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Em um momento cultural em que o esquálido sentimento de “devore os ricos” enverniza qualquer aspecto que queira ser visto como progressista, The White Lotus é uma das raras produções que verdadeiramente merece aplausos. (HBO)

A 2º temporada de The White Lotus também acerta na sutil análise de classe

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Tradução
Natanael Alencar

A segunda temporada de The White Lotus, a sátira propulsiva da HBO, tem mais questões sexuais do que qualquer outra coisa. Mas não perde de vista a crítica de classe afiada que também animou a primeira temporada.

Essa resenha contém spoilers


Domingo passado, no último episódio de The White Lotus, Mike White, o criador da série, provou duas coisas: primeiro, que existe uma satisfação quase animal em assistir Jennifer Coolidge brandindo uma arma; segundo, que ele permanece sendo um dos satíricos mais afiados da televisão norte-americana.

Em um momento cultural em que o esquálido sentimento de “devore os ricos” enverniza qualquer aspecto que queira ser visto como progressista, muito devido à influência do vencedor do Oscar de Melhor Filme de 2020, Parasita, The White Lotus é uma das raras produções que verdadeiramente merece aplausos. Em sua primeira temporada, a série antológica da HBO usou um pincel fino para pintar em detalhes as férias de hóspedes da elite, mais do que simplesmente retratá-los como caricaturas desprezíveis tão grotescas ao ponto que nenhuma pessoa razoável conseguisse enxergá-los como uma analogia — portanto, sendo muito mais contundente do que sátiras mais amenas e embotadas também lançadas esse ano como Triangle of Sadness.

Na superfície, a segunda temporada foge do foco na classe e mira diretamente no sexo. Sim, os hóspedes no resort de luxo homônimo — desta vez localizado na costa da Sicília ao invés das ilhas do Havaí — ainda são ricos, mas, de partida, White enfatiza menos a divisão entre eles e os funcionários do hotel que trabalham para mantê-los confortáveis. No lugar disso, ele cutuca suas ansiedades carnais e indecências. Há um trio de avô-filho-neto, cada um deles com uma esposa com problemas geracionais específicos; a avoada Tanya (Jennifer Coolidge), da primeira temporada, que está preocupada se seu marido está tendo um caso; e um grupo de sarados e bronzeados millenials (interpretados por Will Sharpe, Aubrey Plaza, Theo James, and Meghann Fahey) que exalam uma alta carga de tensão sexual desde o primeiro momento em que eles aparecem. 

Logo no comçeo, um funcionário do White Lotus explica a lenda siciliana das testa di moro, a qual alude os vários bustos de porcelana espalhados pelo resort: no século XII, um rapaz de pele escura seduz uma jovem de pele clara durante uma visita à vila dela, revelando em seguida que possui uma esposa e uma criança em sua terra natal. Em resposta, ela corta a cabeça dele e a transforma em uma cesto de plantas. É ao mesmo tempo um prenúncio irônico — a série é um mistério de assassinato, logo sabemos que alguém vai morrer — e um despiste. As transgressões sexuais de fato se amontoam no fim da série, mas poucos são tão prontamente punidos por seus pecados quanto aquele mulherengo de séculos atrás.

No lugar disso, a lenda borbulha ao fundo, e White a tensiona com uma aguda análise de classe que atravessa os enlaces eróticos da temporada. Se ele está menos interessado em ridicularizar os turistas de elite por sua fútil busca pelo paraíso como ele fez na temporada passada, ele não está menos sintonizado com os ritmos corrosivos de sua excessiva riqueza. Dessa vez, contudo, ele examina a interseção entre sexo e dinheiro, mostrando como a fortuna pode amortecer as consequências de descuidos sexuais.

Brincando com fogo?

O exemplo mais rico está no quarteto central da temporada, cuja dinâmica traz à mente um trecho sobre “a questão sexual” presente no ensaio Americanismo e Fordismo, de 1934, do comunista italiano Antonio Gramsci. “O novo tipo de homem almejado pela racionalização da produção e do trabalho não pode se desenvolver”, escreve Gramsci, “até que o instinto sexual tenha sido ajustadamente regulado e até que ele também tenha sido racionalizado”.

Ethan (Sharpe) e sua nova esposa Harper (Plaza) chegam na Sicília com o colega de universidade de Ethan, Cameron (James), um capitalista “faria limer” com um sorriso ofídico e sua esposa Daphne (Fahey). Cameron e Daphne perambulam por resorts de luxo há anos, ao passo que Ethan e Harper estão dando passos nada confortáveis nesse seleto clube após um recente ganho obtido inesperadamente pela aquisição da empresa de Ethan. O casal mais abastado parece viver em uma eterna lua de mel; Ethan e Harper não fazem sexo há meses.

Lentamente, é revelado que Cameron e Daphne chegaram a um (possivelmente tácito) acordo matrimonial que desmente a alegria deles. “Você tem que fazer o que for preciso para não se sentir vítima da vida”, diz Daphne para Harper em certa altura, insinuando sem sutileza como ela lida com a flagrante infidelidade do marido. Há uma dureza no que ela diz e algo de um cuidado filial. “Esse é o novo mundo que você está entrando”, ela parece estar dizendo. “Segure firme”.

Quando Harper entende o acordo pela primeira vez, ela se coloca num degrau superior: “Eu te disse que eles eram miseráveis”, ela se vangloria para Ethan, satisfazendo-se com a sua dinâmica assexuada, porém ultracomunicativa. Alguns dias depois, no entanto, quando bêbada, trai Ethan com Cameron, incapaz de seguir estrangulando sua libido neglicendiada. Como reação, fica implícito, Ethan devolve o favor com Daphne.

O casal mais manso parece em estado de choque com todas as provações até que Cameron e Daphne os avistam em um jantar na noite seguinte e saúdam-lhes com um brinde amigável “à amizade”, desconhecendo totalmente a troca de parceiros. Ethan e Harper retornam ao quarto e fazem sexo pela primeira vez em toda a temporada — tão apaixonadamente ao ponto de derrubar e quebrar um busto testa di moro no cômodo. Quando os vemos novamente, estão rindo e de braços dados no aeroporto, esperando o vôo de volta para os Estados Unidos. A transformação é clara: eles se acomodaram no mesmo escalão que Cameron e Daphne e aclimataram-se aos jogos sexuais requeridos para mantê-los nele. Impulsos? Regulados e racionalizados. 

Nem todo mundo, porém, tem a mesma sorte de tratar o sexo como um jogo e sair ileso. É o caso de Portia (Haley Lu Richardson), a assistente super-explorada e infeliz da quase-bilionária Tanya, interpretada por Jennifer Coolidge. Entristecida por sua vida digitalmente mediada, típica de um millennial tardio, Portia atira-se em um caso com uma tatuada máquina de sexo de Essex (Leo Woodall) assim que a oportunidade surge. O que começa como um safado-mas-inofensivo namorico com um bad boy degringola quando Portia descobre que seu amante e o suposto tio dele se pegam — e não apenas, pois além de garoto de aluguel ele é também seu capanga. Ao revelar que sabe a verdade sobre o pacto deles, Portia quase é assassinada.

Compare isso com a interação entre Lucia (Sabrina Tabasco), uma trabalhadora do sexo local, e Albie (Adam DiMarco), um recém graduado de Standford visitando o resort com seus abastados pai (Michael Imperioli) e avô (F. Murray Abraham). Albie inicia um relacionamento com Lucia, que o dissuade a pensar que ela é uma donzela em dívida, ameaçada por um perigoso cafetão. Determinado a ser um “bom homem” e libertar Lucia, Albie pede 50 mil euros ao seu pai, os quais Lucia recebe e foge, deixando Albie pelado e sozinho na cama. Ele fica momentaneamente desalentado, mas (como ele relata ao pai) uma salário que transformará a vida de Lucia dificilmente será o motivo da ruína da sua própria família.  

Então ele dá de ombros e vai em busca de Portia no aeroporto, que está mal disfarçada com óculos escuros e um lenço na cabeça enquanto corre para salvar sua vida. Ambos, ele e ela, brincaram com fogo, e ambos se queimaram, mas apenas ela — sem o impulso financeiro que só herdeiros possuem — está em reais e sérios em apuros. 

Mitos como o de testa di moro são poderosos, é o que White parece dizer, e o dinheiro pode neutralizá-los. Tanya, a única personagem rica a sofrer consequências de grandes proporções em toda a temporada, chega a essa conclusão por sua próprias mãos. Na melhor e mais amarga piada da temporada, ela miraculosamente descobre uma conspiração para assassiná-la e tomar sua fortuna, abate os homens que estão prestes a executar o plano e então acidentalmente escorrega para a morte quando já estava salva.

É um final perfeito para uma temporada que teve milhões de espectadores especulando de quem seriam os cadáveres encontrados na praia no primeiro episódio. Seriam os de Harper e Cameron como uma punição pela traição? Albie, morto pelo cafetão de Lucia? Nenhum deles. A única coisa que pode tirar a cabeça de um turista das nuvens de sua fuga de luxo, diz White, são eles mesmos.

Sobre os autores

é um escritor e editor baseado no Brooklyn, Nova York.

Cierre

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Published in Cultura, Europa, Filme e TV and Resenha

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