No seu primeiro discurso após ser declarado presidente eleito, Lula fez questão de destacar a pauta ambiental e prometeu lutar pelo “desmatamento zero” na Amazônia, ressaltando que durante o seu governo o desmatamento havia sido reduzido em 80%. O governo Lula demonstrou de fato que é possível diminuir a pobreza, criar empregos e preservar o meio ambiente ao mesmo tempo. As raízes desse sucesso, no entanto, vem de longe – devem muito à luta dos trabalhadores extrativistas da Amazônia e à organização combativa dos povos da floresta. Entre as lideranças de base que estiveram na vanguarda em articular luta de classes com consciência ambiental uma se destaca: Chico Mendes.
Durante a participação no podcast do Flow, Lula menciona sua ida ao velório de Chico Mendes em dezembro de 1988, em Xapuri, Acre. Lula era então deputado constituinte e relatou o esforço feito pelo partido de alugar um pequeno avião para chegar a tempo no velório. Chico Mendes era, de fato, uma figura única: um socialista convicto, inspirado pela revolução sandinista, que articulou a luta dos trabalhadores extrativistas da floresta com a luta indígena e se tornou um mártir na defesa da Amazônia. Foi assim um dos precursores da convergência entre luta socialista e ecologia. Um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), foi membro do primeiro diretório nacional do partido e concorreu pela legenda a deputado estadual em 1982 e 1986, e a prefeito de Xapuri em 1985. Chico Mendes se via antes de tudo como um sindicalista, e era dirigente nacional da CUT quando foi assassinado.
No terceiro congresso da Central, o Concut de 1988, apresentou a tese “Em defesa dos povos da floresta”, que foi aprovada. Jair Meneguelli, presidente da Central à época, lembra que “a luta do companheiro Chico Mendes era singular porque vinculava a questão da ecologia com o movimento sindical”. Como disse Lula no discurso no velório, Chico Mendes conseguiu “juntar a bandeira do direito ao trabalho, do direito à vida dos trabalhadores com uma luta pela defesa do meio ambiente”. Ao conectar tão profundamente a luta de classes com a questão ecológica, Chico Mendes nos mostra o caminho de como formular uma das necessidades mais urgentes do nosso tempo: um programa ambiental da classe trabalhadora. Não por acaso, sua memória e legado são tão atacados pelo bolsonarismo. Reproduzimos abaixo o histórico discurso de Lula no velório de seu amigo e camarada Chico Mendes.
O Chico termina uma entrevista que ele deu ao Jornal do Brasil dizendo o seguinte: “eu quero ficar vivo para ajudar a salvar a Amazônia, eu não quero morrer, porque esse negócio de ato público depois da morte, esse negócio de grandes enterros acaba no dia seguinte”.
Esse era o pensamento do velho Chico, há tempos, pois ele participou junto comigo do ato de solidariedade ao companheiro Wilson Pinheiro, morto em Brasiléia dentro do sindicato em 21 de julho de 1980, e falou isso.
Chico conseguiu juntar a bandeira do direito ao trabalho, do direito à vida dos trabalhadores desse estado e dessa região com uma luta pela defesa do meio ambiente. Por quê? Porque preservar o meio ambiente para os trabalhadores que moram na região amazônica, preservar as árvores, preservar as castanheiras, preservar as seringueiras é, na verdade, preservar o direito do feijão e do arroz de cada criança dessa região. Porque o gado traz riqueza pro dono do gado, mas não traz sequer carne para os companheiros que trabalham aqui. E o que o companheiro Chico queria?
Ele queria pura e simplesmente que deixassem a mata, que era instrumento de sobrevivência de milhares e milhares de trabalhadores, em paz. Que fossem plantar noutro lugar, criar gado noutro lugar, mas deixassem aqui a mata, as seringueiras, as castanheiras, pros trabalhadores sobreviverem.
Hoje no Globo, o doutor Romeu Tuma, a quem o Chico enviou várias cartas, dizia o quê? Que a culpa do que está acontecendo aqui é da Polícia Militar, mas nós precisamos dizer que a culpa não é apenas da Polícia Militar, a culpa é de todos eles juntos: é da polícia federal, é da polícia militar, da justiça brasileira, da Presidência da República. Porque, quando eles inventam que vêm aqui desarmar o povo aqui, quem que eles desarmam? Eles pegam a espingardinha de caçar preá do trabalhador e deixam os fazendeiros com metralhadoras, calibre 12 e escopeta.
[…]
O companheiro Chico não ganhou as eleições [foi candidato a deputado estadual em 1982 e a prefeito de Xapuri em 1985]. Alguns imaginavam que a partir daí o Chico fosse desanimar. Qual não foi a surpresa deles quando ao invés dele desanimar a luta do companheiro Chico ganhou outra dimensão. O companheiro Chico começou a ser reconhecido por organismos internacionais, pelo Banco Mundial, pelo BID, pelo movimento ecológico do mundo inteiro, começou a ser reconhecido, a ganhar prêmio, a viajar e a contar no mundo o que acontecia aqui. E começou inclusive a dar palpite, opinião sobre empréstimos que empresas estrangeiras ou bancos estatais iam fazer aqui. E por isso aumentou o ódio dos grandes proprietários contra o companheiro Chico. Aumentou o ódio a ponto de culminar com a morte dele no dia 22.
O que essas pessoas imaginam? Será que essas pessoas são tão burras que imaginam que matando Chico Mendes mataram a luta de Chico Mendes? Será que eles não percebem… será que esses ricos não têm exemplo na história? Será que eles não percebem que esses mesmos grupos de ricos mandaram matar Jesus Cristos há dois mil anos atrás? E o povo não esqueceu as ideias de Jesus Cristo.
Será que esses mesmos não estão lembrados que foram eles que mandaram matar Tiradentes, esquartejar e colocar sua carne pendurada nos postes, para que o povo nunca mais se lembrasse quem era Tiradentes? 30 anos depois o Brasil conquistou a sua independência.
Eu queria dizer pra vocês uma coisa bem simples, pra cada um de vocês guardar na cabeça. Vocês conheciam bem o caboclo Chico. Vocês sabiam bem o que Chico queria. Vocês sabiam o que Chico dizia. Vocês sabiam o que o Chico pensava. Pois bem, o que o companheiro Chico, que deve estar no céu nesse instante, espera de cada um?
Ele espera que aumente a coragem e a disposição de luta de cada companheiro.
Ele dizia sempre: no dia em que eu morrer meus companheiros vão se dobrar, cada um vai valer por 10 e a luta vai continuar. E é isso que tem que acontecer! Porque se agora houver por parte dos trabalhadores e de todos nós, medo e preocupação, o que vai acontecer? Eles vão ficar rindo da vida e vão matar mais.
O que nós devemos esperar? Em primeiro lugar, nós achamos que o povo brasileiro a única que quer é justiça. Que a polícia prenda esses assassinos do companheiro Chico. Mas muito mais do que isso, está na hora da gente provar – e aqui nós vamos ter que tentar fazer um movimento com os partidos políticos e com o movimento sindical: se é verdade que esses dois sujeitos tinham 30 mil hectares aqui, se é verdade que eles eram bandidos em Minas e no Paraná (e já vieram fugidos), se é verdade que aqui eles ficaram contratando grileiros e já mataram mais de um trabalhador, e se é verdade que essa propriedade deles pode até ser grilada… O que deveria acontecer como atitude nobre do governo? O governo deveria desapropriar essa terra e dar para os trabalhadores rurais cultivarem essa terra, ao invés de deixar essa terra ficar nas mãos de bandidos e grileiros. Porque se o governo fizesse isso, e cada fazendeiro que manda matar alguém perdesse suas terras, na verdade essas pessoas iriam era ter medo de continuar matando trabalhador rural.
A segunda coisa que nós esperamos é que o presidente da república tenha a competência de dizer ao ministro da justiça que ele não serve para o cargo, porque enquanto ele está lá já morreram mais de 300 trabalhadores e nenhum patrão foi preso – é só trabalhador que é preso.
Mais do que isso, companheiros. Acho que na cabeça de cada um de nós, de todos os partidos políticos que estão aqui presentes, de todo movimento sindical que está aqui presente, de todo movimento popular, e da igreja, que tem lutado como nunca, nesse estado, no norte, no nordeste, para tentar conscientizar o povo… É importante a gente saber que, além do governo como adversário, além do governo incompetente, nós temos um inimigo comum. Quem ama a democracia, quem ama a liberdade, quem ama a reforma agrária, tem um inimigo comum: esse inimigo chama-se União Democrática Ruralista, a famosa UDR, que é quem anda, na verdade, está contratando pistoleiro para matar trabalhador, que só quer trabalhar sua terra para plantar feijão e arroz pra comer.
E nós precisamos dizer em alto e bom som: o governo precisa começar a investigar cada crime, colocar policiais sérios para fazer isso, porque nós sabemos que tem muito policial que é capacho dos fazendeiros da cidade.
É preciso que haja seriedade, e vocês sabem, companheiros, que cada um de nós, tanto nós de São Paulo, como companheiros do Acre, de Rondônia, que chegaram aqui agora, todos nós temos um compromisso sério: não deixar a coisa agora esfriar. Não deixar, que é o que eles querem, que o povo esqueça o companheiro Chico Mendes. Agora é que nós temos que mostrar para eles que nós vamos fazer a luta do companheiro Chico Mendes ser conhecida nesse país.
Agora é que vamos arrumar solidariedade – não apenas para dar sobrevivência para a companheira do Chico e seus filhos -, mas arrumar solidariedade para dar ajuda concreta à luta dos trabalhadores que defendem a Amazônia, a luta dos trabalhadores que defendem o seringal, a luta dos trabalhadores que defendem a manutenção das castanheiras, a luta dos trabalhadores que brigam por reforma agrária.
A classe dominante está ficando com medo. Porque ela sabe que a classe trabalhadora está amadurecendo. Ela sabe que a classe trabalhadora está tomando consciência, sabe que aqui hoje está o PV, o PT, daqui a pouco chegam companheiros do PMDB, daqui a pouco chegam do PDT, do movimento sindical – eles sabem que está crescendo a solidariedade. E começam a ficar com medo.
Queria terminar dizendo à companheira do Chico Mendes, que possivelmente de todos nós é a que está com a dor maior: essa luta, companheira, não foi em vão. O sacrifício que uma companheira militante, como a companheira do Chico Mendes, vem fazendo merece elogio e respeito, de todos nós, que somos militantes sindicais, militantes políticos. Nós queremos dizer a essa companheira que nenhum de nós que estamos aqui vai esquecer que ela precisa criar e educar essas crianças. De que essas crianças têm que ser educadas como gente. Nós queremos ajudar essas crianças a serem gente.
Acho que é um compromisso dos partidos progressistas, um compromisso do movimento sindical, da CUT, da CGT, que a gente precisa transformar cada palavra do Chico numa profissão de fé por esse país aí afora de guerra. Daqui a pouco eles vão perceber que o que o Chico falava aqui e era ouvido apenas pelos companheiros do sindicato dele vai ser discutido lá no agreste de Pernambuco, lá na Bahia, na favela de São Paulo. Vai ser discutido na fábrica.
E se eles queriam pagar pra ver, vão ver que o companheiro Chico, na verdade, deve ser eleito hoje como o maior defensor da Amazônia. Nós devemos eleger o Chico, hoje, o símbolo da descrença nesse governo, eleger o companheiro Chico hoje como um mártir da classe trabalhadora camponesa desse país. Porque o que ele fez foi dedicar 44 anos da sua vida à luta pela liberdade dos trabalhadores.
Companheirada, nós vamos ter que ir embora agora porque tivemos que contratar um avião para poder chegar aqui, e tem horário. Mas queria dizer para vocês que não vai demorar muito, vocês vão ver todos nós aqui outra vez sendo solidários junto de vocês na luta e que vamos nos encontrar em congressos da CUT, em reuniões dos partidos, em congresso de igreja. Nós vamos nos encontrar.
O importante é a gente dizer – olhar para a cara do companheiro Chico e dizer em alto e bom som: Chico, a sua morte não foi o fim, foi o início da libertação da classe trabalhadora brasileira.
23 de dezembro de 1988
Velório de Chico Mendes, Xapuri, Acre
Em janeiro de 1989 Lula escreve sobre Chico Mendes para uma publicação da Central Única dos Trabalhadores:
“Chico talvez nem soubesse o que queria dizer ecologia e muito menos holocausto ecológico quando começou sua romaria pela floresta para organizar a peãozada dos seringueiros – primeiro, no sindicato dos trabalhadores rurais e, mais tarde, para criar o PT.
Nessas caminhadas pela mata, ele acabou juntando numa bandeira só a luta ecológica, a luta sindical e a luta partidária, porque sabia que elas são indissociáveis, uma alimentando a outra no mesmo ciclo da vida na floresta.
Quando estive pela última vez em Xapuri, no Acre, antes da tragédia da véspera do Natal, para ajudar na campanha do Chico a prefeito, em 1985, a barra já estava pesando. Os fazendeiros do centro-sul do país que tinham invadido a região não escondiam de ninguém que ele estava marcado para morrer.
Logo o Chico que foi um dos mais apaixonados defensores da vida que já conheci, um homem tão puro e tão limpo como a água da chuva da mata, que foi sua companheira inseparável.
Para honrar seu sacrifício e o de outros tantos companheiros, chegou a hora da nação dar um basta. O povo brasileiro não admite mais ser humilhado, massacrado, dizimado como a Amazônia. Não, não basta pôr na cadeia quem apertou o gatilho só para dar satisfação à opinião pública mundial. Chegou a hora de romper com todo este sistema corrompido e arbitrário de municia as mãos assassinas e que nas últimas duas décadas promoveu um intenso processo de concentração da terra e da renda.
Lá no cantinho do céu, Chico pode ter certeza de uma coisa: nós vamos prosseguir sua luta ainda com mais força, nos campos e nas cidades, para libertar o país de uma vez por todas desses jagunços e seus mandantes, escondidos na selva e nos gabinetes.”
Sobre os autores
é um político, ex-sindicalista e ex-metalúrgico, principal fundador do Partido dos Trabalhadores e o 35.º presidente do Brasil.