Para muitos, Karl Marx foi o pai do socialismo científico, o crítico mordaz do capitalismo, ícone da esquerda global, clássico do pensamento social, adversário da economia política burguesa, articulador maior do socialismo científico e do materialismo histórico. Mas Marx foi, sobretudo, um grande jornalista. Para celebrar seu aniversário, resgatamos passagens biográficas da trajetória dele no jornalismo. Mesmo operando em um outro momento histórico, a atuação de Marx como jornalista pode nos trazer inspiração para a práxis noticiosa em tempos atuais.
Marx produziu um numeroso material jornalístico, atuou na Gazeta Renana, na Nova Gazeta Renana, no Die Presse, no New York Tribune, entre outros. O jornalismo, na verdade, foi sua única atividade profissional remunerada. Essa atividade, que o obrigava a estar em contato com as polêmicas e conflitos emergentes de sua era, exigiu dele um choque de realidade, e marcou o desenvolvimento de seu pensamento. Além de laboratório de suas principais formulações, o olhar dialético e materialista presente em seus textos jornalísticos nos fornece rico material para pensar a atividade dos repórteres.
As fases do jornalismo de Marx
Marx atuou como jornalista em vários momentos de sua vida, uma atividade que, semelhante aos dias de hoje, estava muito longe de garantir estabilidade financeira. Com dificuldades em vislumbrar uma carreira acadêmica sólida após a demissão de Bruno Bauer, teólogo ligado aos “jovens hegelianos”, Marx, então recém-doutor pela Universidade de Jena com uma tese em Filosofia sobre o pensamento de Demócrito e Epicuro, decide colaborar com a imprensa.
Mario Pino, em Karl Marx, un periodista en la era del capital: apuntes para una investigación registra quatro fases dessa produção. A primeira começa com a colaboração com Arnold Ruge na revista Anais Alemães. Logo em seguida, em maio de 1842, Marx passa a escrever na Gazeta Renana, aproximando-se dos hegelianos de esquerda. Em seus textos, defendeu a liberdade de imprensa contra a censura, afirmando-a como um direito universal. Isso não o impede de defender também que a imprensa deveria se emancipar da liberdade comercial. Para Marx, neste momento de filiação à esquerda neohegeliana, o jornal é visto como um órgão que congrega várias opiniões em um único espírito, um aparelho produtor da opinião pública.
“György Lukács considerava o jovem Marx um jacobino radical no plano político e idealista no plano filosófico.”
Em poucos meses Marx se torna diretor da Gazeta. O perfil engajado do periódico o colocou de frente a desafios políticos de riscos cada vez mais altos. A imprensa havia se tornado uma importante arena de combate contra o absolutismo alemão. O jornalismo de Marx foi guiado pela produção de cartografias políticas para intervenção na luta de classes. Seus textos surgiam como elementos de apresentação de fatos conjunturais, orientados à ação política no presente, a fim de explorar as contradições das sociedades complexas e dinâmicas que afloravam na aurora da modernidade.
Na Gazeta Renana, um espírito ainda democrático-liberal norteava a perspectiva do jovem Marx, que via o jornal como um bastião do exercício público da razão crítica. É durante essa atuação como redator-chefe do periódico que Marx vai se tornando mais crítico ao liberalismo renano, se aproximando das ideias socialistas. A virulência com que defendeu os camponeses no debate sobre o roubo da madeira e o impulso de compreender os conflitos materiais que se esboçaram à sua frente, direcionaram o pensador a se dedicar às questões econômicas.
György Lukács considerava o jovem Marx um jacobino radical no plano político e idealista no plano filosófico. O olhar sobre os fatos no Marx da Gazeta Renana era inspirado nas reflexões de sua tese de doutorado, que colocava no centro da filosofia a busca por sua prática entre os homens. Esse trato mais materialista dos conflitos sociais começaria a aparecer em muitos artigos. A inclinação do jovem filósofo com o mundo das contradições materiais o fez superar pouco a pouco as abstrações idealistas. A vontade incansável em entender a conjuntura, a partir da responsabilidade de uma posição política engajada, somada à audácia em enfrentar quem quer que fosse, mesmo amigos e antigos aliados próximos, são duas marcas do caráter do jovem Marx editor que se mostram cada vez mais urgente aos jornalistas políticos de hoje. Marx foi um analista crítico e profundo das questões emergentes, intervindo nos embates sociais com notória ilustração e racionalidade. E foi esse comprometimento intransigente com a luta que o fez ser banido de seu próprio país.
Aí começa a segunda fase do Marx jornalista, entre 1843 e 1844, com sua partida para a França. Como Mario Pino descreve, essa fase da produção jornalística de Marx se dá nos Anais Franco-Alemães, revista coordenada por Ruge em território francês, em contato cada vez mais íntimo com a realidade da luta de classes. Marx vai substituindo o perfil mais noticioso por uma dimensão analítica de cores ensaísticas.
O mundo do trabalho, o mercado e um poder estatal não democrático ocupam então o centro das preocupações do jornalista. Neste momento, após um denso amadurecimento filosófico, fica evidente na sua produção intelectual a atenção às forças motrizes da sociedade e aos objetivos da revolução. Franz Mehring resume a visão de Marx sobre o objetivo dos Anais: infundir à época a consciência de suas lutas e desejos. A ruptura entre Marx e Ruge simboliza a cisão do jovem filósofo com seu passado hegeliano. Com outros exilados, como Frederich Engels e Mikhail Bakunin, Marx forma um novo jornal, o Avante!, claramente motivado pela oposição à monarquia. São os artigos nesse veículo que levam o jovem Marx a ser expulso da França, fixando-se na Bélgica. Nesta fase, fica evidente que o ponto de vista da classe trabalhadora, que passa a adotar, modifica totalmente sua visão de mundo. O olhar crítico sobre o Estado burguês está agora municiado por ferramentas investigativas que permitem expor a contradição material que o sustenta.
“Marx faz uma caracterização das disputas de poder e dos personagens, traçando uma rica interação entre elementos estruturais e causas históricas.”
A terceira fase (1848-1850) do Marx jornalista, para Pino, ocorre depois de uma lacuna de quatro anos, na qual o filósofo se dedicou ao ativismo e à redação de textos como a Ideologia Alemã e o Manifesto do Partido Comunista – um peça, por sinal, claramente influenciada pela linguagem jornalística. Os escritos filosóficos e históricos irão determinar o tom da nova abordagem do autor na produção jornalística. De volta à Colônia, Marx e Engels criam a Nova Gazeta Renana, veículo que foi um observatório jornalístico das revoluções europeias e no qual foram publicados os artigos que compõem a obra As Lutas de Classes na França. Os acontecimentos mais relevantes dos movimentos operários foram cobertos pela equipe do periódico, composta por uma rede de correspondentes.
Para Mario Pino, contudo, a quarta fase da produção jornalística de Marx, entre 1851 e 1862, é a mais importante. É nesse período que, de volta a Londres, Marx produz, para o primeiro fascículo da revista Die Revolution, as reportagens que geraram a obra 18 Brumário de Luís Bonaparte, tratando do golpe de Estado na França em dezembro de 1851. Praticamente um livro-reportagem, o texto é também uma aplicação do materialismo histórico à análise de uma conjuntura específica – talvez a primeira grande “análise de conjuntura” da tradição marxista, inaugurando todo um gênero. Ali Marx faz uma caracterização das disputas de poder e dos personagens, traçando uma rica interação entre elementos estruturais e causas históricas. O acontecimento, suas causas e implicações tornam-se matéria-prima da escrita de Marx.
De 1852 a 1862 sua fase mais duradoura de associação jornalística, quando foi correspondente europeu do New York Daily Tribune. A produção nesse período chega a impressionar, com mais de trezentos textos escritos por Marx e outros 150 escritos por Engels (mas assinados por Marx). O nível e estilo dos artigos já eram a marca dos autores. As fontes das matérias eram personagens do movimento democrático e operário de Londres. Os textos versavam sobre as crises do mercado mundial, os conflitos armados na Europa, a situação da classe trabalhadora, a dominação colonial e a busca de emancipação dos negros, entre outras temáticas, como diplomacia internacional e comércio do ópio.
O New York Tribune foi fundado por Horace Greeley, um líder da imprensa americana anti-escravista, e tinha como linha editorial uma ampla cobertura de eventos diversos e assuntos públicos. Foi nas páginas deste jornal que Marx começou a destrinchar as causas da crise geral econômica que afetava o capitalismo global em 1857. Neste período, dividia as escritas periódicas como correspondente com a produção dos esboços que compõem os Grundrisse. Mesmo nitidamente progressista, o Tribune não deixava de exercer certo poder editorial sobre os textos de Marx, constantemente alterando o tom de seus artigos, o que o levou a criticar essas formas de assédio.
Mario Pino, ao estudar a produção jornalística de Marx, lista algumas características dessa última fase: uma ampliação das bases de análise; o aprofundamento das relações existentes entre trabalho assalariado e capital; uma abordagem sobre as culturas não ocidentais; a concepção empírica e realista da luta de classes; a compreensão, resultante das temáticas anteriores, de uma visão policrônica e multilinear da história. Junto aos Grundrisse, os esboços que antecipam a obra magna de Marx, sua atuação jornalística revelava a ele um suporte laboratorial para a compreensão da realidade social de seu século. Entendia que o jornalismo era uma arma para colocar sua teoria em prática e auxiliar a classe trabalhadora a compreender seus objetivos históricos, e justamente por isso tecia uma paisagem conjuntural do mundo moderno apresentando os elementos violentos e desiguais desta realidade capitalista nascente.
As metamorfoses do jornalismo
A atividade jornalística profissional de Marx se dá em um contexto de contínuas mudanças na imprensa. Rapidamente podemos associá-lo a um tipo de jornalismo partidário, preocupado em convencer politicamente, a serviço de grandes causas. Contudo, é possível verificar sua atuação como expressão de uma fase específica da produção editorial. O século XIX ainda estava marcado por um tipo de jornalismo que tinha uma conexão considerável com as discussões político-partidárias. Os jornais estavam em processo de mutação, de um modelo no qual se destacava o publicismo (séculos XVII e XVIII) para a ascensão do jornalista como um educador de adultos.
A imprensa que tinha uma orientação mais comercial, ligada às atividades do capitalismo nascente, transmuta-se para um jornalismo de opinião, empenhado na criação de uma esfera pública burguesa. É com a criação do telégrafo e o surgimento da primeira agência de notícia nos Estados Unidos, a Associated Press, em 1848, que a ideia de reportagens objetivas passa para primeiro plano. Mas o imperativo da mudança de um modelo narrativo para um modelo informativo se dá apenas no final do século XIX. A estrutura empresarial e a expansão da cultura comercial, bem como a necessidade de alcançar a massa de leitores, sem afastar potenciais anunciantes, leva à busca por um distanciamento do engajamento político explícito.
“Diferente do jornalismo atual, hegemonizado pelo gênero informativo, tendendo à superficialidade, Marx apresentava um debate sólido sobre cada questão abordada.”
O jornalismo de Marx possui a marca do publicismo e do dirigismo político, mas seria leviano não reconhecer seu compromisso com a análise conjuntural e as especificidades da realidade concreta, buscando lançar luz às causas históricas e os processos de lutas envolvidos em cada evento, sem jamais negligenciar os aspectos singulares do real.
Diferente do jornalismo atual, hegemonizado pelo gênero informativo, tendendo à superficialidade, Marx apresentava um debate sólido sobre cada questão abordada. É possível dizer, inclusive, que foi sua práxis jornalística que o conduziu à investigação científica das questões urgentes de seu momento histórico. Sua abordagem partia do singular, mas de forma pendular conectava-o nas particularidades, intuindo sempre uma totalidade mais ampla à qual os fatos se integram. A obra 18 Brumário de Luís Bonaparte é um bom exemplo desta paixão e engajamento direcionados para possibilitar aos leitores o acesso aos meandros de eventos políticos de maior magnitude.
Marx produzia um jornalismo como conhecimento e esclarecimento, evidentemente enquadrado em outro modelo narrativo e político. Mas isso diminui sua relevância para os repórteres de hoje. Como indica o teórico marxista do jornalismo, Adelmo Genro Filho, o jornalismo informativo inaugura uma nova forma de conhecimento que, ainda que nascido no interior de necessidades do capital em expansão, cria um valor de uso social ligado às informações singularizadas que produz.
A práxis noticiosa em Marx
Adelmo aponta que a práxis noticiosa não pode se restringir ao discurso político, mas precisa direcionar-se à compreensão do singular e à construção de informações capazes de apresentar fatores capazes de possibilitar ao público mecanismos de superação da aparência fetichizada do mundo do capital. Um jornalismo como o de Marx que, na diferenciação funcionalista dos gêneros jornalísticos, poderia estar na intersecção entre a opinião e a informação, precisa ser resgatado pela atitude e capacidade investigativa de análise.
Embora não haja nenhum texto de Marx teorizando explicitamente sobre o jornalismo, excetuada a reflexão juvenil sobre a liberdade de imprensa, seus textos jornalísticos deixam exemplos claros do papel da práxis noticiosa para a educação da classe trabalhadora, apostando que a exatidão e a análise criteriosa dos fatos cumprem um indispensável papel na formação de sujeitos históricos. Longe de uma evocação à imparcialidade ou à neutralidade do agente, fica claro que um método de investigação do real foi cultivado e aprimorado por Marx em toda sua carreira de repórter.
“Seus textos jornalísticos deixam exemplos claros do papel da práxis noticiosa para a educação da classe trabalhadora, apostando que a exatidão e a análise criteriosa dos fatos cumprem um indispensável papel na formação de sujeitos históricos.”
Marx militou em mídias alternativas, e tinha consciência do baixo alcance desses projetos. Além da necessidade financeira de obter remuneração com a atividade enquanto repórter, também se deu conta que seria importante trabalhar na mídia mainstream para ampliar o escopo de divulgação de suas ideias, reconhecendo que isso o levaria a um cabo de guerra com os interesses empresariais (e chegou a ser de fato, em algumas situações, claramente censurado). Sem nenhuma ilusão idealista, Marx percebia que há contradições nas instituições sociais e já reconhecia os constrangimentos da produção jornalística da imprensa.
A intelectualidade do agente repórter é um ponto alto da visão jornalística de Marx. Por meio de suas abstrações dialéticas, conseguiu ampliar o potencial de compreensão dos fatos de seu tempo. Esta potencialidade de perscrutar o real coloca o jornalismo como uma práxis capaz de contribuir para o mapeamento do território em que as ações humanas podem se objetificar. O esclarecimento possível do jornalismo exige, contudo, um esforço de transição, por parte dos repórteres, da esfera cotidiana. A naturalização das relações sociais cristalizadas no senso comum e a entrega voluntária ao tecnicismo utilitarista da prática profissional estranhada são obstáculos para a práxis noticiosa. No esforço de superá-los, podemos encontrar inspiração em Marx.
Como contribuições do Marx jornalista aos estudos da práxis noticiosa, podemos elencar: a) a preocupação em expressar a singularidade, sempre em movimento, da realidade social; b) a busca por elucidar as contradições sociais prementes na sociedade capitalista; c) a atenção especial em desnudar os interesses dos agentes e grupos sociais envolvidos nas dinâmicas dos acontecimentos; d) o olhar histórico sobre as causas imanentes dos processos sociais; e) a delimitação do território das disputas em consonância com a compreensão das particularidades presentes nos eventos; e) a compreensão da conjuntura como a busca por capturar os fenômenos dentro de uma totalidade em movimento; e f) o ângulo da luta de classes como fio condutor na cartografia dos conflitos – o concreto como resultante de múltiplas determinações que devem ser conhecidas para se pautar qualquer luta.
A atualidade do Marx jornalista
Os elementos de continuidade e descontinuidade da dialética da história nos revela a importância das ideias de Marx para compreender a realidade social. Desde a economia política, passando pelo debate sobre a cultura e a comunicação, Marx ainda tem muito a nos oferecer.
A crise que perpassa o jornalismo só pode ser entendida com base no debate da estrutura social em tempos de crise do capital, complexo que unifica os epifenômenos do neoliberalismo, da reestruturação produtiva, do pós-modernismo e da globalização capitalista. As subjetividades sofrem a captura deste modo de produção do capital em rede e são seduzidas pela consolidação da figura do homem-empresa em um capitalismo de curto prazo.
Com o jornalismo cada vez mais disperso nos capilares da sociedade, tanto sua banalização na práxis utilitarista popularesca, quanto um retorno ao controle monopólico nas grades da imprensa burguesa “profissional”, parece-nos obscurecer o cerne do problema. A questão é que tipo de jornalismo pode ser realizado neste novo território digital e qual a sua necessidade. Em se tratando de um mundo conduzido pela expropriação intensiva do capital, em que o fetiche e a reificação invadem as mentes de grandes contingentes populacionais, o vigor do Marx jornalista pode servir de exemplo e modelo, e talvez até, novamente, apontar caminhos.
Sobre os autores
é professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e diretor científico da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJOR).