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Como deputado, Florestan Fernandes foi defensor do financiamento público da educação e responsável pela parte da Constituição de 1988 que trata da autonomia das universidades - Arquivo/Câmara dos Deputados

Um marxista na constituinte

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O intelectual e militante socialista Florestan Fernandes nasceu em 1920. Para celebrar sua vida, republicamos aqui seu discurso proferido na sessão de 9 de julho de 1987 na Assembleia Nacional Constituinte - em que lembra que um país na periferia do capitalismo não pode prescindir do socialismo.

Florestan Fernandes foi um dos mais destacados sociólogos brasileiros. Como um militante incansável, como o qualificou seu amigo e camarada de longa data Antonio Candido, foi um daqueles raros intelectuais – crítico e combativo em igual medida – que conseguem superar o hiato entre a vida ativa e a vida do pensamento. Autor de uma vasta obra acadêmica, deu contribuições seminais à pesquisa etnológica (sobre a organização social e a economia do povo Tupinambá), assim como sobre a integração do negro na sociedade de classes. Sua vasta obra está hoje quase integralmente disponível na internet, ainda que de modo disperso: esse dossiê da Marxismo21, em comemoração ao centenário de Florestan em 2020, tem o mérito de reuni-la, listando os links em uma única página.

Ao contrário do que muitas vezes se espera, a política de Florestan Fernandes não foi se moderando com a idade: pelo contrário, ao fim da vida se reafirmou com cada vez mais ênfase como um socialista, orgulhoso de sua filiação à tradição político-intelectual do marxismo e fiel à perspectiva da revolução – “um fantasma que não foi esconjurado”. Junto com intelectuais críticos como Mário Pedrosa e dirigentes comunistas como Apolônio de Carvalho, foi um dos primeiros a assinar a ficha de filiação do Partido dos Trabalhadores (PT), fundado a partir do ascenso das lutas operárias.

Pelo PT foi eleito deputado constituinte em 1986, e aproveitou a tribuna do Congresso para agitar a bandeira do socialismo. Reproduzimos aqui seu discurso de 1987 na Assembleia Nacional Constituinte, disponível na coletânea editada pela Fundação Perseu Abramo, em que afirma que “o socialismo proletário não é uma etiqueta da moda”, e que um país na periferia do capitalismo não pode prescindir do socialismo para “desenvolver-se como nação, lograr soberania e independência efetivas e atingir um estágio verdadeiramente democrático”.


Sr. Presidente, sras. e srs. Constituintes, é inconcebível que a Constituição elaborada na época atual fique presa às concepções de liberdade, de igualdade e de justiça social dos séculos XVIII e XIX. O próprio liberalismo se viu superado pelas transformações ocorridas na civilização industrial, como o atestam o welfare State, a “reforma capitalista do capitalismo” e os controles programados da economia, que visam a regular a esfera da “livre competição”. O próprio Estado capitalista enrijeceu-se através de medidas de defesa da ordem que se proclamam democráticas, mas constituem interferências na vida privada, na liberdade dos cidadãos e nos direitos civis de grupos, categorias sociais ou classes e frações de classe sob o subterfúgio do “combate ao inimigo interno e externo”. Por isso, uma Constituição moderna busca adaptar-se à variedade das correntes ideológicas e políticas organizadas em partidos, que traduzem objetivamente as tendências mais profundas em que se divide a sociedade civil. Ou elas confluem na diferenciação e na integração do “Estado de Direito” ou este não interage com a sociedade, convertendo-se em uma camisa de força que provoca a contestação à direita e à esquerda, instituindo a lei da selva e optando por colocar-se acima da lei, como árbitro supremo do uso da repressão e da opressão. 

Cabe-nos, como Constituintes, a responsabilidade de trazer para a Assembleia Nacional Constituinte o debate das questões candentes que dividem a sociedade brasileira e a época histórica na qual vivemos. Não podemos fugir a essa responsabilidade, principalmente porque muitos de nós se comprometeram com correntes políticas que são reformistas, socialistas, comunistas e anarquistas. O espectro partidário sob o qual se travaram os embates eleitorais e transcorreram as eleições era extremamente diversificado. Só à esquerda podiam ser mencionados os “progressistas” ou “radicais” do PMDB, o PT, a maior parte dos setores do PDT, o PS, o PCdoB e o PCB. Seria trágico – e ao mesmo tempo uma farsa – que tais correntes políticas tivessem existência real nos processos eleitorais e, em seguida, se vissem silenciadas no seio da Assembleia Nacional Constituinte ou, o que seria pior, pudessem afirmar, desta tribuna, suas posições políticas e ideológicas, mas fossem castradas na elaboração da nova Carta Magna. Eu sou o mesmo Florestan Fernandes que disputou votos dos eleitores como marxista e o PT é o mesmo partido que se apresentou, em nome dos operários, dos trabalhadores da terra e de outros setores socialistas como o partido que recorre à luta de classes como um instrumento de reforma social e de criação de uma sociedade nova, sem exploração do produtor direto, o trabalhador – e sem classes. 

Causou-me espanto o grau de sufocação ideológica e política que prevaleceu nos procedimentos que foram seguidos na elaboração da nossa Constituição. A hegemonia das elites das classes dominantes colocou os partidos em segundo plano (seria melhor dizer claramente: em partidos instrumentais para a dominação ideológica e política da burguesia, stricto sensu) e reduziu o clamor dos partidos de oposição à ordem em miados de gatos pardos em noites sem luar. Um espaço ideológico e político restrito, o qual só permitia que aqueles partidos perfilhassem o papel de advogados do aperfeiçoamento da ordem social capitalista, como se eles fossem a esquerda da burguesia, não a esquerda do proletariado. Ainda assim, pagaram o ônus de serem estigmatizados como “sectários” e “baderneiros”. 

Ora, não estamos aqui para defender nenhuma seita e, muito menos, para instalar a baderna, que só é útil, nas circunstâncias, aos que querem manter o Brasil preso a um passado morto, ou a um presente vivo através de laços indesejáveis com o imperialismo, e com a expropriação dos milhões de deserdados ou subalternizados. Os ideais e as aspirações das esquerdas igualitária, libertária, nacionalista e democrática precisam ressoar aqui dentro e têm de ser acolhidos no texto constitucional. Se isso não acontecer, teremos a mais estranha Constituição hodierna, um eco atrasado da última Constituição legítima, a de 1946. 

Um partido proletário como o PT só pode identificar-se, ideológica e politicamente, com o socialismo proletário. Como e enquanto tal, o partido pleiteia todas as medidas relacionadas com a defesa de um padrão de vida decente para as classes trabalhadoras e endossa a luta de classes como um meio de revolução dentro da ordem (transformações compatíveis com o capitalismo, mas que podem ser proscritas por burguesias reacionárias) e de revolução contra a ordem (transformações que somente se tornam viáveis se ocorrer a conquista do poder pelos trabalhadores). Nos dois planos aparecem valores e ideais políticos incorporáveis à Constituição de qualquer país capitalista da era atual, e que não podem ser negligenciados em países capitalistas da periferia, impelidos a combinar o socialismo ao nacionalismo libertário e à democracia burguesa, como condição para neutralizar e vencer as pressões espoliativas e imobilizadoras da dominação capitalista internacional. 

O nosso atraso relativo complica o quadro descrito. As elites dirigentes de nossas classes burguesas protelaram, ou sabotaram, reformas que poderiam ter feito há muito tempo. Em consequência, reformas puramente capitalistas caíram no campo de luta política das classes trabalhadoras e acabaram assumindo o caráter de reformas da ‘‘esquerda”, ou socialistas. O melhor exemplo consiste na reforma agrária. Esta possuía escasso interesse econômico e político para uma burguesia latifundiária, que dispunha de amplas fronteiras para expandir horizontalmente a exploração do homem pobre e da terra. 

De outro lado, ao se introduzir a produção capitalista de capital mais ou menos intensivo na agropecuária, as condições geográficas, o gênero de culturas ou de exploração agropecuária e a comercialização interna e externa dos produtos permitiam a recomposição do latifúndio (ou a exploração conjugada de médios e pequenos produtores, submetidos à hegemonia tecnológica e econômica do grande capital agrário). Em suma, a burguesia não chegou a alimentar qualquer empenho na reforma agrária capitalista, e as tensões no campo se agravaram de forma explosiva. 

Outro exemplo pode ser retirado do ensino público. As elites da classe dominante mantiveram algum interesse pela expansão do ensino público gratuito enquanto podiam monopolizar as oportunidades educacionais, como mecanismo de financiamento indireto de seu status social Assim que a situação histórica se alterou e o ensino público tornou-se uma ameaça de disseminação de conhecimentos entre as classes pobres, surgindo como uma alavanca da ampliação e melhoria da consciência social de classe, as mesmas elites voltaram-se para a alocação dos recursos públicos na expansão do ensino privado (leigo e confessional). Muitos exemplos de natureza equivalente poderiam ser arrolados sobre outros assuntos, o que é naturalmente dispensável. 

Tais problemas, que poderiam ser resolvidos em uma órbita capitalista, mas não o foram, por causa da resistência das diversas camadas da burguesia às próprias soluções e/ou a seus efeitos sociais, culturais e políticos, formam o núcleo dos principais dilemas com que se debate esta Assembleia. Em virtude da resistência reacionária à mudança, esses dilemas se agravaram e condensaram em torno deles forças sociais contestadoras que são “radicais” (no caso do PMDB) e socialistas (no caso dos partidos propriamente de esquerda). A solução dos dilemas agravou-se com a superposição de pressões externas de países que exercem sobre o Brasil dominação imperialista. O ensino público gratuito exemplifica o agravamento. Sob a ditadura militar, os Estados Unidos dirigiram sobre o Brasil uma bateria programada de modernização cultural controlada à distância. O ensino público gratuito sofreu um fortíssimo impacto negativo: o estudante só poderia avaliar corretamente aquele ensino que compartilhasse a condição de mercadoria. Constituíram-se as comissões MEC-USAID, que definiram as linhas das futuras reformas do ensino, em todos os graus. Daí decorreram uma expansão da indústria do ensino e do ensino orientado pela Igreja Católica, e o enfraquecimento progressivo da escola pública. Rompeu-se a tendência do desenvolvimento quantitativo e qualitativo do ensino público, substituída por uma nova tendência, que privilegiava simultaneamente a acumulação de capital através do ensino comercializado e a conquista de mentes e corações por parte do ensino confessional. Hoje nos defrontamos com um grave obstáculo para superar os efeitos perversos dessa reversão. O que importa assinalar é o significado socialista que aderiu à solução de problemas que são intrinsecamente burgueses. 

A nova Carta Constitucional precisa fazer face, pois, a dois tipos de problemas: aqueles que nasceram do horizonte cultural retrógrado de nossa burguesia, e os que dizem respeito ao próprio movimento operário, que ao crescer, exige para os trabalhadores a eliminação de formas pré-capitalistas de exploração econômica, a conquista de padrões decentes de vida e a capacidade de terem peso e voz na sociedade civil. 

Duas comissões temáticas, pelo menos, enfrentaram positivamente essas exigências, atendendo parcialmente às reivindicações dos trabalhadores e de outros grupos e categorias subalternizados. 

O mesmo não sucedeu com relação a outras exigências. A Carta Constitucional fixou-se em um patamar de capitalismo selvagem, atribuindo prioridade quase exclusiva ao que é essencial para o grande capital nacional e, principalmente, para as multinacionais e a rede internacional de poder financeiro e político, que esmagam as potencialidades de desenvolvimento relativamente independente e equilibrado do país. Quanto ao que é vital para os trabalhadores – em sua expansão como e enquanto classe social e em seu potencial organizado de luta política – tudo foi mantido na soma zero. A Carta confere, como seria normal, aumento da capacidade de auto afirmação e de luta de classe à burguesia, em todos os seus setores. Contudo, só abre requisitos indispensáveis à existência da classe e de sindicatos e partidos de classe aos trabalhadores. Sequer avançou no sentido mais geral do reconhecimento da legitimidade da desobediência civil e de formas legais de insurgência proletária. 

Quanto à revolução contra a ordem, não se poderia esperar que uma Constituição elaborada sob o signo da revisão constitucional e da contestação da soberania da própria Assembleia Nacional Constituinte pelos outros dois Poderes (com o consentimento e o incentivo evidente dos “conservadores”, mesmo entre os Constituintes), pudesse acarretar um passo a frente. É sabido que, na história das Constituições modernas, somente burguesias revolucionárias chegaram a reconhecer a legitimidade do direito fundamental à revolução. Esta, como processo social, nasce e cresce espontaneamente, como um fato histórico natural. 

Todavia, uma Constituição democrática não estabelece “medidas de defesa da ordem” que desequilibrem o sistema de poder e que, principalmente, instituam o monopólio do poder político estatal por certas forças sociais subrepticiamente. O equilíbrio dos poderes corresponde ao equilíbrio das classes e dos antagonismos das classes. A retórica da “iniciativa popular” e da “participação popular” não pode ocultar (ou servir para esconder) uma hegemonia econômica, social e política dos estratos dirigentes das classes possuidoras. Se se inova nessa direção, é preciso inovar também em outra direção, que confira aos trabalhadores o aumento crescente dos meios coletivos de autodefesa e de luta política ofensiva. 

Na verdade, nem mesmo o quarto poder sofreu qualquer forma de inibição. Ao contrário, o poder militar mantém o seu status de braço armado da burguesia e que desfruta da condição anômala de ser um Estado dentro do Estado. As duas maiores potências contemporâneas possuem um Ministério de Defesa, sendo que, nos Estados Unidos, ele pode ser chefiado por um civil. Nós temos três ministérios e seis ministros militares… Algo ridículo para uma nação pobre e que se justifica porque o nosso militarismo é, ao mesmo tempo, arcaico e ultramoderno. Arcaico, porque mantém o vezo escravista: o escravo é “o inimigo público número um”; traduzindo modernamente: “o operário é o inimigo público número um”. Apenas um aparato militar excessivo poderia fazer face ao inimigo interno e operar permanentemente como o fator que engendra um Estado autocrático exemplar, como um Estado ininterruptamente acima das classes. Ultramoderno, porque ele é o polo do aparecimento e da expansão do complexo industrial militar, o que infunde às Forças Armadas um peso superior ao das classes dominantes (digamos: o substrato não-evidente do conglomerado constituído pela junção das burguesias nacionais com as estrangeiras). 

Portanto, as perspectivas socialistas oferecem um ângulo de construção e de avaliação da Constituição que não pode ser subestimado primeiro, porque uma carta constitucional moderna precisa incorporar medidas constitucionais socialistas. Esse é o exemplo que vem de fora e a necessidade que procede das “explosões sociais”, que sacodem dramaticamente a sociedade brasileira nos dias que correm. Segundo, porque nenhuma nação moderna, especialmente na periferia do mundo capitalista, pode descuidar-se da importância do socialismo para desenvolver-se como nação, lograr soberania e independência efetivas e atingir um estágio verdadeiramente democrático nas piores condições históricas possíveis (como podemos exemplificar a partir do Brasil). O socialismo proletário não é uma etiqueta da moda. Ele representa uma corrente política e ideológica que está no fundo da presente crise de civilizações (e no futuro próximo da história em curso da humanidade, numa era de abolição das classes), da luta de classes e do colapso da razão.

Sobre os autores

foi um sociólogo e político brasileiro. Patrono da sociologia brasileira, também foi deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores, tendo participado da Assembleia Nacional Constituinte. Faleceu em 1995.

Cierre

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Published in América do Sul, História, Legislação and Perfil

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