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Mike Davis, fotografado em 2 de janeiro de 2017. (Archinect.com / Wikimedia Commons)

Mike Davis e os sertões brasileiros

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Tradução
Alexandre Barbosa de Souza

Mike Davis foi um verdadeiro intelectual da classe trabalhadora. Movido pelo ódio ao capital, a empatia com a dignidade das pessoas ordinárias e uma sofisticada perspectiva ecológica, ele foi o grande cronista dos desastres (não tão) naturais. Reproduzimos aqui o último capítulo de seu clássico “Holocaustos coloniais”, que trata da seca no nordeste brasileiro.

No dia 25 de outubro nosso amigo e camarada Mike Davis nos deixou, após lutar por anos contra um câncer de esôfago. Professor na Universidade da Califórnia, Davis se tornou um acadêmico tardiamente, e nunca chegou a concluir o doutorado. Vindo de uma família da classe trabalhadora, mas não de esquerda, foi açougueiro (como o pai) e motorista de caminhão. Se politizou, com tantos norte-americanos da “geração 68”, a partir do contato com o movimento pelos direitos civis e depois trabalhando com a SDS (Students for a Democratic Society, que nos anos 60 se tornou uma massiva organização revolucionária liderando o protesto estudantil).

Deixou uma obra volumosa, em um peculiar estilo polemista direto e contundente, com a irreverência ácida de quem escolhe um lado na guerra de classes. Autor de livros seminais como O Planeta Favela e A cidade de Quartzo, ambos publicados no Brasil pela editora Boitempo, sua prosa, um misto de investigação analítica com jornalismo de combate, transpirava indignação militante e ódio pelo capital.

Mike Davis era, antes de tudo, um homem de ação; se reivindicava um “marxista-ambientalista” e um “socialista da velha guarda”. Com uma perspectiva ecológica para o terreno da luta de classes, nos seus últimos anos contribuiu com frequência para a Jacobin, afirmando que havia se tornado “possível falar de novo sobre socialismo”. Reconhecia que os socialistas ainda não tinham todas as respostas, mas eram os que ao menos estavam procurando um caminho: “A sobrevivência futura da maioria da população mundial exige que os excedentes econômicos gerados pela revolução da informação e pela globalização sejam investidos sabiamente na reconstrução de nossos ambientes de vida e na equalização de uma alta qualidade de vida (o que não é o mesmo que consumo desenfreado). Como democratizar o poder econômico? Os socialistas podem ainda não ter encontrado o caminho, mas são os únicos que estão procurando um com urgência.”

Para honrar sua memória, reproduzimos aqui o último capítulo do livro Holocaustos Coloniais, publicado pela editora Veneta. O livro se dedica a entender as devastadoras ondas de fome que afligiram regiões que depois seriam identificadas como parte do “terceiro mundo” durante a era de ouro do capitalismo liberal, no final do século XIX e começo do século XX. O nexo para entender essas massivas catástrofes humanitárias se encontra na interseção entre fenômenos climáticos extremos (como o El Niño) e conflitos sociais marcados pela mundialização dos mercados e a gestão colonial. O último capítulo, publicado na íntegra abaixo, é especificamente dedicado às secas no Brasil e as lutas e sofrimentos das populações trabalhadores empobrecidas do nordeste, passando da ecologia à luta de classes para lançar luz às misérias do sertão. Nossa convocatória não poderia ser outra: leiam Mike Davis!


Definição de “seca”: “um elemento estratégico no processo de acumulação por parte das grandes unidades de produção rural no Nordeste”.
G. Dias

No século XIX, o Brasil – também um subcontinente muito visitado pelo El Niño –  compartilhava duas outras coisas em comum com a Índia da época. Primeiro, embora nominalmente independente, sua economia, sobretudo no Nordeste, era tão dominada por investidores e credores ingleses que se tornou o exemplo clássico de uma “colônia informal” na moderna literatura sobre a dependência econômica. Segundo, o desenvolvimento econômico em escala nacional foi reduzido até estagnar na segunda metade do século XIX, sem nenhum aumento apreciável na renda per capita ou na produtividade.

Enquanto o PIB per capita disparou 600% entre 1800 e 1913 nos Estados Unidos e mesmo 150% no México, o crescimento no Brasil foi zero. Um fabuloso boom do café na região de São Paulo foi contrabalançado pelo retrocesso econômico igualmente espetacular do Nordeste. Uma região outrora central foi transformada em uma periferia famélica. Até a Zona da Mata, o luxuriante litoral do Nordeste, sofreu um drástico declínio em nutrição com a queda de 60% dos salários de 1870 a 1890. Enquanto na Índia, no entanto, a crescente vulnerabilidade à fome veio acompanhada de uma notável modernização infraestrutural no final do século XIX, a história moderna do Sertão é impressionante pela ausência de qualquer papel desenvolvimentista estatal até os anos 1960 e pela ameaça de revolução.

Colonialismo informal e capacidade estatal

A hegemonia comercial e financeira britânica no Brasil tinha raízes antigas na vassalagem de Portugal em relação a Londres durante os séculos XVII e XVIII. Quando a monarquia Bragança foi deslocada, sob “tremenda pressão britânica”, para o Brasil em 1808, a compensação imediata havia sido um tratado comercial que dava aos produtos importados britânicos preferência sobre os produtos importados de Portugal. Então, em 1827, o imperador dom Pedro, em troca do reconhecimento britânico de seu império escravagista, codificou a dependência em um dos mais desiguais acordos comerciais da história: um tratado não recíproco, que limitava a taxação dos produtos importados ingleses a 15% ad valorum, enquanto permitia que os ingleses impusessem uma tarifa de 300% sobre o café brasileiro. O Tratado Comercial, segundo Cain e Hopkins, transformou o Brasil “praticamente em um protetorado britânico”. Embora os Estados Unidos fizessem avanços comerciais substanciais na década de 1850, o boom do algodão na Guerra Civil restabeleceu a preponderância britânica. Na véspera da grande seca, a Inglaterra fornecia 51% das importações do Brasil e consumia 37% de suas exportações.

Porém o nível mais profundo da hegemonia britânica era financeiro. Os déficits comerciais crônicos foram repetidamente financiados por punitivos empréstimos britânicos, cujos juros geravam déficits permanentes no orçamento, que, por sua vez, eram financiados por mais títulos estrangeiros. “Os Rothschild de Londres eram os agentes emissores de títulos exclusivos do império, os principais exportadores e importadores eram todos ingleses, e todas as primeiras ferrovias eram de propriedade britânica ou financiada por eles. O banco inglês London and Brazilian tinha recursos financeiros consideravelmente maiores do que o semioficial Banco do Brasil”. O sistema bancário interno era atrofiado e subdesenvolvido. Até 1888, treze dos vinte estados brasileiros não tinham nenhum banco local, e o capital total do sistema nacional inteiro era de apenas 48 milhões. O banco do Estado em grande medida se limitava ao gerenciamento conservador do fornecimento de dinheiro no interesse de seus credores britânicos.

A formação do capital doméstico, como consequência, foi severamente refreada. “Os bancos estrangeiros eram notórios (…) por sua relutância em fazer empréstimos de longo prazo para agricultura ou projetos locais”[9]. O comércio, por sua vez, era desviado na direção dos intermediários estrangeiros e dos produtos importados britânicos, sobretudo no Nordeste. Na Bahia dos anos 1890, por exemplo, apenas um entre onze exportadores licenciados era baiano; e vinte e quatro das sessenta e quatro empresas de importação eram especializadas em tecidos ingleses importados. O capital estrangeiro, além disso, policiava vigilantemente o crescimento de qualquer indício de indústria competitiva nativa, como a imaginada na utópica Literatura do Norte de Franklin Távora: “Se fossem mobilizados capital e crédito, se a agricultura, se os mercados industrial e artístico fossem postos em ordem, veríamos a cada esquina uma Manchester ou uma Nova York”. Se empresários locais tentavam aumentar a renda por valor agregado montando manufaturas associadas ao algodão, os exportadores retaliavam na hora. Warren Dean cita o revelador exemplo de uma fiação em Alagoas que foi comprada por uma firma inglesa com o único propósito de desmontá-la e jogar as máquinas no rio São Francisco.

Apesar das vastas aspirações de suas elites de modernizar o império tropical, a autonomia desenvolvimentista do Estado brasileiro era assim circunscrita pela dívida externa, pelo sistema bancário primitivo e pela volatilidade de sua renda com exportações. Leff defende que no Brasil, rico em terras, em contraste com a Índia e o Japão, havia “pouca pressão da população sobre as terras”, assim “a renda ricardiana da terra, a base para a taxação da terra, era pequena”. O império, assim como a conservadora república que o sucedeu em 1889, contava com as taxas de exportação para sua arrecadação, mas, “até o final do século XIX, o volume e o crescimento do comércio internacional do Brasil eram pequenos demais para permitir um alto nível de investimento governamental”. Nos anos 1890, à medida que os preços do café congelaram e então caíram, os serviços da dívida dispararam até alcançar metade do orçamento federal. Quando a seca e a fome desolaram novamente o Nordeste, a república foi duramente pressionada a pagar pelas balas que mataram os seguidores do Conselheiro.

A adoção do padrão-ouro internacional nos anos 1870 “automatizou”, por assim dizer, as relações comerciais desiguais do Brasil. Embora o Rio pudesse relutar diante das tentativas britânicas de manobrar sua política externa, Londres conservava no início dos anos 1900 um poder de quase veto sobre os principais fluxos de capital no interior da economia brasileira. Quando alguns brasileiros protestaram contra os termos draconianos do Empréstimo de Financiamento de 1898, que confiscou a totalidade da arrecadação alfandegária para ressarcimento de dívidas, eles foram forçosamente lembrados de que os encouraçados eram o último recurso dos coletores de impostos da City. “Lorde Rothschild, prevendo que a solvência dos recebimentos pudesse enfraquecer, teve a precaução de destacar, de modo não autorizado, mas que soou com autoridade, que a alternativa, o não pagamento, envolveria não apenas ‘a perda completa do crédito do país’ como também poderia ‘afetar enormemente a soberania do Brasil, provocando reclamações que poderiam chegar ao extremo de uma intervenção estrangeira’”.

O colonialismo informal, contudo, não afetou igualmente todas as regiões do Brasil. Se as fazendas açucareiras nordestinas foram o verdadeiro paradigma da dependência do capital britânico, a indústria cafeeira do sul era relativamente mais independente. “O mercado paulista”, destacou Ruthanne Deutsch, “nunca foi esfera exclusiva de influência de um só país ou de uma única combinação financeira”. Ligada ao litoral por ferrovia em 1872, a fértil região de São Paulo fornecia metade do café mundial nos anos 1890. Um pacto informal entre os Partidos Republicanos de São Paulo e de Minas Gerais, após a derrubada do império em 1889, “garantia que esses dois estados controlassem a política econômica do governo central”, suplantando as antigas elites agrárias do Rio, que haviam sido as principais beneficiárias do império. A nova distribuição seria aprimorada, no entanto, por um elaborado sistema de subornos e concessões que reforçava o poder local dos coronéis nos estados menores.

Apesar da retórica nacionalista, a “Revolução de 1889-1891”, como enfatizou Dean, nada fez para lidar com a dependência das exportações ou com o domínio financeiro da City de Londres. Na verdade, com a consolidação do poder paulista, o Brasil se tornou uma monocultura. “É notável que o Brasil, um país de imenso território e diversos recursos, tenha participado do comércio mundial essencialmente como produtor de uma única safra: café”. As ambições desenvolvimentistas da recente república, além do mais, concentravam-se quase totalmente na construção de ferrovias no cerne dinâmico da economia cafeeira. “A integração nacional” significou pouco mais do que paulistas no Congresso eventualmente ajudando outros oligarcas. Diferentemente da Índia vitoriana, com sua impressionante malha ferroviária e de comércio interregional de grãos, o Brasil, até o início do século XX, continuava sendo um “arquipélago” de distintas economias separadas por custos de transporte assustadoramente altos. Na verdade, “os interesses de classe eram tão díspares que suscitavam sérias questões quanto à validade de se utilizar a nação como unidade de análise”.

A ascensão dos estados cafeeiros inevitavelmente acelerou o declínio do litoral açucareiro do norte. Os brasileiros contemporâneos se acostumaram a pensar em seu país como uma “Belíndia: Bélgica no sul, Índia no norte”, mas, como demonstrou Deutsch, “por volta de 1870, a qualidade de vida e o nível de desenvolvimento econômico do Nordeste rivalizavam com os do Sudeste – quando não o ultrapassavam”. Isso se alterou rapidamente, no entanto, quando a renda per capita no norte outrora economicamente dominante caiu 30% (até 1913), de forma sincrônica ao colapso de suas principais exportações. O açúcar e o algodão, que em 1822 abarcavam 49% da renda de exportações do Brasil, contribuíram com meros 3% em 1913, contra os 60% abarcados pelo café. Nesse ínterim, os mercados locais foram suplantados pelos armazéns nos entroncamentos ferroviários e a vida urbana se atrofiou. A rápida urbanização do sudeste a partir de 1880 contrastou com a relativa desurbanização no norte.

A sombria década de 1890, que combinou a seca com a deflação internacional dos preços das commodities e o pânico financeiro nacional, foi particularmente devastadora no Nordeste. Em 1897, por exemplo, o preço de transporte do açúcar excedia o preço de venda oferecido pelos corretores da bolsa, e diversos latifúndios e usinas (refinarias de açúcar) faliram totalmente. (“Só a região do cacau no sul da Bahia escapou do declínio econômico dos anos 1890, sobretudo porque os preços do cacau no mercado mundial subiram nesse período e os produtores conseguiram lucrar com o custo mais baixo da mão de obra devido ao influxo de migrantes retirados do Sertão pela seca”).

Eugenia e involução econômica

Como Leff havia indicado, não é imediatamente óbvio o motivo de o Nordeste no final do século XIX ter passado por um rebaixamento econômico tão extraordinário. Com certeza, outros exportadores de produtos primários tiveram papel na queda dos preços de exportação com sua produtividade mais alta e com o aumento da produção. “Em vista do rápido crescimento da demanda mundial pelo algodão e pelo açúcar no século XIX, o fracasso do Brasil em expandir suas exportações desses produtos de modo muito mais vigoroso parece espantoso.” Sua própria explicação se baseia nas consequências cambiais da posição dominante do café brasileiro no mercado mundial. Sob o sistema do padrão-ouro, os fortes lucros do café levaram a uma apreciação automática do real, que por sua vez elevou os preços do açúcar e do algodão do norte a níveis não competitivos. O maior problema do Nordeste, nessa perspectiva, foi sua integração monetária com o resto do Brasil. “A taxa de câmbio dominada pelo café”, escreveu Leff, “reduziu os fatores de compra e precificou quantidades cada vez maiores de açúcar e algodão do Nordeste fora do mercado mundial”.

O declínio da competitividade das exportações podou brutalmente a folhagem da estrutura de classes do Nordeste. Se sucessivos governos dominados pelos sudestinos saciavam os grandes oligarcas nordestinos com propinas políticas regulares (muitas vezes sob o disfarce de “auxílio contra a seca”), fazendeiros mais modestos eram deixados à mercê das forças do mercado. Em 1875, o controle da produção começou a passar para as mãos dos donos (muitas vezes estrangeiros ou nascidos no estrangeiro) de usinas modernizadas. “A capacidade das usinas de lidar com uma carga maior de cana ensejou uma maior consolidação monopolista dos recursos da terra; na esteira desse processo, pequenos e médios proprietários foram arrancados da terra”. O destino dos ex-escravizados foi inimaginavelmente mais difícil em um sistema econômico que já não exigia a mesma quantidade imensa de força de trabalho. Com a economia do Nordeste entrando em coma, a mão de obra supra-numerária foi empurrada para os “campos negros, secos, da fome” (Távora) do Sertão, ou levada a se arriscar com a doença e a exploração nas florestas de borracha do Amazonas.

O que não aconteceu no último quartel do século XIX foi o que a teoria neo-clássica teria previsto como um reflexo automático: a migração de trabalhadores do norte para os polos de crescimento do sudeste. Em vez disso, desde o final do império, os governos nacional e local começaram a subsidiar pesadamente a imigração em massa da Itália, da Alemanha e de Portugal. Até as elites do Nordeste adotaram fervorosamente a “europeização”. Um exemplo extraordinário foi a Bahia durante a terrível seca e fome dos “Dois Oitos” em 1888-1889. Enquanto as autoridades estatais bloqueavam as estradas pelas quais os retirantes tinham acesso às cidades, internando-os compulsoriamente aos milhares em acampamentos, essas elites deram continuidade a seus esforços para atrair imigrantes europeus com altos subsídios (poucos se deixaram seduzir). Os fazendeiros do café do Sudeste, por sua vez, queriam apenas trabalhadores “brancos” depois da abolição, e logo fariam disso uma política federal na recém-instalada república. (A preferência racial mais tarde seria emendada para incluir japoneses e europeus meridionais.) “Por que os fazendeiros do café no Sudeste se mostraram mais dispostos a financiar a imigração da Europa do que do Nordeste?” Leff acredita que “parte da resposta talvez tenham sido as atitudes raciais predominantes dos fazendeiros do café, que os levaram a preferir trabalhadores europeus a mulatos”, enquanto Deutsch aponta “um viés cultural dos fazendeiros do Sudeste contra trabalhadores brasileiros nativos”.

Ambos minimizam o racismo enquanto política pública. Gerald Greenfield demonstrou como o discurso liberal sobre a seca e o desenvolvimento no final dos anos 1870 girava em torno de percepções urbanas do “mundo escuro, primitivo, do interior” e da “inferioridade do retirante e sua aversão ao trabalho”. “Uma vez que o Brasil no final do século XIX adotou os princípios do positivismo, noções iluministas de progresso e o concomitante racismo científico de pensadores como Buckle e Spencer, os interioranos se tornaram não meras curiosidades de uma era passada, mas empecilhos ao progresso nacional. As instituições da cultura nacional em desenvolvimento, em grande medida baseadas no Rio, com forte influência da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, enfatizavam o grande potencial do país, enquanto lamentavam a inadequação intelectual e moral de boa parte da população do país”. A república brasileira, além do mais, foi provavelmente o primeiro governo a adotar explicitamente a “eugenia positiva” em grande escala. Importantes savants do fin de siècle, como o cientista baiano Nina Rodrigues, corroboraram receios de que a “mistura de raças era responsável por todos os desvios sociais, como a criminalidade, a heresia religiosa e coisas afins”. Enquanto a grande imigração europeia para os Estados Unidos nos anos 1890 foi concebida simplesmente a fim de fornecer combustível humano para a economia, as elites do Brasil também queriam usar a imigração para transformar radicalmente a fisionomia racial do país. Elas eram obcecadas com a “desafricanização” e com o “embranquecimento” do Brasil.

A Guerra de Canudos, como vimos, tornou-se uma macabra alegoria racial, motivada pelo temor da elite diante do pobre nordestino, anteriormente classificado por ela como caboclo: uma casta racial marcada pela mistura de ancestralidades indígenas, portuguesas e africanas. A demonizada figura de Antônio Conselheiro era com frequência invocada para justificar a urgência da europeização. (“Sempre inseguros de que o resto do Brasil sussurrasse que as principais famílias da Bahia haviam se misturado demais com a gente de cor no auge da escravidão, os baianos aproveitaram o conflito como uma forma de demonstrar seu compromisso com o continuado progresso segundo o modelo europeu”). Nesse sentido, a imigração europeia se tornou a alternativa deliberada ao desenvolvimento do Sertão e/ou à permissão de que os pobres nordestinos fossem para o Sudeste.

Como resultado, o racismo científico ajudou a criar a matriz de todos os mercados de trabalhos duais. “A oferta altamente elástica de mão de obra estrangeira significou que a produção poderia se expandir em ritmo acelerado no setor avançado do Brasil sem aumentar os salários dos trabalhadores no resto da economia”. Em 1889, o cônsul britânico em Pernambuco relatou a Londres “que a mão de obra aqui era mais barata do que em qualquer outro lugar do mundo, com exceção da Ásia”. Como no famoso argumento de Celso Furtado, o Nordeste, seguindo o padrão dos booms e colapsos das exportações anteriores na história do Brasil, retrocedeu a um regime de mão de obra super-barata. Como na Índia vitoriana ou na China do final do período Qing, o excesso de força de trabalho criava desestímulos colossais ao investimento de capital no aumento da produtividade (as usinas sendo uma exceção parcial). “Essa ‘involução’ econômica, como Furtado a chamou, era o oposto do desenvolvimento, porque todos e cada um dos booms históricos de exportação até o café (pau-brasil, açúcar, ouro e, contemporânea ao café, a borracha) levaram ao retrocesso, não ao crescimento continuado”.

Declínio ecológico

Desde a emergência das grandes fazendas de gado no final do século XVII, a ecologia e a economia do Sertão repetidamente têm sido remodeladas por secas do El Niño. A “Era do Couro” do século XVIII, quando os fazendeiros fizeram fortunas lendárias vendendo seus bois de chifres longos e a carne do Ceará (carne-seca) para os latifúndios litorâneos do açúcar e para as minas de ouro de Minas Gerais, chegaria ao fim com a terrível seca de 1791-1793, que dizimou os rebanhos semi-selvagens. Alguns grandes fazendeiros se aferraram a seus domínios feudais, enquanto outros se mudaram para o litoral e se tornaram proprietários ausentes, mas a maioria deixou seus rebanhos morrerem à míngua na terra seca e empobrecida. A ecologia do Sertão não era bem adaptada às pressões de muitos ranchos pequenos, marginais. “Na verdade”, Kenneth Webb defendeu, “o Sertão não é muito bom para o gado”, mas foi adaptado a esse uso quando os rebanhos foram obrigados a deixar a Zona da Mata no boom açucareiro. A produtividade do Sertão com sua escassa forragem era notoriamente baixa. “A capacidade da terra era determinada não por quantas cabeças de gado eram mantidas por um hectare da caatinga, mas antes por quantos hectares de terra eram necessários para um boi adulto de corte”. Um rancho típico de 1.000 hectares, por exemplo, podia sustentar apenas 50 bois magros; e mesmo as maiores fazendas (10.000 hectares ou mais) raramente pastoreavam rebanhos maiores do que 1.000.

No início do século XIX, grandes contingentes de produtores de subsistência e agricultores, assim como de escravos fugitivos, sobretudo do agreste de Pernambuco e da Bahia, começaram a se mudar para o Sertão pela primeira vez. “A agricultura exigia pouco ou nenhum investimento”, escreveu Chandler em seu estudo sobre o sertão cearense de Inhamuns, “e, embora fosse até mais suscetível aos efeitos desastrosos da seca do que o gado, a recuperação era muito mais fácil”. O vasto interior nordestino se tornou uma válvula de segurança da fronteira para as contradições sociais da economia escravista litorânea. “O Sertão absorveu o excedente populacional da Zona da Mata nos períodos de estagnação da indústria açucareira e se beneficiou da força de trabalho e das energias daqueles que, por motivos econômicos, psicológicos ou quaisquer outros, não puderam se integrar na famosa cultura da casa-grande e da senzala”. Entre 1822 e 1850, o império oficialmente apoiou essa imigração ao reconhecer reivindicações dos latifundiários sobre terras anteriormente pertencentes aos povos originários do Sertão, que rapidamente estavam desaparecendo.

Como o maior especialista do século XX em agricultura no Nordeste, José Guimarães Duque, enfatizou, na maioria os novos colonos traziam técnicas de trabalho intensivo e de plantio em latitudes médias inadequadas ao clima tropical seco e aos solos inférteis do Sertão. Essa região de 650.000 quilômetros quadrados – Euclides da Cunha especificamente intitulou seu famoso livro de Os Sertões em vez de O Sertão – abarca uma espantosa variedade de paisagens e climas específicos. Mas apenas as terras baixas e férteis ao longo dos rios correspondiam à experiência dos imigrantes, e elas eram monopolizadas pelas fazendas de gado, com suas lavouras e seus fiéis meeiros. Desse modo, os recém-chegados se mudaram para as serras úmidas. Esses solos acidentados deram boas safras por um ou dois anos, mas rapidamente perderam a fertilidade. Após trágicas tentativas e erros, eles acabaram se adaptando a um estilo seminômade de agricultura de queimada: dois anos de cultivo seguidos por oito anos de pousio e pastagem. Mas a pressão populacional acabaria forçando milhares deles para o Sertão e para a caatinga – caracterizada por solos rasos e rochosos e cactáceas com espinhos –, onde o regime de propriedade não estava estabelecido ou onde ficavam à mercê dos grandes fazendeiros, cujos capangas podiam expulsá-los à vontade.

Após o fim da ocupação ilegal em 1850178, na maioria os novos imigrantes para o Sertão simplesmente se tornaram parceiros (meeiros) da fazenda. Embora o interior ainda fosse popularmente identificado com a pitoresca figura do vaqueiro, livre e montado, a grande maioria da população em meados do século era de agricultores de subsistência, parceiros ou agregados (diaristas). “Em meados do século XIX”, calculou Levine, “com certeza menos de 5% e provavelmente menos de 1% da população rural era proprietária de terra”. Esses sertanejos pobres, diferentemente dos escravos da Zona da Mata, eram nominalmente homens livres, mas o acesso à terra e à água era tão frágil quanto a vida de um trabalhador confrontado por capangas de um latifundiário contrariado. O fazendeiro mais poderoso de cada município rural em geral detinha a patente de “coronel” da antiga Guarda Nacional do Império, e o sistema de votação controlado por esses chefes e pela violência da elite, que se originou nos latifúndios açucareiros do litoral e então se espalhou para as fazendas, tornou-se conhecido como coronelismo. Este seria o “parceiro essencial da economia exploradora, permitindo que os donos das terras extraíssem o máximo possível de excedentes de sua força de trabalho forçando a submissão e esmagando qualquer resistência ou tentativa de desafiar seu monopólio sobre a terra”. Como enfatizou Hamilton de Mattos Monteiro, altos níveis de violência rotineira – fosse entre invasores e fazendeiros ou entre parentelas rivais da elite – organizaram e direcionaram as relações de produção no Sertão.

A lenta deterioração da paisagem sob a pressão do sobrepastoreio – visível desde final do século XVIII – foi acelerada pela agricultura de queimadas dos camponeses pobres, que cultivavam milho, feijão e mandioca. “Especialmente na caatinga, são comuns formações rochosas impermeáveis, cristalinas, que constituem aclives na direção dos rios, facilitando o escoamento rápido, a erosão do solo, o assoreamento dos rios e a evaporação”. A pobreza se tornou sinônimo da falta tanto de água quanto de escritura de propriedade da terra. Poucas grandes fazendas, centros duradouros do poder oligárquico, monopolizavam as fontes perenes de água, o que as deixavam protegidas das secas, mas o resto da população do semiárido dependia penosamente de chuvas erráticas. Todo ano o sertanejo fazia uma aposta desesperada com o diabo que conhecemos como El Niño.

A vida dos habitantes do Sertão estava inevitavelmente associada às flutuações das estações, mas nenhum deles de maneira tão íntima – e, portanto, tão vulnerável – quanto o pequeno agricultor de subsistência. Em novembro e dezembro, ele queimaria os talos secos remanescentes da estação anterior, preparando-se para plantar o feijão, o milho e a mandioca nas cinzas da safra passada; se a terra tivesse dado uma safra ruim no ano anterior, ele podia se mudar para um novo local. Quando as primeiras chuvas chegavam, geralmente em janeiro, ele plantaria suas sementes e ficaria na expectativa de sua continuidade.

Nas estações relativamente pouco chuvosas, aqueles que conseguiam plantar nos baixios se saíam melhor do que os que plantavam em terrenos mais altos, mas, quando chovia muito na cabeceira do rio, corriam o risco de perder a safra com súbitas inundações que podiam descer varrendo os leitos dos córregos sem avisar. Se essas chuvas pesadas ocorriam antes que as sementes tivessem se firmado, elas seriam levadas pela água; frequentemente, as plantas brotavam e secavam quando a chuva parava. Nesses casos, o agricultor as plantaria de novo, e, se necessário, uma terceira e uma quarta vez. Demonstrando espantosas tenacidade e paciência, ele plantaria outra vez e mais outra, reservando apenas um estoque mínimo de sementes para se alimentar até a colheita.

De quando em quando, a chuva simplesmente não vinha, ou demorava tanto que tornava impossível uma safra bem-sucedida. Só então o obstinado agricultor sertanejo deixa sua casa e se muda para as serras onde há mais água, ou para o litoral, ou, como último recurso, para as vilas e cidades como “muitas formigas errantes atrás de comida onde quer que a encontrem, cruzando e recruzando estradas e ali encontrando outros em situação similar”. Nas vilas, eles procuram trabalho, e, não encontrando, abrem mão do orgulho e mendigam, mas só até o momento em que puderem voltar em segurança a seus pedaços de terra. [Roger Cunniff, em “The Great Drought: Northeast Brazil, 1877-1880”]

A seca e a fome de 1825, que matou 30.000 só no Ceará, expusera a plena precariedade ecológica da economia híbrida de gado e agricultura de subsistência na ausência de sistemas de armazenamento de água e de irrigação. Ela causou, segundo Cunniff, “uma mortalidade tão disseminada e um deslocamento humano tão grande (…) que alterou radicalmente os padrões econômicos e de ocupação da região”. Na verdade, ela revelou que os recursos biológicos do Sertão estavam sendo perigosamente minados. “O gado foi levado a pastar além das áreas de pastagem naturais, em terras anteriormente evitadas, áridas, e entre as árvores nas serras, onde entraram em conflito com a agricultura das encostas que também se expandia de modo similar.” O que o boi nos rebanhos enormes não comia era rapidamente arrancado para fazer lenha ou forragem pelos colonos. A rede infinita de caminhos do gado sulcados no solo estéril e friável acelerou a erosão. No padrão clássico, quando as encostas esparsamente cobertas de árvores foram denudadas, o escoamento superficial aumentou, enquanto os lençóis freáticos e as fontes se rebaixaram. Ficou evidente para os próprios sertanejos, bem como para eventuais visitantes estrangeiros, que estavam desertificando partes do Sertão e provavelmente também alterando seu clima. Houve quem sonhasse com uma vasta rede de irrigação de poços, diques e reservatórios, enquanto outros projetavam o reflorestamento “como o caminho de volta para o mítico Sertão outrora verdejante”.

Mas não houve nenhuma fonte de investimento para estabilizar ou reverter o declínio ecológico do Sertão. A atrasada indústria pecuária, pouco alterada desde o século XVII, apoiava o autocrático poder local dos coronéis, mas não conseguiu gerar um acúmulo de excedentes para obras de irrigação, se é que esse pendor para realizar melhorias existia entre os oligarcas do Sertão. Mesmo nas grandes fazendas, a engenharia hidráulica consistia apenas em poços rasos (cacimbas) em leitos de córregos que eram cavados à mão todo mês de maio, quando a água da superfície secava. Os poucos reservatórios pequenos efetivamente construídos no século XIX eram tão raros que se tornaram objetos de reverência dos moradores.

Como discutimos anteriormente, a capacidade de uma instância governamental de patrocinar obras de irrigação era limitada pelo que se poderia chamar de “periferização tripla”: o subdesenvolvimento do sistema financeiro brasileiro diante do capital inglês; o declínio econômico e da posição política do Nordeste em relação a São Paulo; e a marginalidade do Sertão na política estatal em comparação com as elites latifundiárias do litoral. Os políticos propunham incessantemente planos de irrigação, mas nenhum deles foi realizado. Ironicamente, a impotência estatal para desenvolver o Sertão foi invertida pela elite litorânea na caricatura racista do sertanejo como um indolente, um atrasado.

O boom do algodão

A crise socioecológica no Sertão esteve temporariamente oculta dos olhos do público (como na Índia e no Egito) pelo boom do algodão que acompanhou a Guerra Civil nos Estados Unidos. O abandono do debate sobre a irrigação, como destacou Cunniff, teve em última instância consequências fatais: “Ironicamente, o período mais próspero da história do Sertão iria acentuar os erros e dar continuidade às tendências dos anos anteriores; a relativa afluência dos anos 1860 foi em grande medida responsável pelos horrores dos anos 1870”. Uma variedade resistente à seca de algodoeiro arbóreo foi introduzida no Sertão e as exportações para tecelagens inglesas do porto de Recife aumentaram de 165.265 quilos em 1845 para quase 8 milhões de quilos em 1871. Os preços quase dobraram de 885 réis em 1861 para 1.600 réis em 1863, e “o boom do algodão em seu zênite alcançou praticamente todos os cantos do Sertão”. A miragem de prosperidade foi reforçada pela notável ausência de seca entre 1845 e 1869.

Mas os preços altos do algodão foram apenas um ímã que atraiu ainda mais “agricultores de subsistência sem terra e sem rumo” para os Sertões. A força de trabalho necessária durante o breve ciclo vegetativo do algodão não compensava o custo de subsistência anual dos escravos, de modo que o algodão em geral era cultivado por mão de obra livre. “Embora seja evidente que alguns grandes proprietários passaram a produzir algodão, esta foi essencialmente uma cultura dos pobres, que não tinham nenhum investimento agrícola prévio que impedisse o mergulho em seu cultivo.” Quando os trabalhadores abandonaram os latifúndios de Pernambuco para plantar algodão na fronteira do Ceará, no vale do Cariri, os barões do açúcar se queixaram amargamente da crescente escassez de mão de obra. Em 1876, o extrato mais pobre da ordem social do Sertão, os agregados sem terra, compreendia 40% da população do Ceará (epicentro da seca de 1877).

Embora devesse ser evidente que, depois de Appomattox, o algodão de alta qualidade dos EUA logo inundaria o mercado mundial, a Associação de Fornecedores de Algodão de Manchester, cujo principal interesse era um mercado comprador sempre superabastecido de algodão cru, pressionou ferozmente os brasileiros a ampliar ainda mais a área de cultivo. Em pouco tempo, contudo, a volta do algodão sulista – de fibra curta – rebaixou o preço das variedades que Manchester já havia promovido com tanto zelo no Egito, na Índia e no Brasil. Os sertanejos desesperados tentaram compensar produzindo ainda mais algodão. Todavia, quando os algodoais floresciam nos cantos mais remotos do sertão, os produtores se viram diante de um dilema entre a queda dos preços no mercado mundial e os altos e rígidos custos de transporte até os portos mais próximos. Diferentemente da Índia, o Nordeste não tinha uma infraestrutura ferroviária, e diferentemente da China, que também sofria de gargalos logísticos, faltava-lhe um grande mercado interno para estimular manufaturas de valor agregado. A única esperança de salvar a indústria do algodão no Sertão seria um programa intensivo de construção de ferrovias e rodovias no interior. Como explicou Cunniff, o governo imperial considerou no final dos anos 1860 um plano para construir uma ferrovia de Fortaleza, capital do Ceará, até o grande centro algodoeiro de Uruburetama, mas o projeto foi abandonado em 1868, com apenas alguns quilômetros de trilhos instalados. Como no caso da irrigação, não havia nem capacidade estatal, nem óbvios interesses estrangeiros em assumir o desafio de desenvolver o Sertão.

Em 1869, quando uma nova seca devastou as safras de subsistência em muitas partes do interior, os mesmos compradores ingleses de algodão que haviam orquestrado o boom na década anterior rejeitariam o algodão do Nordeste, “inferior”, “mal processado”. Os sertanejos – outra vez párias – não tinham a quem recorrer. “De agricultores e criadores de gado de subsistência, um grande contingente de sertanejos se transformou em agricultores comerciais e lavradores marginais, existindo em situação econômica extremamente precária, mais vulneráveis do que nunca às crises súbitas pelo fato de seus vínculos tradicionais com os grandes proprietários terem sido em grande medida enfraquecidos ou rompidos” [Cunniff]. Como no norte da China, a comercialização da agricultura no Sertão teve menos relação com sementes de um capitalismo rural do que com o aumento da marginalidade social e ecológica.

Para piorar as coisas, a expansão do cultivo do algodão nos anos 1860 havia sido acompanhada pela expansão dos rebanhos: de 1,2 milhão de cabeças no Ceará em 1860 para 2 milhões de cabeças em 1876. Como os plantadores de algodão pauperizados, os fazendeiros haviam aumentado descontroladamente o tamanho de seus rebanhos, apesar da legislação que tentava estabilizar a proporção terra/gado para compensar a queda dos preços da carne e do couro. A degradação e a erosão do solo foram aceleradas. Além disso, a pressão combinada do algodão e do gado sobre o solo deixaria menos espaço para as tradicionais culturas de subsistência, e Cunniff encontrou indicadores de que o Nordeste “estava entrando em um período de fome mesmo antes que a grade seca devastasse a região”. As evidências epidemiológicas incluem o aparecimento do beribéri no Ceará e na Paraíba em 1872 – atribuído à dependência cada vez maior dos sertanejos de arroz barato e mal processado importado da Índia –, assim como surtos de varíola, cólera e febre amarela.

As ondas de choque internacionais resultantes do colapso do boom das ferrovias estadunidenses, que inauguraram a depressão de 1873-1879, alcançaram o Sertão em 1874. “A mais drástica deflação nos registros da humanidade” rebaixou ainda mais os preços das exportações agrícolas que então eram a subsistência vacilante de agregados e fazendeiros. O lento gotejamento de crédito doméstico, inadequado mesmo em tempos de boom, secou completamente. “No final do ano, a maioria dos bancos no Nordeste suspendeu os empréstimos. Em 1875, o Banco Mauá pediu moratória, enquanto o Banco Nacional interrompeu pagamentos e o diretor do Banco Alemão cometeu suicídio. Não foi possível controlar o pânico que se instalou a seguir” [Hamilton de Mattos Monteiro, “Crise agrária e luta de classes: o Nordeste brasileiro entre 1850 e 1889”].

Os governos estaduais, nesse ínterim, lutavam com dívidas públicas que eles já não conseguiam mais financiar. À beira do colapso, diversos estados, liderados por Pernambuco, impuseram taxações onerosas sobre os alimentos vendidos nas feiras regionais. Essa malfadada legislação infelizmente coincidiu com esforços simultâneos do governo imperial para introduzir o sistema métrico e reforçar o alistamento militar (uma medida que foi amplamente temida como uma tentativa de “escravizar” homens livres). A explosão resultante ficou conhecida como a revolta do Quebra-Quilos. Por todo o Agreste e em regiões do sertão da Paraíba, de Pernambuco, Rio Grande do Norte e Alagoas, multidões armadas sistematicamente destruíram pesos e medidas decimais e queimaram registros fiscais. A revolta foi finalmente esmagada por tropas imperiais, forçando muitos sertanejos rebeldes a fugir para as serras, onde se tornaram cangaceiros, atacando fazendas e vilas. Assim, na véspera da grande seca, o governo local do Nordeste estava falido, a desnutrição e o beribéri estavam disseminados, revoltas haviam explodido em algumas vilas, os pobres estavam pilhando fazendas e o banditismo era o único setor crescente da economia.

A farsa da irrigação

Os grandes proprietários do norte, é desnecessário dizer, receberam bem a emergência desse exército de reserva sem se dar conta de que eles estavam, na verdade, abraçando o próprio subdesenvolvimento. A bem dizer, como vimos, eles protestavam violentamente contra tudo – como a cidade santa e autárquica de Canudos, do Conselheiro – que parecesse ameaçar a abundância de mão de obra. Em outros lugares, tal superabundância da miséria poderia ter produzido uma revolução social, mas o litoral nordestino tinha a vastidão do Sertão como válvula de segurança social. Na prática, dos anos 1870 em diante, o Nordeste foi efetivamente capitalizado sobre os fluxos de mão de obra entre o interior e o litoral. Acumulações potencialmente explosivas de trabalhadores pobres e desempregados no litoral foram deslocadas para a economia de subsistência do Sertão e depois periodicamente regurgitadas na direção da costa pela seca. O Sertão, de fato, fornecia bem-estar para os pobres, enquanto a seca garantia que os trabalhadores desesperados sempre estariam disponíveis por salários reduzidos no litoral. Mesmo no sertão do Ceará, praticamente despovoado pelas grandes secas dos anos 1870 e 1890, os oligarcas locais, como vimos, conseguiriam obter lucros como contratadores de mão de obra para o Pará e para o Amazonas.

Assim, embora os coronéis tivessem o mais ávido interesse no “auxílio à seca” (que eles em grande medida interceptavam), eles tinham pouca disposição para qualquer desenvolvimento real ou para a estabilização ecológica do Sertão. A mobilização nacional das massas para a destruição de Canudos contrastava com a flagrante apatia oficial diante do destino dos sertanejos em quatro secas de El Niño sucessivas entre 1888 e 1902. Sintomaticamente, o grande debate dos anos 1890 não foi como deter o declínio do Nordeste, mas entre paulistas que queriam mais gastos estatais no Sudeste e a oposição, que queria estimular o crédito internacional do Brasil depois que o real perdeu metade de seu valor para a inflação galopante entre 1892 e 1897. Os Rothschild salvaram o governo em 1898 com um empréstimo de 10 milhões de libras esterlinas, em troca de um acréscimo nas tarifas de importação e um orçamento deflacionário que não deixava nem trocados para obras públicas.

As hegemonias econômica e política, respectivamente, dos ingleses e dos paulistas, somadas ao reforço do investimento dos oligarcas nordestinos em seu próprio subdesenvolvimento, explica boa parte do contexto estrutural da farsa secular da “irrigação do Sertão”. No rastro de sucessivos El Niños, as comissões nacionais e os especialistas internacionais em irrigação elaboraram planos arrebatadores, porém jamais implementados, de estabilização da ocupação agrícola e humana no Sertão. Os poucos projetos hidráulicos efetivamente construídos, a começar pelo açude de Quixadá no Ceará em 1899, “armazenaram águas que beneficiavam grandes latifundiários e protegeram seu gado fornecendo pastos e bebedouros, mas (…) deixaram de fora a maior parte das populações rurais de baixa renda” [Anthony Hall, “Drought and Irrigation in North-East Brazil”]. Apenas 500 hectares do Sertão haviam sido efetivamente irrigados em 1941, e vinte e sete anos mais tarde, quando uma ditadura militar, preocupada com possíveis focos guevaristas no Nordeste, contratou consultores israelenses para conduzir o primeiro projeto abrangente de irrigação, as condições de vida de milhões de sertanejos miseráveis atingidos pela seca eram pouco diferentes dos tempos em que o Conselheiro e o Padre Cícero pregaram pela primeira vez o Apocalipse nos sertões do Ceará.

Sobre os autores

Autor de vários livros, entre eles Planeta favela e Cidade de quartzo (Boitempo).

Cierre

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Published in América do Sul, Análise, Ecologia and Livros

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