freire.
Paulo Freire, em documento quase perdido e que Venício Lima, que o recebeu do autor manuscrito, publica nesta edição, afirma a pedagogia da revolução, a função pedagógica do partido da transformação, ele próprio transformado no processo de libertação. A sua obra é, neste sentido, uma grande moção de fundação de um socialismo democrático em um período de profundo impasse das vanguardas e da própria história da matriz histórica dominante do marxismo no Brasil, que havia cindido tragicamente com o socialismo e a liberdade.
Paulo Freire e o pensamento político brasileiro
A relação entre educação e democracia é certamente um dos temas mais ricos e constituidores das tradições do pensamento brasileiro que buscaram um caminho para romper os impasses da formação. Esta relação esteve no centro do pensamento liberal de Rui Barbosa – formulando um progressivismo capacitário de inclusão progressiva dos pobres e negros na ordem política –; do pensamento republicano democrático de Manoel Bomfim – a universalização da educação como modo de constituir a soberania popular e, depois, a necessidade de uma revolução para produzir a reforma almejada da educação –; dos pensamentos desenvolvimentistas – que concebiam a educação como fundamento do progresso soberano e autônomo do país –; das utopias antropológicas e civilizatórias de Darcy Ribeiro – a educação pública como expressão mesma de nossa singularidade como civilização multiétnica.
Paulo Freire dissolve o impasse entre reforma e revolução através da educação como prática da liberdade, isto é, diferenciando a “educação sistemática” após a revolução do “trabalho educativo” que a precede. Ao exaltar o sentido pedagógico da política que se quer libertadora, ao propor uma dialética entre mestre e aluno, entre vanguarda e povo, o que Paulo Freire está fazendo é assentar os fundamentos de um pensamento e de uma perspectiva socialista democrática. Está, pois, fundando ou refundando esta tradição no pensamento político brasileiro, dando corpo a ela, abrindo um caminho para sua formação.
“Não há palavra verdadeira que não seja práxis”, diz Paulo Freire. Romper a dura crosta da cultura do silêncio, formar o direito público de voz, construir com quem nunca pôde falar e ser ouvido a plena expressão e possibilidade de formar o poder, a soberania popular é uma democracia radical, nos fala a obra da vida inteira de Venício Lima.
Venício e Freire
Há, decerto, uma diferença fundamental entre cultuar, fazer o culto, de um autor e cultivar um autor, apropriar-se de suas conquistas e desenvolvê-las criticamente. É desta ordem, a de uma dialogação crítica, que está a relação de cinco décadas de Venício com a obra de Freire e que este livro condensa e atualiza.
O conceito que sintetiza toda a obra de Venício, referência incontornável para quem pretende estudar os dilemas históricos da formação de uma opinião pública democrática no Brasil, e que dialoga com o centro mesmo das teorias freireanas é o de cultura do silêncio. Pois o oprimido começa a superar a sua condição na medida mesmo em que é capaz de falar de si em sua própria linguagem – “não há palavra verdadeira que não seja práxis” –, de biografar-se em uma narrativa de sentido, humanizando-se através do diálogo com o seu mundo e o mundo dos outros. A opressão é um roubo da fala, um silenciamento de voz, “uma estrutura constituinte de mutismo”. A obra de Venício é a crítica da permanência desta “estrutura constituinte de mutismo” na democracia brasileira pós-constituinte de 1988.
“Paulo Freire dissolve o impasse entre reforma e revolução através da educação como prática da liberdade.”
A sua pesquisa sobre este conceito levou-o necessariamente ao caminho de sua historicização, das origens da sociedade colonial, da formação do Estado nacional, do Império à República, dos vários regimes da república, da ditadura ao processo de redemocratização: a longa continuidade das estruturas institucionais de silenciamento dos povos indígenas, dos negros, dos trabalhadores, das mulheres, dos camponeses em meio a seus esforços, sempre reprimidos, de fazer emergir as suas vozes livres.
É possível e necessário, pois, escrever a história da formação do Brasil a partir da cultura do silenciamento, nas suas formas coloniais, modernas e contemporâneas. É este o sentido inscrito de classicização da obra do próprio Venício. Pois nenhum outro clássico da formação do Brasil trouxe ao centro da narrativa o direito dos brasileiros, o seu direito inalienável, como cidadãos e cidadãs, a falarem em democracia e pluralismo através de sua própria voz.
“Falar, por exemplo, em democracia e silenciar o povo é uma farsa”, afirma Paulo Freire em Pedagogia do Oprimido. A frase é tipicamente, no sentido autoral, de Venício Lima, no sentido de ser expressiva do seu trabalho crítico sobre a separação entre o direito de voto e o direito de voz na democracia liberal brasileira.
A cultura do silêncio é o par de oposição à educação e à política como dialogicidade que propõe Freire, como bom humanista, que não separa a isonomia da isegoria. A obra de Venício, ao dar um estatuto conceitual e uma documentação histórica à cultura do silêncio, ilumina com luz própria a obra freireana.
Sobre os autores
é professor de Ciência Política e coordenador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros, Cerbras, UFMG.