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Ele combinava uma política de culto à personalidade, um uso habilidoso de mídias e uma demagogia desavergonhada – tudo para explorar a desilusão e o cinismo dos eleitores sobre o status quo. Foto de Pier MarCO Tacca.

Silvio Berlusconi se foi, mas o populismo reacionário continua

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Tradução
Caio Valiengo

Silvio Berlusconi, que morreu hoje aos 86 anos, esmagou a política italiana com seu império midiático e levou a extrema direita ao poder. Ao combinar neoliberalismo com uma retórica populista reacionária, ele lançou as bases para o trumpismo - que vem sendo reproduzido mundo afora.

Quando saiu às pressas, pela última vez, da residência oficial do primeiro-ministro, em 16 de novembro de 2011, Silvio Berlusconi parecia um homem humilhado. As finanças da Itália estavam com problemas, com investidores internacionais apostando contra os títulos do tesouro do país; promotores estavam atrás dele devido ao infame escândalo “bunga bunga”, que envolvia uma trabalhadora do sexo menor de idade; e aliados europeus como Nicolas Sarkozy e Angela Merkel tornaram público seu descontentamento com ele. Poucos teriam imaginado na época o quanto a política futura seguiria o modelo populista de Berlusconi.

Berlusconi morreu aos 86 anos – ele estava internado em um hospital de Milão, tratando uma infecção pulmonar. No entanto, olhe em volta e você poderá ver seu legado em todos os lugares. Na verdade, os anos que se seguiram à saída de Berlusconi do cargo justificaram seu estilo político, que combinava uma política de culto à personalidade extrema, um uso habilidoso de mídias e uma demagogia desavergonhada – tudo para explorar a desilusão e o cinismo dos eleitores sobre o status quo. É difícil pensar em outro político mais prefigurativo da política que estaria por vir.

“Berlusconi incorporou o que Antonio Gramsci descreveu como o “gosto pelo operístico” do povo italiano, com seus comícios e intervenções na TV.”

Muitos políticos populistas de direita que dominaram a década de 2010 foram comparados a Berlusconi, sendo o primeiro deles o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Como Trump, e bem antes dele, Berlusconi insistiu no fato de que não era um político de carreira, mas sim um “empresário self-made” de sucesso, que decidiu entrar na política para salvar seu país da esquerda. Como Trump, Berlusconi deve seu sucesso ao uso extraordinário da TV, o que, no seu caso, foi facilitado pelo fato de possuir a maioria dos canais privados de TV do país. E, finalmente, muito parecido com Trump, Berlusconi conquistou a cena política ao ignorar todas as normas de cortesia e polidez institucionais, apresentando-se absurdamente como uma vítima de juízes e autoridades eleitorais, sem nunca se esquivar das táticas mais vulgares e sensacionalistas para chamar a atenção do público – incluindo sua famosa propensão para piadas sexuais.

Berlusconi incorporou o que Antonio Gramsci descreveu como o “gosto pelo operístico” do povo italiano, com seus comícios e intervenções na TV apresentando momentos que caberiam em um programa de humor pastelão. Em termos de conteúdo político, porém, ele era simplesmente um neoliberal: sua revolução consistia em cortar impostos e burocracia e desregulamentar o trabalho. Na verdade, ele é melhor visto, historicamente, como o elo entre o neoliberalismo e o populismo.

Na Itália, Berlusconi foi fundamental para permitir que a extrema direita entrasse na política dominante, forjando alianças com o partido separatista Liga do Norte e com o partido pós-fascista Alleanza Nazionale, do qual descende o partido da atual primeira-ministra, Giorgia Meloni. (Meloni ganhou destaque pela primeira vez ao servir como Ministra da Juventude no último governo de Berlusconi.)

Curiosamente, olhando para trás, a mudança da política italiana cada vez mais para a direita nacionalista fez Berlusconi parecer relativamente moderado. No entanto, seu ataque constante aos trabalhadores, seus supostos vínculos com a máfia, sua manipulação do sistema legal, suas políticas econômicas desastrosas que aceleraram o declínio industrial do país e sua celebração do individualismo extremo criaram as condições para a atual virada reacionária da Itália.

Um elemento-chave de seu sucesso, que foi imitado por populistas de direita no mundo todo, foi sua capacidade de transformar acusações contra ele em combustível para sua sobrevivência. A carreira de Berlusconi foi marcada por processos por crimes relacionados à máfia, corrupção e sonegação de impostos. Em resposta, ele adotou uma abordagem em duas frentes. Por um lado, ele insistiu vigorosamente que era inocente, vítima de juízes comunistas – a pessoa mais perseguida da história da humanidade. Por outro lado, para o benefício de seus apoiadores mais dissimulados, especialmente aqueles da classe empresarial, muitas vezes envolvidos em práticas ilegais ou limítrofes, ele frequentemente apelava para o fato de que seu comportamento não era tão puro, mas de quem é?

“A ascensão de Berlusconi foi possibilitada pelo cansaço que a democracia liberal italiana cultivou nas pessoas comuns.”

Os ecos das atuais tribulações legais de Trump nos EUA são claros – e não são um bom augúrio para aqueles que pensam que o destino do ex-presidente será selado por mais uma acusação.

Na Itália, a ascensão de Berlusconi foi possibilitada pelo cansaço que a democracia liberal italiana cultivou nas pessoas comuns, desde o escândalo de corrupção de Tangentopoli no início dos anos 1990. Em outros países, figuras de direita se aproveitaram de sentimentos semelhantes de desilusão em relação à política que não parece favorecer os interesses de ninguém além da elite.

Enquanto a política for vista – às vezes com razão – como um grande “pântano” (para citar a retórica trumpista) de corrupção e hipocrisia, a política cínica, da qual Berlusconi foi pioneiro e que foi aperfeiçoada pelos populistas de direita mundo afora, continuará triunfando. A única maneira de quebrar esse feitiço tóxico é refundar a política com uma missão moral, mas tangível, que realmente proporcione melhorias concretas para os trabalhadores. E isso é precisamente o que Berlusconi não conseguiu fazer.

Sobre os autores

é doutor em mídia e comunicação pelo Goldsmiths College (University of London) e professor do Departamento de Humanidades Digitais e diretor do Centro de Cultura Digital do King’s College em Londres. Já publicou no Brasil o livro "Redes e Ruas: mídias sociais e ativismo contemporâneo" e "Máscaras e bandeiras: populismo, cidadanismo e protesto global" pela Editora Funilaria.

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Published in Análise, Europa, Imprensa, Perfil and Política

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