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Hugo Chávez recomendando o livro de Noam Chomsky "Hegemonia e sobrevivência: a busca da América pelo domínio global" em 31 de janeiro de 2007. Foto: Getty Images

Como Chávez atualizou Gramsci para América Latina e saiu triunfante

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O ex-presidente venezuelano Hugo Chávez faleceu neste dia há 10 anos. Após entender as limitações da estratégia insurrecional, do "eurocomunismo" e da experiencia de Salvador Allende, Chávez adapta os conceitos do pensador italiano para enfrentar a dura realidade latino-americana - vencendo eleições e golpes patrocinados pelo imperialismo.

No dia 5 de março de 2013, chegava ao fim a vida o presidente venezuelano Hugo Rafael Chávez Frias, nascido em 28 de julho de 1954. Líder de uma rebelião militar derrotada, em 1992, amargaria dois anos de prisão. Dois anos depois, anistiado, comandaria um movimento que o levaria, em 1998, à Presidência da República, pelo voto popular. Era a primeira vez, desde a sangrenta derrubada do presidente chileno Salvador Allende, em 1973, que uma coalizão anti-imperialista e anticapitalista alcançava o governo de uma nação sul-americana. Também se tratava, para a esquerda de toda a América Latina, do primeiro triunfo depois que os sandinistas tinham sido batidos nas urnas em 1990, encerrando a revolução nicaraguense. 

Na sequência da eleição de Chávez, vários outros países da região também conheceriam, na primeira década do século XXI, vitórias de forças progressistas em disputas presidenciais, com destaque para Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia e Equador, mas também Paraguai, El Salvador e a própria Nicarágua. Ainda que esses episódios viessem a ser agrupados como uma “onda”, expressando um ciclo que perderia impulsão a partir de 2009, claramente apresentariam dinâmicas particulares. 

De todos esses casos, o que mais se vinculou a uma perspectiva revolucionária foi a experiência venezuelana. Para Chávez e seus seguidores, ser governo era apenas um passo, obviamente de natureza vital, dentro de uma política que tinha como objetivo construir um novo Estado, desenhado para que as classes trabalhadoras pudessem exercer o comando em todas as esferas, do parlamento às Forças Armadas, controlando o poder político para distribuir renda e propriedade, no rumo de uma economia pós-capitalista.

Da insurreição armada à batalha eleitoral

O chefe da revolução bolivariana antes se animara com a via insurrecional. Junto com outros oficiais de inspiração nacionalista, em 1983, fundou o grupo militar clandestino Movimento Bolivariano Revolucionário, que viria a estabelecer relações próximas com partidos de esquerda atuantes na luta guerrilheira dos anos 1960 e 1970. Quando ocorre o levante popular conhecido como Caracazo, em 1989, fortemente reprimido pelo exército, o núcleo chavista rapidamente se radicaliza e decide preparar um motim armado contra o governo. A ideia era articular essa cisão militar com uma insurgência social que era prometida, a Chávez, então tenente-coronel, pelas organizações civis aliadas. Como se sabe, a empreitada aconteceu em 4 de fevereiro de 1992, restringiu-se a um punhado de quartéis e acabou aplastada pela administração Carlos Andrés Perez, sem que o povo comparecesse ao encontro.

Na cadeia, de 1992 a 1994, o futuro presidente concentrou-se, entre outros temas, em fazer um balanço daqueles acontecimentos. Dedicou-se com afinco aos estudos e a demoradas conversas, como declarou ao jornalista e sociólogo espanhol Ignácio Ramonet, no livro Minha primeira vida. Também foi se dando conta que a rebelião, sufocada como operação insurrecional, criara um gigantesco símbolo de contestação, sobre o qual se poderia impulsionar a mobilização ausente em 1992, desde que fosse encontrado o canal adequado para o seu desenvolvimento. Aos poucos, Chávez foi se aproximando de outra estratégia, consolidada apenas em 1997, quando sua candidatura ao Palácio de Miraflores era já um fato consumado.

A opção pela batalha eleitoral passa a ser considerada determinante para enterrar a IV República, em crise permanente desde o apagar dos anos 1980, quando se associou ao modelo neoliberal imposto pelo capital financeiro. Fundada em 1958, através do famoso Pacto de Punto Fijo, sua espinha dorsal era um sistema bipartidário planejado para bloquear a esquerda venezuelana e salvaguardar os interesses dos grandes grupos petroleiros. Os dois braços dessa geringonça eram a Ação Democrática (AD), de identidade social-democrata, e o Comitê de Organização Política Eleitoral Independente (COPEI), de caráter democrata-cristão, que se revezaram no governo por quarenta anos, em um lendário butim de riqueza e poder.

“O abandono da política insurrecional estava longe de significar uma renúncia à insurgência contra o sistema político, a dependência externa e o ‘capitalismo selvagem’, como era costume citar na virada do século.”

Os cálculos de Chávez e seus camaradas, no entanto, não se limitavam a formar um governo que atendesse necessidades e demandas das classes trabalhadoras. O abandono da política insurrecional estava longe de significar uma renúncia à insurgência contra o sistema político, a dependência externa e o “capitalismo selvagem”, como era costume citar na virada do século. A mudança ocorrida entre 1992 e 1997, na essência, dizia respeito à via de acesso ao poder. Ser governo era etapa indispensável para mover toda a maquinaria necessária para derrubar a IV República, abrindo as portas e janelas do Estado para que a participação popular, animada pelo próprio governo, atropelasse a hegemonia das classes proprietárias e estabelecesse um novo regime constitucional, dentro do qual pudesse ter livre curso a transição para uma sociedade carimbada, mais adiante, como “socialismo do século XXI”. 

Por essa razão, a disputa pelo parlamento e pela Presidência, em 1998, teve como maior bandeira a realização de um referendo através do qual o povo decidisse a convocação imediata de uma Assembleia Nacional Constituinte. Chávez não escondia de ninguém que pretendia utilizar o prestígio natural ao início do mandato presidencial para mudar radicalmente as instituições, favorecendo ao máximo possível a soberania popular, com adoção de referendos, plebiscitos e outras formas de democracia direta.

Superando a democracia liberal com intelectuais radicais

Naqueles tempos, andava para cima e para baixo com a obra O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade, do italiano Toni Negri. Ao lado de outros autores, como o filósofo argentino Ernesto Laclau e a cientista política belga Chantal Mouffe, esse pensador apregoava um dilúvio de participação popular deliberante, dentro da própria democracia liberal, como estratégia para pressionar e ultrapassar seus limites, mantendo regras e liberdades, incluindo a alternância de poder, mas forçando uma mudança acelerada no comando do Estado. 

No fundamental, essa tese não é original. Mesmo se colocando, com maior ou menor clareza, no campo do pós-marxismo ou do pós-estruturalismo, Negri se inspirou fortemente nas ideias políticas de seu conterrâneo Antônio Gramsci, da mesma forma que Laclau e Mouffe. O conceito de hegemonia, afinal, tornou-se lapidar para desvendar processos nos quais parecia ser impraticável a alternativa jacobina ou bolchevique, de ataque frontal e exógeno ao Estado. A acumulação de forças, nessas situações, teria de ser gradual e endógena, com rupturas revolucionárias embutidas em respostas defensivas, de proteção à legalidade democrática, se e quando o bloco oligárquico-burguês tentasse assaltar o poder para retomá-lo.

“O Gramsci abraçado pelo ex-presidente venezuelano nada tinha a ver com a versão desidratada que, esboçada desde o pós-guerra, iria desembocar, na década de 1970, no chamado ‘eurocomunismo’.”

No caso latino-americano, seria uma alternativa à lógica disruptiva da revolução cubana, marcada pela destruição do velho Estado desde fora, graças à fusão entre guerrilha e insurreição popular. Esse tipo de orientação, muitos raciocinavam, não teria viabilidade em países nos quais o amadurecimento da democracia burguesa tivesse incorporado amplas massas ao seu funcionamento. O caminho possível, nessas condições, somente poderia ser por dentro do Estado, com as classes trabalhadoras alcançando a direção das principais instituições regentes a partir de sucessivos e vitoriosos processos eleitorais.

Chávez revelava frequentemente interesse pelo grande experimento das ideias de Gramsci na história latino-americana: o governo do presidente chileno Salvador Allende, entre 1970 e 1973, apoiado por uma coalizão denominada Unidade Popular, que tinha no Partido Comunista e no Partido Socialista suas organizações dirigentes, dentro de um projeto batizado de “via democrática ao socialismo”. A concepção dominante na esquerda daquela nação andina, então, era que seria possível construir um bloco hegemônico capaz de introduzir reformas paulatinas, por dentro do Estado, que impulsionassem a transferência do poder político para as classes trabalhadoras e a superação do capitalismo.

Essa estratégia apoiava-se sobre uma aposta decisiva: preservado o respeito dos partidos revolucionários à institucionalidade democrático-liberal, na qual fosse sendo forjada uma maioria favorável às transformações estruturais, as oligarquias locais e seus associados estrangeiros poderiam ser impedidos de recorrer à contrarrevolução ou neutralizados caso o tentassem. O golpe militar chefiado pelo general Augusto Pinochet, em setembro de 1973, ao impor uma ditadura sanguinária a serviço da burguesia interna e dos interesses geopolíticos dos Estados Unidos, colocaria por terra essa fantasiosa leitura sobre a reação burguesa.

Atualizando Gramsci para América Latina

Certa vez, em abril de 1999, perguntado por um enviado da revista brasileira Reportagem, sobre as diferenças entre as experiências chilena e venezuelana, Chávez deu resposta tão sintética quanto categórica. “Ambos processos são democráticos, institucionais e pacíficos”, declarou. “Mas a revolução venezuelana é armada.”

Para ele, essa conclusão não se referia apenas à questão militar. Abarcava todas as iniciativas necessárias para se preparar à irrupção de inevitáveis tentativas de contrarrevolução – da educação, organização e mobilização populares à disputa dos quartéis, da conquista do parlamento à direção do sistema de justiça, da democratização dos meios de comunicação à reforma educacional, entre outras.

“Chávez também compreendeu que a dinâmica da acumulação revolucionária, em processos não-disruptivos, seria ditada pela capacidade de responder com absoluta rapidez às iniciativas da contrarrevolução.”

O Gramsci abraçado pelo ex-presidente venezuelano, mesmo que por outras abordagens teóricas e políticas, nada tinha a ver com a versão desidratada que, esboçada desde o pós-guerra, iria desembocar, na década de 1970, no chamado “eurocomunismo”: uma teoria de hegemonia sem ruptura, sem revolução e contrarrevolução, como se os processos de transformação fossem gradualismos que apaziguassem a luta de classes, quando a história cansou de provar o contrário. A única chance, aliás, de evitar rupturas, sempre foi renunciar à hegemonia como conceito revolucionário, substituindo-a pela aceitação explicita ou camuflada de que são irrevogáveis as fronteiras da democracia liberal e da economia de mercado, restando apenas a batalha por melhorias dentro do próprio sistema. Mesmo assim, como bem o demonstram cenários recentes na América Latina, incluindo o caso brasileiro contemporâneo, sequer reformas moderadas, distantes de abalar a direção burguesa sobre o poder e a sociedade, são anestésicas ao desencadeamento de contrarrevoluções, reativas ou preventivas.

Chávez também logo compreendeu, e essa é outra aproximação com o pensador italiano, que a dinâmica da acumulação revolucionária, em processos não-disruptivos, seria ditada pela capacidade de responder, com absoluta rapidez e contundência, às iniciativas da contrarrevolução. Ou seja, avança-se através da defesa, com a máxima potência possível, mas sempre segurando nas mãos a bandeira da ordem constitucional e da legalidade. As reformas esticariam a corda, mais e mais, até que a burguesia decidisse rompê-la, ou fosse provocada a fazê-lo, abandonando as normas democráticas. Nessas horas, o bloco histórico da revolução deveria estar pronto para encurralar as classes dominantes e ceifar seus instrumentos de poder. Ao contrário das ilusões allendistas, de que a reação burguesa poderia ser atenuada, Chávez sempre preparou seu pessoal para uma inexorável tendência à radicalização do capital quanto mais perdesse espaço de comando e reprodução.

Exemplos notáveis da estratégia seguida pelo líder bolivariano ocorreram no período 2001-2002. Chávez somente começou a mexer estruturalmente na economia depois de aprovada a nova Constituição. Além de criar mecanismos de democracia direta e participação popular, o governo aproveitou para distribuir emissoras de rádio comunitária à sua base social, além de dedicar muita energia à formação política e à mobilização cotidiana, especialmente durante o processo constituinte. Também se empenhava, beneficiado pela alta do petróleo no mercado mundial, para introduzir programas sociais de forte impacto, apontando-os sempre como conquistas do processo revolucionário.

Mobilização de massa e contra-golpe

No final de 2001, o presidente propõe novas leis para a tributação e a gestão dos hidrocarbonetos, reduzindo drasticamente a margem de lucro das empresas privadas, incluindo as multinacionais do petróleo, transferindo parte de sua renda para o Estado. Gigantescas mobilizações de apoio, quase diárias, são convocadas pelo presidente. Não tardaria para a reação burguesa interna, a Casa Branca e alguns centros imperialistas europeus se colocarem em pé de guerra, adotando prontamente uma rota golpista, prevista e denunciada desde o primeiro momento.

Os meses seguintes seriam difíceis: o governo perde maioria no parlamento, a contrarrevolução organiza milícias armadas para provocar confrontos de rua, a conspiração corre solta nos quarteis, a imprensa monopolista prega abertamente a derrubada do presidente, que se mantém firme em suas posições, apelando às massas e às tropas cada vez com mais intensidade.

As tensões confluem, em 11 de abril de 2002, para um golpe empresarial-militar. Chávez é derrubado e preso, mas não aceita renunciar. Assume um governo provisório liderado pelo presidente da principal federação de comércio. A resistência atinge a casa dos milhões nas ruas de todo o país e diante do Palácio de Miraflores, animada pelos “círculos bolivarianos” que tinham sido fundados nos meses anteriores. As Forças Armadas se dividem, com a média e a baixa oficialidade praticamente se rebelando frente aos generais que tinham aderido ao golpe. Menos de 48 horas depois, resgatado pela Guarda Presidencial, o presidente legítimo voltava à chefia da nação.

“Ao contrário da obra de outros revolucionários, como Gramsci, essa contribuição não está em estudos, mas em uma estratégia que deveria ser cuidadosa e permanentemente investigada pela esquerda.”

Foi somente então, e não antes, que Chávez teria as condições políticas de controlar a indústria petroleira, em uma disputa que se estenderia até 2003, e de fazer uma reforma militar que colocou os quarteis sob sua direção. Optou por respostas repressivas de baixa intensidade, nos marcos da Constituição. A derrota da empreitada contrarrevolucionária, contudo, mesmo sem recorrer a medidas extralegais, representaria formidável salto adiante na consolidação da hegemonia do bloco bolivariano.

Um legado para a esquerda do séxulo XXI

Vários outros episódios semelhantes ocorreriam durante os vinte anos seguintes, nos quais ele e seu sucessor, Nicolás Maduro, permaneceram dentro da mesma estratégia, ainda quando enfrentando ameaças de golpe, tentativas de assassinato presidencial, sabotagens e sanções das mais drásticas possíveis.

Claro que inúmeros e graves problemas marcaram esse período histórico, que deve ser adequadamente avaliado pelos líderes e o povo venezuelanos, no sentido de retificar erros e encontrar novos caminhos. Mas é inegável que Hugo Chávez deixou um importante mapa da estrada para a revolução latino-americana. Ao contrário da obra de outros revolucionários, como Gramsci, essa contribuição não está em estudos escritos, é fato, mas em uma estratégia que deveria ser cuidadosa e permanentemente investigada por homens e mulheres de esquerda.

“Da argamassa do processo venezuelano, Chávez apontou caminhos para o reencontro da esquerda latino-americana com uma identidade revolucionária e viável.”

O líder bolivariano repôs e praticou, no terreno específico de seu país, lidando com uma realidade concreta e uma história particular, o conceito de hegemonia – e não o da guerra ou o da insurreição – para operar como motor do processo revolucionário. Ainda que o ex-presidente eventualmente jamais tenha pensado nesses termos, a hipótese gramsciana, depois de sangrada no Chile de Allende, reencontrou vigor na Venezuela de Chávez, incluindo seus dilemas e contradições.

Morto antes dos 60 anos, Chávez deixou um legado fundamental, que vai além de ter reaberto as alamedas para a emancipação de seu povo do domínio oligárquico e imperialista. Da argamassa do processo venezuelano, apontou caminhos para o reencontro da esquerda latino-americana com uma identidade revolucionária e viável, quando o século XXI parecia inevitavelmente destinado ao ocaso do movimento socialista.

Sobre os autores

é jornalista e fundador do site Opera Mundi.

Cierre

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Published in América do Sul, Análise, História, Política and Revoluções

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