Para quem habita uma tradição, como é a do socialismo democrático, é sempre renovador conversar com os nossos mortos queridos. Senti-los plenos, em sua presença, conosco.
Há três anos partiu Gustavo Codas para o país imenso de nossa memória coletiva. Vinha de um golpe à democracia no Paraguai. Foi recebido aqui, logo após, por um golpe na democracia brasileira. Anos regressivos na América Latina, fabricados na usina imperialista dos EUA, que certamente pesaram em seu coração que sempre nutriu grandes esperanças latino-americanas.
Agora, vivemos anos de novas esperanças: a vitória democrático-popular sobre o golpe na Bolívia, o processo em curso no Chile, a vitória inédita na Colômbia, um caminho dramático de esperanças no Brasil… Nada está seguro. São tempos revoltos e de tumultos. O que nos diria o companheiro Gustavo Codas, este militante constituído pelas veias abertas do continente?
Três identidades
Na militância de Gustavo Codas, cruzavam-se três identidades. A primeira foi a procura incessante nos movimentos das classes trabalhadoras. Para alguém constituído no exílio de seu país, a busca de um chão classista foi desde sempre fundamental. Pisar no chão das fábricas, como ele o fez, tornando-se um intelectual orgânico dos movimentos sindicais brasileiros e, depois, latino-americanos. Este encontro entre uma vocação revolucionária e as experiências das classes trabalhadoras constituiu o núcleo de seu equilíbrio e identidade.
Da Fundação Nativo da Natividade à Escola Nacional Florestan Fernandes, Gustavo Codas sempre esteve no centro das atividades de formação. Estava sempre lendo, estudando, refletindo, procurando respostas à crise histórica do movimento socialista internacional. Enquanto formava novas gerações militantes, ele próprio, de fato, estava se formando, trazendo para a sua consciência muitas camadas de memória e teoria. Ao ser indagado sobre a morte do pai, um de seus filhos recordou: “o seu mote era ‘entender o mundo para mudar o mundo’, ele repetia a frase com frequência.”
Não era um eclético: sempre foi um defensor marxismo revolucionário – mas aberto e criativo como deve ser. Nas últimas vezes nas quais conversamos, ele estava estudando os processos da revolução alemã, as experiências de autogestão e organização conselhista do poder que lá havia sido experimentado brevemente.
Certamente, porém, a identidade que sobressaía era a do revolucionário latino-americano, um ethos diretamente herdado da militância de Che Guevara. O internacionalismo de Gustavo Codas não era uma agenda, uma perspectiva, um princípio: era a sua própria biografia. Nenhum de nós tínhamos a consciência latino-americana em tal estado vivo, já constituído por tantos diálogos com as novas lideranças revolucionárias da América Latina, uma compreensão desde o continente de nossos impasses e esperanças. Como isso nos faz falta agora.
Um novo ciclo latino-americano
Talvez a consciência maior de nossos impasses, das derrotas e golpes que várias experiências do continente viveram nos últimos tempos, seja mesmo a do isolamento nacional das lutas de nossos povos, tragicamente contraposto à atualização em pleno século XXI das intervenções desestabilizadoras das democracias do continente diretamente operadas pelo Estado norte-americano.
Esta falta – a de não conferir centralidade à construção da unidade política na América Latina – não é uma falta recente da cultura brasileira, mesmo a de esquerda. Um dos centros articuladores do pensamento conservador no Brasil desde a fundação do Estado nacional foi a de conceber o próprio país como um continente, estranhado e autônomo das outras repúblicas latino-americanas. O pensamento isolacionista do Brasil frente aos outros povos continentais é encontrado mesmo em um intelectual tão importante como Euclides da Cunha, autor de Os sertões.
Por este caminho, o Estado brasileiro, fundado na monarquia e escravidão, concebia-se à diferença da sorte republicana e tumultuosa dos sonhos de Bolívar. Com este pensamento, combateu-se a ferro e fogo as revoltas populares do século XIX no Brasil. E quando veio a República, ela veio separada de qualquer sentimento democrático e popular, isolada de nosso destino comum latino-americano.
As esquerdas brasileiras conhecem ainda muito pouco a América Latina e pensam-se à européia. Sabem mais da revolução francesa do que a nossa revolução bolivariana, mais da revolução russa do que a revolução mexicana. Os EUA, desde o nascimento de seu Estado nacional, unificado e imperialista, fecham as portas do nosso futuro através de nossa divisão.
Gustavo Codas, vindo de um país na periferia da periferia, sabia disso profundamente. Seu internacionalismo militante era a resposta orgulhosa ao estado ainda fragmentário da nossa América. Ao conversar com ele hoje, o senti nos indagando sobre quais são os nossos planos para a unificação política latino-americana. E estendeu-nos as suas mãos, cheias de sementes de esperança.
Sobre os autores
é professor de Ciência Política e coordenador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros, Cerbras, UFMG.