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A escrita como trincheira de luta

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O jornalista, escritor e militante socialista, Domingos Ribeiro Filho, faleceu neste dia em 1942. Pouco conhecido até os dias de hoje, ele era um cronista do “fervedouro tragicômico da imensa luta de classes”. Sua trajetória é um chamado à luta e à revolta - e por isso deve ser lembrado no dia de hoje.

No dia 6 de julho de 1942, falecia Domingos Ribeiro Filho (1875-1942), um escritor que fez da sua pena uma afiada ferramenta de crítica e denúncia das mazelas e desigualdades sociais que marcaram a sociedade em que viveu, entre fins do século XIX e a primeira metade do século XX. Fazendo das páginas da imprensa carioca sua mais importante trincheira, por meio da escrita Domingos Ribeiro Filho participou da luta concreta da vida, ao propor e defender a construção de um outro mundo no qual fosse possível viver, pensar e sentir a partir de arranjos mais livres, solidários e justos.

Embora tenha feito parte de uma geração de literatos que conquistou, mais cedo ou mais tarde, inegável reconhecimento, recaiu sobre Domingos Ribeiro Filho um curioso silenciamento que permanece até os dias de hoje. Por um lado, pelo cânone e crítica literárias, como escritor; por outro, enquanto sujeito histórico, como literato-militante inserido num contexto de grande circulação de ideias e correntes de pensamento – que disputaram projetos políticos divergentes, em frentes diversas de propaganda, ação e mobilização durante a chamada Primeira República no Brasil (1889-1930).

Amanuense, escritor e militante

Se tivesse que descrever o trabalho de um amanuense no Brasil do início do século XX, certamente começaria afirmando que este não contava com grandes agitações cotidianas. Entre registros, documentos oficiais e cópias, era de sua responsabilidade organizar e administrar toda documentação que eventualmente cruzasse sua mesa, entre às 10h da manhã e às 3 da tarde. Domingos Ribeiro Filho seguramente conheceu bem essa rotina. Num gabinete da então Secretaria da Guerra, na cidade do Rio de Janeiro, experimentou o cotidiano do trabalho burocrático como amanuense e funcionário público durante três longas décadas, até aposentar-se nos anos 1930. 

Pequenino de estatura, muito feio e de narigão recurvo, como certa vez caracterizou o amigo de vida e de luta Astrojildo Pereira, entre carimbos, documentos e registros Domingos Ribeiro Filho assistia às horas passarem arrastadas até o fim do expediente na repartição. Nascido em Macaé, cidade litorânea do Estado do Rio de Janeiro, no ano de 1875, testemunhou importantes transformações ainda muito jovem, como a queda da monarquia, a abolição da escravatura e a proclamação da república. Viria a falecer em 1942, na cidade do Rio de Janeiro, aos 67 anos.

Se as paredes da Secretaria pudessem nos dizer algo sobre aquele funcionário, talvez compartilhassem bem mais que o ordinário cotidiano de um típico amanuense no exercício de sua função. Ao longo da Primeira República, o então funcionário do Ministério da Guerra dedicou-se paralelamente a outras duas atividades que, a seu modo, fundiram-se e o marcaram para a vida toda: a produção literária e a militância política. A última, por sinal, contrariava – e, no limite, contestava – precisamente tudo aquilo que a instituição na qual trabalhava vinha a representar na jovem república brasileira.

Aquela repartição, “que cuidava da defesa nacional e velava pela segurança do regime republicano, possuía no seu quadro de funcionários um dos mais ativos propagandistas do anarquismo”, escreveu o historiador e jornalista Francisco de Assis Barbosa, na biografia “A Vida de Lima Barreto (1881-1922)”. “Chamava-se Domingos Ribeiro Filho e era um misto de boêmio e revolucionário”, segundo Barbosa, e nunca escondeu suas ideias e orientação política, fazendo questão de “proclamá-las dentro e fora da repartição”. Colegas de repartição, por sinal, Ribeiro Filho e Barreto dividiram não só o cotidiano da vida funcional como também o desejo de se lançar como escritor e, quem sabe, alcançar o almejado prestígio no desafiador mundo das letras.

Talvez as paredes daquela Secretaria, se pudessem, nos contassem a história de um sujeito que conviveu com suas próprias contradições, ambiguidades e conflitos. Longe de apresentar aqui uma história linear, imaculada e circunscrita de um militante ou, ainda, como a de um escritor à frente de seu tempo, a trajetória de Ribeiro Filho evidencia justamente outra experiência – e, em parte, daí resulta a relevância desse autor para a história dos movimentos sociais e de luta da primeira metade do século XX no Brasil. Ao passo em que o contexto e a realidade concreta da vida no seu tempo o influenciava, o escritor-militante também intervinha e participava do movimento da história com sua escrita, experiência que, por vezes, também se fez frente a contradições e condições adversas. 

Assim, primeiro, como anarquista, depois, como comunista (orientação da qual viria a aproximar-se nos anos 1920), não conseguiu se ver livre das amarras de uma vida funcional atrelada ao Estado. E por uma razão muito simples: precisava sobreviver. A história de Domingos se conecta com a de muitos sujeitos que viveram no limite entre o desejo de consagrar-se escritor e a necessidade de uma renda que provesse sua sobrevivência. Afinal de contas, o que produzia com sua pena estava longe de lhe assegurar suficiente sustento, arcar com as necessidades materiais e com as contas da família. 

E se o trabalho com a escrita não lhe garantia o necessário retorno financeiro, ainda assim foi ali que encontrou o seu lugar, inclusive na militância política. Entre os anos 1904 e 1919, publicou cinco romances, todos escritos à luz da tradição libertária anarquista e com o objetivo de formarem um conjunto de “estudos de uma moral”. O primeiro, Sê Feliz (1904), foi publicado em folhetim na revista A Avenida (1903-1905); depois, viria O Cravo Vermelho (1907), pela M. Piedade & C – Editores; Vãs Torturas (1911), por J. Ribeiro dos Santos (RJ); Uma paixão de mulher (1913), sob o pseudônimo feminino de Cecilia Mariz, publicado pela editora francesa Maison Sud-America; e, por fim, a novela Miserere (1919), publicada pela Casa Ferreira de Mattos & Cia. Sobre o último romance, aliás, a personagem principal é uma prostituta; através dela mergulhamos em provocadores diálogos e questionamentos sobre o papel que se entendia como destinado às mulheres e a defesa da liberdade dos corpos femininos. Trabalhando em um sobrado antigo no centro do Rio de Janeiro, acompanhamos a narradora durante seus encontros e diálogos, que, sem demora, aventurava pelos dilemas morais e as convenções burguesas que pautavam as relações amorosas à época. 

Um dos aspectos centrais da obra está justamente no ocultamento do nome da principal personagem, a prostituta. Pode ser até que, porventura, inicialmente o leitor nem se dê conta dessa ausência, pois a narradora segue habilidosamente descrevendo seus encontros e conversas. Mas a escolha deliberada do autor no ocultamento do nome chama atenção para o silenciamento das mulheres e, de modo especial, das prostitutas, das trabalhadoras sexuais constantemente subjugadas ao espaço da marginalidade, do silenciamento e do não-lugar.

Acompanhar os encontros e desencontros dessa trabalhadora sexual no início do século XX é o ponto alto do romance porque é onde tudo acontece. Ali, as conversas dão corpo aos desejos, sonhos e lutas por uma sociedade na qual a mulher seja vista para além dos “dois extremos” em que, segundo o autor, o homem a colocou: “a honestidade ou a prostituição”. E já no início da trama o leitor encontra a síntese da proposta do romance, numa conversa entre um grupo de jovens a respeito da figura feminina, da qual sai a seguinte afirmação: “Ao final dos finais, eu assevero que a mulher é o único problema social e moral que inutilmente nos atormenta. A liberdade dela é a questão decisiva do nosso destino na sociedade. É em vão que a covardia, a estupidez e loucura intentam com forças diversas fazer da mulher um ser diferente da nossa humanidade”.

Não à toa, o que Domingos Ribeiro Filho busca fazer neste livro é um convite aos leitores, especialmente aos homens, à reflexão sobre as amarras e dilemas sociais que marcavam a condição feminina no início do século XX – endossados em grande medida por dogmas religiosos. No prefácio, dirigia-se diretamente a eles: “Sei que tu te dizes livre conforme a lei e abençoado segundo a fé apostólica, mas eu sei também que não me aplaudes nem me acreditas porque, se és livre, és filho de uma escrava, casado com uma escrava e irmão de uma escrava. Que liberdade é a tua, se o ser que te deu o ser vem de gemido em gemido há dez mil anos encontrar no amor a mais violenta das escravidões?”. Assim, Miserere fecha a série de romances com um firme chamado à revolta e a defesa da construção do que chamou de uma “nova moral”, em contradição com a firmada nos moldes da sociedade burguesa. 

A condição feminina e a liberdade dos corpos foram assuntos de grande destaque nos debates promovidos por militantes vinculados à tradição anarquista no início do novecentos. E Domingos Ribeiro Filho não só acompanhou as discussões como seguramente contribuiu. Seus romances trazem a questão feminina como tema central, partindo de diferentes histórias e personagens. A ideia que costura esse conjunto de textos se traduz no argumento de que uma sociedade seria verdadeiramente livre somente quando os direitos e a liberdade feminina fossem conquistados e assegurados.

A imprensa como trincheira de luta

Mas foi escrevendo na imprensa que Domingos pode encontrar algum retorno financeiro de seu trabalho com a pena, além de espaço para propagação do que vinha escrevendo. Em uma das principais revistas do início do século XX, de renomado sucesso comercial, é que encontramos sua produção de maior fôlego: são mais de 600 crônicas na coluna principal, a “Looping the Loop”, além de dezenas de contos e artigos diversos. Ribeiro Filho teve destacada atuação na revista Careta (1908-1960) e não hesitou em se posicionar e debater sobre os mais variados temas: a condição feminina, a xenofobia, a imigração, o voto, a república, a questão da educação e o analfabetismo, a carestia da vida e os imperialismos foram alguns dos assuntos abordados nessas colunas.

Careta, assim, tornou-se um divisor de águas em sua trajetória como escritor e militante. Além de marcar sua consolidação como cronista, “Looping the Loop” tornou-se também um espaço estratégico de difusão dos ideais políticos que Domingos carregou consigo ao longo da vida. As crônicas traziam mais do que impressões e comentários sobre o cotidiano carioca, ao serem escritas de modo a introduzir outras visões de mundo a partir de ideias e pressupostos vinculados à tradição libertária. Conferindo um estilo próprio ao seu texto, o autor visou suplantar tanto o perfil editorial do semanário, quanto as condições adversas às quais estavam sujeitos militantes e solidários às ideias libertárias naquele contexto. A “Looping the Loop” de Ribeiro Filho foi, antes de tudo, uma ousada empreitada de difusão de ideais políticos para os mais variados grupos que compunham o público da Careta.

Certa vez, Antonio Candido referiu-se às crônicas engajadas e militantes como indicadoras da “participação decidida na realidade com o intuito de mudá-la”. Assim compreendemos as crônicas de Domingos Ribeiro Filho na “Looping the Loop” da revista Careta. E para conhecer melhor este escritor-militante, aventuramo-nos, rapidamente, por uma delas. 

A nossa causa

Como bom cronista, atento às movimentações ao seu redor, no sábado de 11 de julho de 1925, “A nossa causa” era publicada por Ribeiro Filho na coluna “Looping the Loop”. Logo no primeiro parágrafo o autor apresentava o que entendia como “a nossa causa” ao leitor, ao afirmar: 

O levante marroquino, a insurreição chinesa, as revoltas indianas e os vários  movimentos coloniais e nacionalistas de toda parte são muito mais a nossa causa que  as questões de déficit, de jurisprudência ou de moralidade dos costumes que aparecem rufadas nos artigos de jornais oportunistas.

Curiosamente, o próprio autor vinha dedicando alguns de seus textos ao debate sobre algumas das temáticas que seriam, em menor grau, “a nossa causa”. O levante marroquino, a insurreição chinesa e a revolta indiana seriam a nossa causa em razão do desejo da reconquista das liberdades, que “foram abandonadas ou arrancadas pelo imperialismo esfomeado e pantagruélico dos tubarões e hipopótamos do lucro, da vaidade e do interesse”.

Para Domingos, a grande questão seria os brasileiros não desejarem saber e conhecer mais sobre os “termos da causa nacional”. A tal causa nacional, defendida e reivindicada pelos movimentos citados pelo cronista no início do texto, não se limitava, segundo o autor, a uma questão patriótica ou nacionalista em sua essência. Teria a ver, na verdade, com o desejo de transformação da realidade concreta, com a “semeadura da justiça e da igualdade”.

Um dos pontos importantes da crônica é a figura do jeca. A primeira menção a ela aparece já no segundo parágrafo do texto, quando o autor afirma que os levantes ao redor do globo davam exemplo aos jecas de todo o mundo, “exemplo de esforço e tenacidade indispensáveis à reconquista das liberdades”. Mas é só no decorrer da leitura da crônica que torna-se possível compreender a que Ribeiro Filho se refere quando menciona o sujeito jeca. No Brasil, segundo o autor: “Criou-se o tipo do Jeca Tatu, e tudo se faz para fixá-lo na etnografia, por processos eugênicos, como o representante supremo da besta humana capaz de sustentar o mundo sobre a pança vazia”.

O Jeca, para Domingos, era a personificação generalizada do sujeito passivo, inerte e acomodado à situação ao seu redor. Esse sujeito, constituído dentro da lógica sociopolítica liberal, estaria tão imerso em um modo de viver que só pensaria no próprio lucro, incapaz de ser atento e sensível à exploração ao seu redor. Mas ao contrário de Monteiro Lobato, para Domingos também os “Estadistas, poetas, jurisconsultos, funcionários públicos, jornalistas e teatrólogos” seriam alguns dos sujeitos que, “necrosados da sequela otimista vêm em uníssono concorrendo para o jequismo perfeito desta estranha nação posta em remate”. O jeca não estava necessariamente no trabalhador braçal do campo, como queria destacar Lobato, mas também nas elites.

Por sua vez, a nação seria posta em remate porque quando os “devoradores da City e de Wall Street” fossem expulsos das terras que exploravam, como a China, o Marrocos e a Índia, como resultado das lutas revolucionárias por libertação, possivelmente acabariam voltando o olhar para o Brasil, como uma terra com potencial para a instalação de suas grandes empresas e demais formas de exploração. Ainda segundo Ribeiro Filho, algumas formas de influenciar e cooptar ideias e desejos, por parte dos americanos e europeus, já estavam sendo fomentadas no país, a exemplo dos jornais e cinemas em apoio às estradas de ferro e de empréstimos externos, como a empresa Light (responsável pelo fornecimento de energia) e o Bank LTDA (de financiamento de créditos). Nesse sentido, apontava: 

É aqui que eles virão estabelecer os seus Kiro Chaos, suas Singapuras, seus Tientsins e suas Algeciras, na grata atitude de quem toma conta de uma propriedade zelada honestamente pelos estadistas e jornalistas que fizeram o Jeca, o incomparável Jeca, jogador de futebol, frequentador de cinema, eleitor apaixonado, conscrito militar e erudito comentador dos comunicados telegráficos.

Esse trecho chama atenção para outro ponto: o papel importante que Domingos conferia aos jornalistas no que diz respeito à elaboração e afirmação do sujeito Jeca. A imprensa da qual o autor fala corresponde àquela comercial que, a depender do lugar de onde o literato falava, a denominava como “imprensa burguesa”. Esse elemento indica sua crítica a um projeto jornalístico e de imprensa que, ainda que buscasse se afirmar como imparcial no discurso, o seu programa, em verdade, correspondia a interesses comerciais e financeiros muito específicos – alinhados à classe dominante. 

A crítica de Ribeiro Filho, por fim, nos oferece a chave de compreensão de sua própria atuação dentro da imprensa comercial, especialmente da revista Careta: se apropriar desse espaço de modo a trazer para um público amplo e diverso outras ideias e visões de mundo possíveis para além da ordem social vigente. 

A luta pelas ideias é uma luta pela vida

Os questionamentos e críticas de Domingos Ribeiro Filho, seja nos romances, seja nas páginas da imprensa carioca, ainda nos soam estranhamente atuais. Entretanto, boa parte de sua produção literária não só caiu no mais completo ostracismo como deparamo-nos com uma dificuldade concreta em acessá-la, restando poucos e raros exemplares de seus romances. Quem ousar se aventurar por sua história há de estar preparado para lidar com os desafios impostos pela escassez de informações biográficas sobre o autor. 

Ao mesmo tempo, é possível iniciar a montagem desse quebra-cabeças da trajetória e luta política de Domingos Ribeiro Filho com as informações que já temos disponíveis somado à sua produção na imprensa – em grande parte digitalizada e de fácil acesso em diferentes arquivos e acervos. Além de documentar e testemunhar temas e questões amplamente discutidos à época que conformaram a realidade de um país em intensa transformação, seus textos guardam um contínuo processo de participação e de luta do escritor em questão. Como escreveu certa vez: a luta pelas ideias é uma forma de luta pela vida. 

Ler Domingos Ribeiro Filho à luz de nosso tempo, portanto, significa não somente acessar outras formas de atuação de militantes anarquistas e comunistas na grande imprensa, como também refletir sobre as questões do nosso próprio tempo, atentos e instigados pelas experiências e estratégias empregadas por alguns dos militantes que, antes de nós, tanto sonharam com outros mundos.

Sobre os autores

é mestranda em História na UNIFESP.

Cierre

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Published in América do Sul, História, Imprensa and Perfil

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