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David Graeber, que morreu em setembro de 2020, era professor de antropologia na London School of Economics. (Andree / ullstein bild via Getty Images)

David Graeber sabia que pessoas comuns poderiam reconstruir o mundo

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Tradução
Gercyane Oliveira

O antropólogo anarquista David Graeber faleceu neste dia em 2020. Em seu último livro, escrito com David Wengrow, ele rejeita brilhantemente mitos fatalistas da história humana – e faz uma defesa do nosso poder de moldar nosso próprio mundo.

Resenha do livro The Dawn of Everything: A New History of Everything, de David Graeber e David Wengrow (Allen Lane, 2021).


Os mitos sobre a origem do mundo têm um efeito psicológico básico: independente de sua validade científica, eles têm o poder de justificar os assuntos existentes, enquanto, ao mesmo tempo, contornam o senso do como o mundo deve parecer no futuro. A sociedade capitalista moderna se construiu em duas variantes de um desses mitos.

Como conta uma das histórias, a vida como caçador primitivo era “desagradável, bruta e curta” até a invenção do Estado-Cidade nos permitir florescer. A outra história diz que, em um estado infantil de natureza, os humanos eram felizes e livres, e que só com o advento da civilização é que “todos eles se amarraram precipitadamente em suas correntes”.

Essas são duas variantes do mesmo mito, pois ambas assumem uma trajetória histórica unilinear, que começa com bandos de simples caçadores igualitários e termina com a crescente hierarquia e complexidade social. Eles também nutrem uma perspectiva fatalista semelhante no futuro: se seguimos com Hobbes (o primeiro) ou Rousseau (o segundo), ficamos com a ideia de que o máximo que podemos fazer para mudar nossa atual situação são, na melhor das hipóteses, alguns modestos ajustes políticos. A hierarquia e a desigualdade são o preço inevitável a se pagar pela passagem real do tempo.

A duas versões do mito retratam o passado humano como uma sopa primordial de pequenos grupos de caçadores-coletores, falta de visão e pensamento crítico, e onde nada aconteceu até embarcarmos no processo que, com o advento da agricultura e do nascimento das cidades, culminou no Iluminismo moderno.

O que torna o livro The Dawn of Everything, de David Graeber e David Wengrow, um clássico imediato é a abrangente demolição científica desse mito – o que eles chamam de “o mito do selvagem estúpido”. Nenhum fragmento de prova arqueológica nos diz que o passado humano esteja remotamente perto daquilo que sugere esse tipo ded mito fundamental.

Em vez disso, o que as evidências disponíveis mostram é que a trajetória da história humana tem sido um bom negócio mais diversificado e emocionante e menos chato do que tendemos a assumir porque, em um sentido importante, nunca foi uma trajetória. Nunca vivemos permanentemente em pequenos grupos de caçadores. Também nunca fomos permanentemente igualitários. Se há uma característica definidora de nossa condição pré-histórica, é sua perplexa capacidade de transformação, quase constantemente, em uma variedade diversificada de sistemas sociais, com todos os tipos de natureza política, econômica e religiosa.

Graebeber e Wengrow sugerem que o único jeito de explicar tal variedade caleidoscópica de formas sociais é constatar que nossos ancestrais não eram tão estúpidos, mas eram atores políticos autoconscientes, capazes de montar seus próprios arranjos sociais, a depender das circunstâncias. Mas mais do que nunca, as pessoas escolheriam mudar sazonalmente entre as identidades sociopolíticas para evitar os perigos de um persistente poder autoritário.

E assim, em vez de perguntar “por que surgiu a desigualdade?”, a questão mais interessante para se colocar a respeito da história humana é “por que fomos condicionados a isso?” Essa é somente uma das muitas afirmações sinistras desenvolvidas neste novo livro surpreendente.

Revirando a narrativa

O livro apresenta muito do seu valor a partir de sua abordagem eclética. Wengrow é professor de arqueologia comparada na University College London. Ele é bem conhecido por seu trabalho acerca das antigas transformações culturais e políticas na África e na Eurásia. Graeber, que morreu abruptamente em setembro de 2020, era professor de antropologia da London School of Economics, considerado amplamente o mais brilhante da sua geração.

Juntos, eles exploram uma série de recentes descobertas arqueológicos que se mostram anômalos à narrativa padrão (por exemplo, a existência de antigas cidades igualitárias de larga escala). Mas, até agora, isso só estava restrito a um punhado de especialistas que nunca haviam desvendado essas implicações. As descobertas arqueológicas são avaliadas a partir de olhos antropológicos. O resultado é um passeio completo para o passado que salta de continente a continente e de uma esfera social a outra para contar histórias que, a depender da familiaridade do leitor com o registro arqueológico, podem aparecer como revelações.

Aprendemos, por exemplo, que a uniformidade na cultura material em toda a Eurásia durante Palaeolítico Superior significava que as pessoas viviam em uma comunidade imaginária de larga escala espalhada pelos continentes, descontruindo a ideia de “primitivos” que só perdiam seu tempo em bandos isolados. De forma contra-intuitiva, a escala de sociedades solitárias diminuiu no decorrer da história humana, pois as populações cresceram.

A partir de lugares monumentais, como Göbekli Tepe, na Turquia ou Howewell em Ohio, nós aprendemos que as pessoas ocasionalmente vinham de terras distantes para se reunir naquilo que parecem ter sido grandes centros de interações culturais para recreação e a troca de conhecimentos. Viajar grandes distâncias esperando ser recebidas em uma comunidade mais ampla foi uma característica típica da vida dos nossos ancestrais.

O livro então passa a abordar a agricultura. A visão comum é de que o nascimento da agricultura significava o surgimento mais ou menos automático de sociedades estratificadas. Contudo, essa suposição tem problemas, já que consideramos um fenômeno como “brincar de fazenda” em toda a Amazônia, onde as sociedades acéfalas como os nambiquaras, embora familiarizados com técnicas de domesticação vegetal, decidiram de forma consciente não ter a agricultura como base para sua economia e optaram por uma abordagem mais relaxada que intercalava flexivelmente entre o forrageamento e o cultivo (de um modo geral, a agricultura surgiu na ausência de alternativas mais fáceis).

Além disso, aprendemos que algumas das primeiras sociedades agrícolas do Oriente Médio se formavam como respostas igualitárias e pacíficas a forrageadores predadores das colinas. Aqui, foram especialmente as mulheres que impulsionaram o crescimento da ciência agrícola. Aprendemos também que os trabalhos complexos de irrigação em certos lugares foram executados comunalmente, sem chefes, e, mesmo onde havia estruturas de hierarquia, essas obras foram realizadas apesar da autoridade e não por causa dela. A expansão gradual da agricultura mundo afora foi bem menos unilinear do que qualquer um já acreditou anteriormente.

No que talvez seja o melhor capítulo do livro, os autores se alternam para examinar as cidades. Hoje em dia, cidades igualitárias em grande escala – ou a mera ideia disso – beira à utopia; mas Graeber e Wengrow argumentam que não deveria ser assim quando passamos a pensar nas cidades de maneira coalescente, em um espaço físico único, de comunidades imaginadas estendidas já existentes, com seus próprios etos e normas igualitárias – primeiro de modo mais sazonal, depois de modo mais estacionário, como experimentos conscientes de forma urbana.

Lugares como Çatalhöyük no sul da Anatólia e muitos outros oferecem provas incontroversas da existência passada dessas cidades, onde nenhum sinal de governo autoritário pode ser encontrado (em geral, quando estes locais são encontrados, eles se apresentam na forma de palácios, templos, fortificações e etc.). Outras cidades antigas como Cahokia em Mississippi ou Shimao na China mostram evidências de uma sucessão temporal de diferentes ordenamentos políticos, mudando às vezes de algo autoritário para igualitário, o que abre a possibilidade de revoluções urbanas como uma provável explicação para tais mudanças.

Os capítulos finais se concentram no “Estado” – ou melhor, sobre o quão enganoso é definir sociedades como a inca ou a asteca como “Estados incipientes” por estes serem bem mais diversos do que esse termo “camisa de força” nos faria acreditar. Das sociedades olmecas e Chavín na Mesoamérica aos Shilluks do Sudão do Sul, The Dawn of Everything nos dá um gosto da variedade de estruturas autoritárias no decorrer da história. No fim do livro, encontramos a joia arqueológica que é a Creta Minoica – um “bonito incômodo para a arqueologia” – onde todas as evidências apontam para a existência de um antigo domínio político feminino, provavelmente uma teocracia regida por uma agremiação de sacerdotisas.

Há muito mais. A tônica que atravessa os capítulos é que, caso quisermos dar sentido a todos esses fenômenos, somos obrigados a colocar intencionalmente o coletivo humano de volta à imagem da história humana, como uma variável explicativa genuína – assumindo que nossos ancestrais eram seres imaginativos eminentemente capazes de criar seus arranjos sociais de forma consciente.

Os autores, de modo algum, ignoram a importância dos determinantes ecológicos. Em vez disso, eles fazem um esforço para uma posição mais sensata – um determinismo contínuo, geralmente, só leva a uma posição extremada. A conclusão principal é que essa visão tão nova sobre o nosso passado nos equipa com um senso expandido de possibilidades quanto ao que nós mesmo podemos fazer no futuro. Sentimentos fatalistas sobre a natureza humana se dissipam no decorrer das páginas.

Um futuro mais livre

Fiéis à Lei da Ostrom – “um arranjo de recursos que funciona na prática pode funcionar em teoria” –, Graeber e Wengrow estabeleceram uma nova estrutura para interpretar a realidade social trazida à luz por descobertas empíricas.

Primeiramente, eles nos pedem para abandonar os termos como sociedades “simples” ou “complexas”, e usar menos ainda a “origem do Estado” ou “origem da complexidade social”. Esses termos já pressupõem o tipo de pensamento teleológico desafiado no livro. O mesmo vale para “modos de produção”: a dependência de uma sociedade da agricultura ou da pesca é um critério ruim para classificação, já que não nos diz quase nada a respeito de sua dinâmica social.

Em segundo lugar, eles estabelecem algumas novas categorias descritivas próprias. Eles mostram, por exemplo, que a dominação social pode ser dividida em três elementos – controle da violência, do conhecimento e do poder carismático – e que as permutações desses elementos produzem padrões consistentes no decorrer da história. Enquanto o Estado-nação moderno incorpora todas as três, a maioria das sociedades hierárquicas do passado teve somente uma ou duas, e isso possibilitava aos povos que viviam sob eles graus de liberdade inimagináveis para nós hoje.

Graeber e Wengrow refletem bastante neste último ponto. Mais do que um trabalho acerca da história da desigualdade, The Dawn of Everything é um tratado sobre a liberdade humana. Ao analisar o registro antropológico, eles identificam três tipos de liberdade – a liberdade de abandonar a comunidade de alguém (ciente de que será bem-vinda em terras distantes), liberdade de reformular o sistema político (muitas de forma sazonal) e a liberdade de desobedecer às autoridades sem consequências – que parecem ter sido simplesmente assumidos entre os nossos ancestrais, mas agora estão perdidos (obviamente, sua conclusão está muito longe de Rousseau: não há nada inevitável a respeito dessa perda!).

Esta análise muda a questão quando é questionada a respeito do desenvolvimento histórico da hierarquia: “O verdadeiro quebra-cabeça não está em quando os chefes apareceram pela primeira vez”, eles sugerem, “mas sim quando passou a não ser mais possível simplesmente rir deles fora da corte”.

Muito do que torna este livro fascinante é a natureza alienígena dos fenômenos que encontramos dentro – ao menos, aos olhos contemporâneos. Potlatches, caça de cabeças e crânio, reis estranhos, revoluções, arte xamânica, buscas de visão… The Dawn of Everything é como uma obra de ficção científica, embora aquilo que é fictício é a nossa visão sobre a história humana. A escrita é, muitas vezes, engraçada; às vezes, hilária. Ao mesmo tempo, já que dificilmente um parágrafo passa sem um insight marcante, este é um livro que requer ser absorvido pacientemente. Ele se situa em uma classe diferente de todos os outros volumes sobre a história mundial que nos acostumamos a ler.

The Dawn of Everything derruba intelectualmente as posições de Steven Pinker, Jared Diamond, ou Francis Fukuyama (e Yuval Noah Harari também). Sempre que os não especialistas tentam por as mãos na história humana, eles acabam inevitavelmente reproduzindo os mesmos antigos mitos que crescemos ouvindo. Tal qual Pinker: durante toda a sua discussão sobre o progresso científico, seus livros também poderiam ter sido escritos nos tempos de Hobbes, no século XVII, quando nenhuma das evidências desenterradas recentemente estava disponível.

Graeber e Wengrow expõem pontualmente as chocantes incompetências desses autores populares em lidar com o registro antropológico. Apenas um sólido domínio deste último – ou seja, da gama completa documentada de possibilidades humanas – propicia uma lente interpretativa credível sobre o passado distante. Isso fornece ao pesquisador um sentido refinado dos ritmos da história humana.

Uma das experiências de mergulhar neste livro – ao menos, no meu caso – foi um reconhecimento gradual de estar na presença de uma excentricidade intelectual, algo difícil de situar dentro do atual cenário da teoria social. Ao abraçar mais uma vez a “grande narrativa”, o livro faz uma franca ruptura com tendências pós-estruturalistas e pós-humanistas comuns na academia contemporânea. Sabemos que Graeber, ao menos, gostava de se pensar como um “pré-humanista”, aguardando ativamente que a humanidade se desse conta de todo o seu potencial.

Pode-se certamente ver este trabalho como uma contribuição nessa direção. Pode-se também ver The Dawn of Everything como pertencente à tradição do Iluminismo (tirando o fato de que uma das principais reivindicações do livro é que o pensamento iluminista se desenvolveu, em grande parte, em resposta às críticas dos intelectuais europeus à sua sociedade da época). Quanto à forma como ele se enquadra na atual teoria arqueológica e antropológica, o livro é de um alcance tão real que não acho que tenha comparações fáceis.

As comparações devem ser feitas com obras de calibre similar em outros campos – mais precisamente, digo eu, com as obras de Galileu ou Darwin. Graeber e Wengrow fazem com a história humana aquilo que os dois primeiros fizeram com astronomia e biologia, respectivamente. O livro produz um efeito de descentralização semelhante: ao destronar nossa posição autoposta no ápice da evolução social, golpeia o pensamento teleológico que tão insidiosamente molda nossa compreensão sobre a história.

Enquanto obras como o Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo e A origem das espécies insinuam a relativa insignificância dos seres humanos diante do cosmos, The Dawn of Everything explora todas as possibilidades que temos de agir dentro dele. E se Galileu e Darwin promoveram sua própria turbulência, ele impactará ainda mais precisamente por esse motivo. Em última análise, uma sociedade que aceita a história apresentada aqui como sua história oficial de origem – que é ensinada nas escolas, infiltrada em sua consciência pública – precisará ser radicalmente diferente da sociedade na qual estamos vivendo.

Sobre os autores

é pesquisador de pós-doutorado em antropologia na London School of Economics.

Cierre

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Published in América do Norte, Análise, História and Livros

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