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Funcionários do Planalto tentam restaurar a obra "As Mulatas" (1962), de Emiliano Di Cavalcanti. Foto: Folhapress

A destruição cultural bolsonarista

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Na invasão de Brasília, os golpistas tinham como alvo inúmeras obras de arte, cujo significado repousa no projeto modernista do século XX - o qual trazia em seu movimento a questão nacional, social e ambiental. Nada disso é coincidência e apenas reflete o que realmente está em disputa no país.

No dia 8 de janeiro, milhares de apoiadores do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro invadiram os corredores do poder na capital do país. Vestidos de verde e amarelo, muitos estavam com a própria camisa da Seleção, um dos símbolos disputados e, no fim, usurpados pela extrema direita brasileira nos últimos anos. Os manifestantes invadiram os a praça dos Três Poderes — onde se localizam as sedes do executivo, legislativo e judiciário nacional.

Diante da pouca resistência da polícia militar, e até mesmo conivência, os bolsonaristas romperam as barricadas e invadiram os edifícios em uma onda destruidora. Entre os destroços estavam 700 peças de arte, decorações e móveis que foram vandalizados ou destruídos. Os invasores saquearam os edifícios, eles mesmos uma obra de arte, projetados nos anos 50 por um dos arquitetos – e, também, comunistas – mais famosos do Brasil, Oscar Niemeyer (1907-2012). Esses edifícios, no coração do centro político do país, são, desde sua concepção até hoje, monumentos a um projeto nacional em direção de um Brasil moderno.

“O trabalho de Di Cavalcanti foi centrado na questão nacional, mas seu olhar artístico se voltou para os trabalhadores, favelados, mulheres e pessoas negras como protagonistas.”

Mas o que os bolsonaristas esperavam criar a partir da destruição naquele dia? Qual foi o projeto do bolsonarismo nos últimos quatro anos? Há três obras de arte encontradas entre as ruínas que dão alguma visão sobre estas questões e as possibilidades que o retorno de Lula traz.

Os protagonistas da história e da arte

A peça central da sala principal do palácio presidencial é As Mulatas, quadro pintado em 1962 pelo grande artista moderno, Emiliano Di Cavalcanti (1897-1976). Embora grande parte do relatório tenha se concentrado em seu valor monetário, estimado em US$ 1,5 a 3,8 milhões, é impossível quantificar a perda cultural.

Di Cavalcanti via a arte como um ato de participação política, e seu trabalho representava os setores populares e as contradições da realidade brasileira. Como um dos principais organizadores da Semana de Arte Moderna de São Paulo em 1922, que elevou a cultura e a modernidade brasileiras ao cenário internacional, ele era quadro do Partido Comunista do Brasil desde 1928 e foi preso mais de uma vez por sua filiação política.

As Mulatas (1962), Emiliano Di Cavalcanti (reproduzido do Twitter)

Conciliando a linguagem da vanguarda europeia com o contexto brasileiro, o trabalho de Di Cavalcanti foi centrado na questão nacional, mas seu olhar artístico se voltou para os trabalhadores, favelados, mulheres e pessoas negras como protagonistas. Como sugere seu título, As Mulatas nos interpela por quem, e para quem, o Brasil foi e ainda é construído: em um país onde 56,1% de seus 212 milhões de habitantes se identificam como sendo negras – pretas ou pardas, nos termos do IBGE – e a quem tem sido historicamente negado o acesso ao poder político e à representação cultural. Este quadro foi perfurado sete vezes pelos invasores do Palácio.

Em setembro de 2022, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e vários parceiros brasileiros, incluindo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), lançaram a exposição de arte visual, 200 anos de uma nação interrompida | Arte como forma de denúncia e resistência. 28 obras de arte foram criadas como uma reflexão sobre os dois aniversários: de 200 anos de independência brasileira e do centenário da Semana de Arte Moderna, que “apesar de seus limites”, escrevem os organizadores, “tentou representar os verdadeiros protagonistas de uma nação que insistia em nascer: o povo brasileiro, historicamente marginalizado e invisibilizado”.

O bolsonarismo representa a continuidade desta “nação interrompida”, e sua insistência na destruição cultural não é um acidente, mas parte constitutiva de seu projeto político.

Dois grandes incêndios

Me mudei para o Brasil em maio de 2018, pouco antes da eleição de Bolsonaro. Um golpe de estado havia sido dado há dois anos, gerando o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT), em 2016, e a prisão, em abril de 2018, do então ex-presidente Lula por 580 dias, sob acusações infundadas de corrupção. Lula liderava as pesquisas de intenção de voto para a presidência naquele ano.

“A extrema direita brasileira, galvanizada em torno de Bolsonaro, é um projeto de violento apagamento histórico e destruição cultural, no sentido físico e subjetivo.”

Meu primeiro ano no Brasil foi marcado por dois grandes incêndios. O primeiro foi o trágico incêndio do Museu Nacional no Rio de Janeiro, onde a maioria dos 20 milhões de artefatos foram destruídos. Em resposta a este incêndio, Bolsonaro disse: “já pegou fogo, quer que eu faça o quê?”. Quando perguntado sobre a crônica falta de financiamento do museu, que levou ao incêndio, Bolsonaro respondeu com zombaria, mostrando seu total desdém pelo patrimônio cultural do país e pelo papel da arte e da cultura. Muito simbolicamente, uma de suas primeiras tarefas na presidência foi a extinção do Ministério da Cultura. A extrema direita brasileira, galvanizada em torno de Bolsonaro, é um projeto de violento apagamento histórico e destruição cultural, no sentido físico e subjetivo.

O segundo incêndio ocorreu em 19 de agosto de 2019. Saí do escritório e me deparei com os céus ameaçadores e prematuramente escurecidos de São Paulo. Eram apenas 15h30min, horas antes do anoitecer. Os ventos haviam levado a fumaça dos incêndios na Amazônia, a 2.700 quilômetros de distância. Bolsonaro vinha incentivando a queima ilegal da floresta, servindo aos interesses do agronegócio e de seus financiadores, às custas do planeta, das pessoas e do patrimônio mundial. Durante a presidência de Bolsonaro, mais de 33.000 km2 da Amazônia, os pulmões do planeta, foram destruídos – o equivalente ao tamanho da ilha de Taiwan – e as taxas de desmatamento aumentaram em 59,5%, superando qualquer outra presidência desde que as medições por satélite começaram em 1988.

Pode ser uma ironia cruel que uma das esculturas vandalizadas na invasão de Brasília tenha sido Galhos e Sombras de Frans Krajcberg (1921-2017), um artista judeu nascido na Polônia que imigrou para o Brasil depois que a maioria de sua família foi morta no Holocausto. Defensor da Amazônia, Krajcberg fez esculturas usando madeira que restaram de queimadas ilegais da floresta, como ato de protesto. Ele foi para a floresta amazônica várias vezes, coletando materiais para seu trabalho enquanto testemunhava estes crimes ambientais. A própria família de Krajcberg foi vítima do fascismo, e décadas depois, seu trabalho e o tema de seu trabalho – a Amazônia – são vítimas do bolsonarismo. A história pode se repetir, primeiro como uma tragédia, como disse Marx, mas em alguns casos, a segunda vez continua sendo uma tragédia.

Galhos e Sombras, de Frans Krajcberg, depredado pelos golpistas (reproduzido do Twitter)

Na COP27 no Egito, ainda semanas antes de reassumir oficialmente seu cargo presidencial, Lula fez um discurso comovente, comprometendo-se com o desmatamento zero na Amazônia até 2030. “O Brasil está de volta”, cantou a platéia. Se Krajcberg ainda estivesse vivo, sabemos de que lado ele estaria e qual projeto de país ele apoiaria.

Lula chegou ao Palácio do Planalto para receber sua faixa presidencial verde e amarela, a qual deveria ter sido entregue por Bolsonaro, que, em vez disso, fugiu para Orlando, nos EUA. Lula chegou de mãos dadas com o povo brasileiro – indígenas, negros, mulheres e crianças da periferia. Fotografado, ilustrado e circulado inúmeras vezes desde então, aquele ato simbólico já se tornou uma imagem icônica. Como as pinturas de Di Cavalcanti, este ato político repõe o povo – os trabalhadores, pobres e despossuídos – como os protagonistas da história e da política. Aquele ato político é também uma batalha de ideias, uma batalha pela cultura, pelas emoções e pela imagem.

Bandeira do Brasil (1995), Jorge Eduardo (reproduzido do Twitter)

Dias depois, os bolsonaristas, com seu “projeto de destruição nacional” – como Lula o chamou -, invadiram aquele mesmo palácio. Ironicamente, uma das obras vandalizadas e deixadas no chão foi Bandeira do Brasil, uma pintura de Jorge Eduardo (1936) da bandeira nacional – o mesmo símbolo que os partidários da extrema direita haviam apropriado e distorcido para sua causa. Mas qual a mensagem por trás deste ato? A quem pertence este símbolo?

No dia da posse, uma bandeira brasileira de cinquenta metros foi levada por centenas de pessoas enquanto Lula proclamava: “Nossa mensagem para o Brasil é de esperança e reconstrução”. O que os bolsonaristas derrubaram durante a invasão e durante os últimos quatro anos, está sendo levantado e recuperado pelo povo. “Criar”, como disse Di Cavalcanti há quase um século, “é acima de tudo dar substância ideal ao que existe”. E o povo continuará a criar a partir das brasas dos grandes incêndios e a dar substância ao novo projeto nacional na própria imagem do Brasil.

Construir A Esperança, Resgatar A Alegria (2022), Nathalia Ferreira Guimarães & Esther Maria Guimarães.

Sobre os autores

é diretora de arte e pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e co-fundadora do Dongsheng News. Atualmente, ela faz doutorado na Universidade Tsinghua e vive em Pequim.

Cierre

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Published in América do Sul, Análise, Arte, Cultura and História

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