Estamos no ano de 2364 e um velho e enferrujado ônibus espacial contendo o antigo capitalista de Wall Street Ralph Offenhouse, congelado criogenicamente desde 1994, acaba de ser descoberto flutuando no espaço por uma nave estelar chamada Enterprise-D. Ao acordar, Offenhouse descobre que, embora a ciência tenha encontrado uma cura para sua doença antes considerada terminal, suas contas bancárias e investimentos desapareceram. Para seu horror, nem mesmo o seu querido Wall Street Journal sobreviveu à devastação do tempo.
“Muita coisa mudou nos últimos trezentos anos”, lhe conta o capitão da nave, Jean-Luc Picard. “As pessoas já não são obcecadas com o acúmulo de coisas. Nós eliminamos a fome, a miséria, a necessidade de posses. Nós crescemos e saímos da nossa infância.”
É particularmente impressionante que, em um gênero que tende na direção de futuros sombrios e distópicos, Star Trek (Jornada nas Estrelas) seja uma exceção na ficção científica por oferecer uma visão otimista para o futuro da humanidade. Na verdade, embora possa ser excessivamente simplista dizer que Star Trek retrata uma sociedade socialista, o seu utopismo deve muito às ideias de Marx, na medida em que imagina um futuro onde o coletivismo triunfa, o dinheiro se torna obsoleto e todas as necessidades materiais são satisfeitas.
Além do capitalismo
O programa acompanha, em várias encarnações, uma nave espacial e sua tripulação cuja missão duradoura é “ir corajosamente aonde ninguém jamais esteve”. Mas, como explica o Capitão Picard em First Contact (Jornada nas Estrelas: Primeiro Contato, 1996), “A aquisição de riqueza já não é a força motriz das nossas vidas. Trabalhamos para melhorar a nós mesmos e ao resto da humanidade.”
Em vez de trabalharem apenas para sobreviver, os seres humanos são livres para passar o seu tempo explorando o cosmos, criando invenções, ou fazendo arte – e às vezes, fazendo todas as três coisas. Esta visão otimista da natureza humana contrasta fortemente com filmes como Wall-E, da Pixar, que segue a linha de pensamento de direita de que alcançar uma sociedade pós-escassez (o que Keynes chama de “problema econômico”) levaria à preguiça e ao hedonismo e, em última instância, à ruína da humanidade.
Em Star Trek, a geopolítica é coisa do passado. Em vez disso, existe a Federação dos Planetas Unidos, uma organização inspirada nas Nações Unidas, fundada nos princípios de liberdade, igualdade, justiça, progresso e coexistência pacífica, que se dedica à busca do conhecimento e à emancipação universal da vida senciente. É um mundo no qual as condições econômicas permitem que cada pessoa contribua com a sociedade de acordo com a sua capacidade e consuma de acordo com as suas necessidades.
É importante observar que Star Trek é o produto de uma era política que precedeu as condições pós-fordistas e neoliberais, quando diferentes futuros não só eram imaginados, como também haviam esforços, disputas e luta pela sua construção. A série original de Star Trek foi ao ar entre 1966 e 1969 – um período fértil para a imaginação política, apesar das grandes turbulências.
Gene Roddenberry, o criador de Star Trek, certamente assinava embaixo desse otimismo todo. Ele acreditava que a humanidade, em vez de estar condenada à autodestruição, estava destinada a evoluir para além da nossa miopia política. Foi graças a Roddenberry que a série original, ainda que desatualizada para os padrões atuais, estava à frente do seu tempo com sua equipe multinacional, multiétnica e multigênero. Notoriamente, o programa apresentou o primeiro beijo inter-racial televisionado (em um episódio banido pela BBC), e Martin Luther King disse certa vez que Star Trek era “o único programa que eu e minha esposa Coretta permitíamos que nossos três filhos pequenos ficassem acordados para assistir.”
Atualmente, as falhas e hipocrisias de Roddenberry estão bem documentadas. Segundo sua última esposa, Majel Barrett, ele se identificava como comunista. Mas sabemos, pelos muitos relatos sobre suas práticas antiéticas nos negócios, que ele também era obcecado em ganhar dinheiro. Ele pregava paz e amor, mas era extremamente difícil de se conviver. E ele hasteou a bandeira do feminismo ao mesmo tempo em que era um notório mulherengo.
Em vez de focar em Roddenberry, o homem, acho mais interessante avaliar Roddenberry, o vendedor. Quando o programa foi ao ar, havia agitação generalizada; os Estados Unidos estavam sendo atravessados por motins por questões raciais e protestos contra a guerra, e na época a então bem nova e terrível ameaça do Armagedom nuclear assomava enorme no horizonte. Porém, em vez de oferecer uma “extrapolação ou exacerbação” destas condições, como a cultura tende a fazer, Roddenberry viu o apelo de um futuro melhor.
Talvez ele tenha reconhecido esse apelo porque sabia melhor do que muita gente o quanto os seres humanos podem ser horríveis.
A política da tecnologia
Quando o programa foi reiniciado na década de 1980, o horizonte político estava se estreitando. No entanto, foi nessa década, apenas dois anos antes da queda do Muro de Berlim, que Star Trek se tornou mais notavelmente marxista. Tudo isso devido à introdução do “replicador”, uma impressora 3D futurística capaz de criar qualquer coisa a partir de matéria reciclada, resolvendo assim o problema da escassez. Até aqui, bem ficção científica.
Só que em Star Trek, a tecnologia por si só não traz a utopia. Como aprendemos através da introdução dos Ferengi – uma raça alienígena cuja cultura gira em torno da ganância, especulação e busca por lucro – a socialização do replicador é uma escolha política. Os replicadores dos Ferengi são privatizados, enquanto os replicadores da Federação são de propriedade pública.
Enquanto conceitos como propulsão em velocidade de dobra espacial e teletransporte permaneçam firmemente no domínio da ficção científica, muitas das previsões tecnológicas de Star Trek se materializaram ou estão a caminho de se concretizar – incluindo o conceito de impressão 3D em nível molecular e as aplicações cada vez mais exploradoras de Inteligência Artificial. O que o capitalismo torna impensável são os aspectos políticos por trás da tecnologia: que os desenvolvimentos tecnológicos poderiam nos beneficiar em vez de aprofundar a alienação.
Star Trek fornece uma antítese de como o capitalismo nos predispõe a enxergar a tecnologia, nos permitindo imaginar como seria a sociedade se a tecnologia fosse usada exclusivamente para melhorar a nossa qualidade de vida. Em vez de seguirmos este caminho, os nacos de conveniência que recebemos através de avanços tecnológicos são apenas suficientes para nos entorpecer para evitar a percepção de que ficamos presos num ciclo de consumismo e capitalismo de vigilância.
Construindo a utopia
Outro aspecto utópico de Star Trek é a representação da solidariedade. Roddenberry tinha muitas “regras” que ele insistia que o programa seguisse, mas a mais infame é a que ficou conhecida como “princípio de Roddenberry”: a obrigação de que o conflito nunca deveria ocorrer entre os personagens principais, apenas com forças externas.
O argumento de Roddenberry era que, para que as condições utópicas de Star Trek fossem críveis, os personagens deveriam representar o que há de melhor na humanidade. No episódio “Remember me” (“Lembre-se de mim”), a médica do navio, Beverly Crusher, nota que os tripulantes estão desaparecendo – mas cada vez que uma pessoa desaparece, ela é esquecida por todos os outros; para o resto da tripulação, ela nunca existiu.
Em um drama típico, isso seria o que chamamos de um enredo do tipo “verdade de Cassandra”: o herói descobre uma conspiração, ninguém mais acredita nele e, portanto, o herói não tem escolha a não ser resolver o mistério sozinho. Só que em Star Trek, em vez de tratar a médica como se ela tivesse enlouquecido, a possibilidade de pessoas estarem sendo apagadas da existência é levada a sério e passa a ser investigada pelos seus colegas.
Em vez do drama da série girar em torno de conflitos interpessoais, os problemas são superados por meio do trabalho em equipe, e muito raramente como resultado do heroísmo de uma única pessoa. Esse é um dos aspectos mais exclusivos do programa; como espectadores, nós nos acostumamos a esperar que o conflito entre os personagens seja um dos aspectos mais fundamentais de um drama.
É reconfortante saber que não importa a escala do problema, você pode confiar que os personagens comunicarão seus pensamentos e sentimentos, avaliarão a situação de maneira objetiva e trabalharão juntos. Mas mais do que conforto, Star Trek oferece continuamente exemplos de cooperação, resolução de conflitos, gentileza e empatia que estão em falta na maioria dos dramas modernos.
Para mim, este talvez seja o elemento mais radical de Star Trek. Ao simplesmente mostrar as possibilidades de cooperação, o espetáculo oferece algo pelo qual todos devemos lutar – e a solidariedade é sem dúvida o primeiro tijolo do alicerce necessário para a construção da utopia.
Otimismo “Sci-Fi”
Quando chega a hora do capitalista do século XX, Ralph Offenhouse, regressar à Terra do século XXIV, ele fica perplexo. “O que vou fazer? Como vou viver?” ele pergunta; “qual é o desafio?” O problema é que Offenhouse nunca se permitiu imaginar uma alternativa ao capitalismo – e para alguém que viveu toda a sua vida numa prisão, não há nada mais assustador do que ser libertado. Tal como o prisioneiro na caverna de Platão, o instinto é regressar à escuridão à qual se está habituado.
De certa forma, somos todos Offenhouse. Talvez nem todos soframos da sua espécie peculiar de síndrome de Estocolmo capitalista, mas todos nós, naturalmente, temos dificuldade para imaginar um modo de vida alternativo. Todos vivemos sob o mesmo sistema político que elimina quaisquer ameaças à sua existência por padrão, e torna-se mais difícil imaginar uma alternativa a cada dia que este sistema se enraíza mais profundamente nas nossas vidas.
É aqui que reside o poder de Star Trek. É fácil descartar a ficção científica utópica como puro escapismo, como se o escapismo em relação ao capitalismo fosse uma forma de arte inferior ao realismo, mas que bem faz à sociedade o constante lembrete de que tudo vai mal, e que só pode ir mal? A negatividade não é lá muito inspiradora. E além de tudo, como reconheceu Gene Roddenberry, o otimismo vende. Políticos, anotem aí.
Sobre os autores
Simon Tyrie
é um músico e ativista que vive em Luton, no Reino Unido.