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Etnografias de vários povos de caçadores-coletores de retorno imediato como os Ju Hoansi (foto) descrevem sociedades profundamente igualitárias, compondo um dos campos de estudos que Graeber e Wengrow minimizam ou ignoram para fortalecer suas teses. Foto: Museu Vivo dos Ju/'Hoansi.

O despertar de tudo – mas tudo permanece igual

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Tradução
Everton Lourenço

O livro de David Graber e David Wengrow traz importantes contribuições para popularizar discussões antropológicas. Mas para propor uma nova história da humanidade, acaba se colocando contra décadas de evidências científicas sobre a evolução humana - ignorando a importância da luta de classes.

Resenha do livro O despertar de tudo: uma nova história da humanidade, de David Graeber e David Wengrow (Companhia das Letras, 2022) originalmente publicada em annebonnypirate.org. Alguns subtítulos foram adaptados, por decisão editorial.


O novo livro de Graeber e Wengrow é enérgico, comprometido e caleidoscópico, mas também tem falhas, o que nos coloca um problema. David Graeber morreu jovem, em setembro de 2020. Sua obra-prima, Dívida, pode ter algo de ilusório em algumas partes, mas sua ambição foi inspiradora em sua época. Seu trabalho como ativista e líder no movimento Occupy e no movimento por justiça social foi incomum e exemplar. O respeito e o carinho por ele entre seus colegas no departamento de Antropologia da LSE (Escola de Economia de Londres) falam por si, e seu coração sempre esteve ao lado dos oprimidos.

Mas exatamente por Graeber ser um cara legal e ter nos deixado tão recentemente, há o perigo de que, para muitas pessoas, O despertar de tudo acabe moldando sua compreensão das origens da desigualdade por muito tempo.

A contracapa do livro traz elogios de Rebecca Solnit, Pankaj Mishra, Noam Chomsky e Robin D. G. Kelley – todos pensadores eminentes e dignos de admiração. Kelley é representativo: “Graeber e Wengrow efetivamente colocaram de cabeça para baixo tudo o que já pensei sobre a história do mundo. O livro mais profundo e emocionante que li em trinta anos.” O livro recebeu considerável atenção recente da imprensa, e seria lamentável se tal elogio se tornasse a visão geral.

A questão das origens da desigualdade na evolução e na história humana é importante demais para a maneira como tentamos mudar o mundo. No entanto, Graeber e Wengrow querem transformações sem lidar com as questões da igualdade e de classe, e são hostis a explicações ambientais e ecológicas. Essas falhas possuem implicações conservadoras.

Então aqui vamos nós, para uma resenha insubmissa e parcial para um livro imenso. Nós nos consolamos com a consciência de que Graeber amava e se destacava no calor do debate intelectual.

O dilema

No último parágrafo do seu livro, na página 556, Graeber e Wengrow estabelecem de maneira cristalina a sua posição. Escrevem:

“quando, por exemplo, um estudo, rigoroso em todos os outros aspectos, parte do pressuposto irrefletido de que existiu uma forma “original” da sociedade humana; que sua natureza era basicamente boa ou ruim; que houve uma época anterior à desigualdade e à consciência política; que algo ocorreu para mudar tudo isso; que a “civilização” e a “complexidade” sempre existem em detrimento das liberdades humanas; que, embora seja natural em pequenos grupos, a democracia participativa é impossível de ser ampliada até a escala de uma cidade ou de um Estado-nação.

Agora sabemos que estamos diante de mitos.”

Portanto, aqui nossos destruidores de mitos estão afirmando o contrário – que nunca existiu uma forma original da sociedade humana; que não houve época antes da desigualdade e da consciência política; que nada aconteceu para mudar essas coisas; que a civilização e a complexidade não limitam a liberdade humana; e que a democracia participativa pode ser praticada em municípios e Estados.

Declarações tão categóricas, expostas com tanta ousadia, tornam atraentes as suas reivindicações de que eles teriam escrito uma nova história humana. Só que há dois obstáculos no caminho: primeiramente, a própria argumentação que eles constroem está em desacordo com o projeto político deles; em segundo lugar, as evidências não se encaixam com o que eles estão tentando afirmar.

O projeto político e a teoria dos autores

Duas das questões fundamentais da nossa época são:  Como realizar uma revolução de justiça social no nosso mundo presente? O que podemos aprender com a história da nossa espécie que nos ajude a ir além desse impasse?

Essas questões têm ocupado pensadores e ativistas sérios ao longo de toda a história – e agora, diante do aquecimento global, precisamos urgentemente de respostas convincentes.

São perguntas que Graeber e Wengrow também fazem e certamente é por isso que o livro tem chamado a atenção das pessoas. Há, no entanto, uma terceira pergunta que muitos de nós nos fazemos: Como a sociedade humana se tornou tão grosseiramente desigual?

De maneira surpreendente, Graeber e Wengrow não estão interessados nesta questão. Eles dizem isso explicitamente: seu primeiro capítulo é intitulado “Adeus à infância da humanidade – Ou por que este não é um livro sobre as origens da desigualdade”.

Um dos argumentos centrais do livro é que a desigualdade, a hierarquia e a violência sempre foram formas possíveis de organizar qualquer sociedade humana. Não houve uma época, dizem eles, antes da desigualdade. Além disso, embora usem bastante as palavras “igualdade” e “igualitário”, eles afirmam que a igualdade seria uma preocupação vazia, um conto de fadas, e que falar de uma “sociedade igualitária” é não dizer nada.

História, desigualdade, evolução e um giro estranho

Há um estranho giro nisso tudo. Graeber e Wengrow ignoram os notáveis novos estudos que descrevem a adaptação, ou nicho ecológico, que nossos ancestrais primatas e os primeiros seres humanos encontraram para si mesmos ao se tornarem igualitários. Isso significa que os autores também evitam a clássica visão anarquista e marxista de que, uma vez que os seres humanos um dia já foram igualitários, haveria esperança de que possamos nos tornar igualitários novamente.

O argumento conservador é que, uma vez que a desigualdade surgiu como resultado da agricultura, da vida urbana e da complexidade econômica, não haveria esperança de mudar o mundo. Graeber e Wengrow resistem a esse argumento sobre a agricultura e claramente têm esperança de que a mudança seja possível. E, fica bem nítido, o inimigo deles não é a desigualdade, mas sim o Estado.

A pergunta que eles se fazem é: como viemos a ser dominados por Estados autoritários, burocráticos e centralizados? E, ainda que as desigualdades do colonialismo, escravidão, classismo, racismo e sexismo surjam ao longo do livro, estas não são preocupações centrais.

O argumento político de Graeber e Wengrow é que as pessoas – desde o início dos tempos – sempre tiveram a capacidade de escolher entre dominação e liberdade. Para eles, as pessoas poderiam optar por escapar daquilo que eles chamam de estagnação de “pequena escala” do controle do Estado, para se tornar “pessoas livres”.

Eles rejeitam os argumentos de que existem limites ambientais e técnicos para as escolhas que as pessoas podem fazer e que de fato fazem. Para eles, em suma, as pessoas fazem a história nas circunstâncias de sua própria escolha.

A recompensa dessa posição é que ela lhes permite argumentar que, com vontade política, nós podemos ter uma revolução e uma sociedade operada por meio de assembleias populares, funcionando baseadas em consenso. Tudo isso parece excelente e libertador, mas há problemas com as evidências.

A argumentação de Graeber e Wengrow, passo a passo

Graeber e Wengrow iniciam o livro com o objetivo de desmascarar a ideia de que houve uma sociedade humana “original”, seja ela boa ou má. Para fazer isso, eles ressuscitam debates de longa data entre Rousseau e Hobbes.

Mais importante, eles expõem desde o início sua aversão (perfeitamente apropriada) ao darwinismo social do século XIX e às teorias stalinistas mais recentes sobre os “estágios da história”. Além disso, eles também expressam seu profundo desprezo pelos hobbesianos modernos da psicologia evolutiva como Jared Diamond, Napoleon Chagnon e Steven Pinker. Ambas as teorias dos estágios da história e a psicologia evolutiva são alvos sérios e importantes, todos os quais compartilhamos com os autores.

Darwinismo social e teorias de estágios da História

No darwinismo social do século XIX de Herbert Spencer e Lewis Henry Morgan e em versões posteriores, os primeiros seres humanos são primitivos, depois selvagens, seguidos por bárbaros horticultores e pastores, após os quais veio o advento da agricultura, o desenvolvimento das civilizações da Antiguidade, atravessando a Idade Média até o alvorecer da moderna sociedade capitalista. Cada passo é compreendido como um sinal de progresso moral e intelectual.

Os preconceitos explícitos e sem rodeios desse tipo não são mais aceitáveis em muitos círculos, mas o darwinismo social permanece à espreita em todos os lugares e continua sendo a feia pedra angular da maior parte do pensamento político dominante. Também continua subjazendo os racismos e o neocolonialismo de nossa era atual.

Para muitas pessoas, incluindo muitos à esquerda, a demolição das teorias dos estágios da história feita por Graeber e Wengrow será uma novidade e será experimentada tanto como uma revelação quanto como alívio, e é fácil perceber o porquê.

E há um golpe extra no ataque de Graeber e Wengrow. Embora eles não digam quase nada sobre o trabalho de Marx e Engels em seu livro, ao rejeitar as teorias dos estágios da história, eles também rejeitam implicitamente os tradicionais relatos marxistas sobre a evolução.

Isso é mais evidente no livro de Friedrich Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, onde ele argumenta que os seres humanos evoluíram em igualdade, mas com a invenção da agricultura veio a desigualdade em todas as suas formas. Até aí, tudo bem.

Contudo, Engels tirou seu marco de referência diretamente de Spencer e Morgan, cujo trabalho estava saturado de racismo branco. Considere, por exemplo, por que Engels pensava que pastores com rebanhos de animais se tornavam racialmente superiores a outros povos selvagens:

A abundante oferta de leite e carne e, especialmente, o efeito benéfico desses alimentos no crescimento das crianças, talvez expliquem o desenvolvimento superior das raças ariana e semita. É um fato que os Pueblos Índios do Novo México, que estão reduzidos a uma dieta quase totalmente vegetariana, possuem um cérebro menor do que os índios no estágio inferior de selvageria, que comem mais carne e peixe. [1]

O livro de Engel está repleto de passagens como essa, e nem de longe ele foi o único a escrever essas coisas.

Franz Boas

Graeber e Wengrow estão absolutamente corretos em querer destruir tais argumentos repulsivos. Entretanto, eles apresentam a si mesmos como se estivessem entre os primeiros a fazê-lo, e esse não é o caso, precisamos enfatizar. Franz Boas, em cuja etnografia (um dos primeiros trabalhos do tipo) sobre o povo Kwakiutl da Costa Noroeste do Pacífico, Graeber e Wengrow se baseiam extensivamente, fez isso muito antes deles.

Franz Boas era filho de Sophie Mayer, uma feminista judia que foi uma das lideranças durante a revolução alemã de 1848 na cidade de Minden, na Vestfália. Já em 1851 seu grupo de leitura estava estudando O manifesto comunista de Marx e Engels.

Boas tornou-se antropólogo. Ele fez pesquisa de campo no Canadá com o povo Inuíte na Ilha de Baffin e com o povo Kwakiutl na Ilha de Vancouver, e eventualmente acabou se tornando professor na Universidade de Columbia, em Nova York. [2]

Em 1913 ele fundou a Antropologia moderna ao demolir o racismo da teoria dos estágios da História. Em A mente do ser humano primitivo, Boas argumentou que as pessoas “primitivas” eram tão inteligentes, tão sábias e tão criativas quanto qualquer um de nós. Em 1913, Boas não estava rejeitando a visão política de sua mãe, mas como judeu e defensor dos indígenas da América, ele odiava o racismo.

Boas foi um socialista vitalício. A influência de sua mãe também ficou evidente no fato dele ter incentivado uma geração de mulheres antropólogas como Ruth Benedict, Margaret Mead, Zora Neale Hurston e muitas outras. Boas e seus alunos resolveram o problema racista dos estágios simplesmente decidindo parar de falar sobre a evolução das culturas humanas, tão poluído estava o assunto.

Só que não estamos mais em 1913. Em 1982, o livro de Eric Wolf ironicamente intitulado A Europa e os povos sem História lançou uma onda de Antropologia que era anti-imperialista, anti-racista e que levava a História a sério.

Os antropólogos têm sido agudamente sensíveis ao racismo que goteja dos binários – “simples” e “complexo”, “selvagem” e “civilizado”, “atrasado” e “avançado”, “progressista” e “retrógrado”, “desenvolvido” e “subdesenvolvido”, “superior” e “inferior”, “secular” e “religioso”, “tradicional” e “moderno”. Ainda assim, tragicamente, esses binários continuam sendo utilizados para justificar o genocídio da América indígena, o tráfico de escravos africanos, o colonialismo dos impérios brancos e, hoje, a guerra contra o Islã.

A nova teoria evolutiva e a adaptação humana

De lá para cá, antropólogos e arqueólogos já construíram uma explicação inteiramente útil sobre as origens da desigualdade humana. As figuras-chave aqui são Kent Flannery, Joyce Marcus e James C. Scott, cujo trabalho discutimos abaixo. Infelizmente, Graeber e Wengrow não se envolvem com o enorme corpo de novos estudos sobre a evolução humana.

Ao ignorar esses novos estudos, Graeber e Wengrow se colocam contra argumentos cuidadosos e agora extremamente bem documentados sobre a evolução comparativa dos primatas e a adaptação humana. O problema para eles é que esse material derrubaria sua afirmação de que não houve uma sociedade humana “original” e faria com que seus argumentos sobre a escolha parecessem um tanto tolos.

Graeber e Wengrow não negam que os seres humanos viviam de caça e coleta. Não obstante, eles são profundamente desinteressados com relação ao ambiente e às bases materiais da existência humana, e negam que essas sociedades fossem necessariamente igualitárias.

O primeiro passo na sua argumentação é dizer que a evolução humana está toda no passado e que não podemos saber o que aconteceu na época, que tudo seria especulação. Só que isso simplesmente não é verdade.

Nos últimos quarenta anos, a revolução científica foi notável e houve um enorme florescimento da pesquisa no campo da evolução humana. Existem agora muitos novos e surpreendentes estudos sobre primatas não-humanos e comportamento primata, novos estudos de arqueologia sobre os primeiros seres humanos e novas etnografias de caçadores-coletores próximos de contemporâneos.

Graças a microanálises químicas, amostragem de DNA, datação por radiocarbono e uma paciente arqueologia de lares humildes, temos aprendido muito sobre as pessoas que viviam em sociedades pré-classe e, depois, nas primeiras sociedades de classes. Entre nossos heróis estão as extensas publicações de Christopher Boehm, Frans de Waal, R. Brian Ferguson, Sarah Hrdy, Martin Jones e Laura Rival.

Esse trabalho vem transformando o estudo da evolução humana e da história humana, e seu ponto de partida pode ser surpreendente: parece que nos tornamos seres humanos ao nos tornarmos iguais. Trata-se de uma sacada notável e preciosa – mas uma sacada que atinge os próprios fundamentos da explicação de Graeber e Wengrow.

Um breve sumário da adaptação humana

Dezenas de projetos de pesquisa de campo de longo prazo com diferentes símios e macacos demonstram, para cada espécie, como uma adaptação complexa e particular lhes permite sobreviver em um ambiente específico. Essa adaptação inclui os detalhes de como se encaixam juntos suas dietas básicas, suas dietas alternativas em tempos difíceis, seus cérebros, mãos, pés, estômagos, dentes, órgãos genitais, grunhidos, canções, relacionamentos de dominação, relacionamentos de compartilhamento, criação de filhos, agressão, amor, higiene e a estrutura do grupo. [3]

Essa é a linha de base, e é também o nosso método para entender a evolução humana.

Com o passar do tempo, várias partes de uma nova adaptação se juntaram para produzir os seres humanos modernos. A versão curta da história é que os primeiros humanos eram primatas franzinos. Para sobreviver, eles tiveram que aprender a compartilhar carne e vegetais, o cuidado das crianças e a alegria sexual. Para isso, tiveram de disciplinar aqueles que possuíam pretensões como valentões e transcender as hierarquias de dominação de seus ancestrais primatas. E por pelo menos 200.000 anos, eles viveram em sociedades igualitárias onde homens e mulheres também eram iguais.

A adaptação humana, em mais detalhes

Com um pouco mais de detalhes, a imagem é a seguinte: a linhagem que se tornaria humana inventou paus de cavar para chegar a tubérculos enterrados no subsolo. Alguns homens se tornaram caçadores de emboscada para grandes animais, onde as mortes dependiam de velocidade, persistência e armas. Sabemos disso pelas mudanças nos dentes, braços e pernas, mas também pelo padrão de ferimentos nos fósseis e pela dieta e ossos encontrados em cavernas, e pela maneira como os caçadores sobreviventes contemporâneos caçam grandes animais.

A descoberta que separou a linhagem humana de todos os predadores concorrentes foi uma dieta combinada e comida cozida no fogo. Isso significava que eles precisavam utilizar bem menos calorias para a digestão. Como argumenta Richard Wrangham, essas calorias extras foram capazes de servir cérebros em crescimento.

A caça de emboscada não era uma atividade da qual se pudesse depender, e um caçador poderia talvez conseguir apenas uma grande caça em um mês. A linhagem humana mudou sua organização social para lidar com isso. A comida passou a ser dividida entre todo o grupo na base. Essa transformação significou que todos pudessem comer carne regularmente, mas que em dias sem carne os caçadores poderiam recorrer a tubérculos e outras frutas e vegetais.

Nossos ancestrais primatas e os primeiros seres humanos parecem ter gerenciado essas transformações de duas maneiras. Primeiro, para garantir que todos recebessem uma parte da comida boa, eles encontraram maneiras de limitar a competição entre os caçadores e de disciplinar potenciais valentões agressores.

Em segundo lugar, eles inventaram novos estilos de cuidados infantis. A primatologista feminista Sarah Hrdy escreveu extensivamente sobre os padrões de infanticídio de primatas e, em uma mudança fundamental nas relações de gênero, como as mães passaram a confiar em outras mulheres e homens para cuidar de seus filhos pequenos. Outra mudança é que, sem comparação entre os primatas, os seres humanos de ambos os sexos tipicamente vivem além da idade da menopausa feminina. A vantagem evolutiva parece ser, em parte, o fato de que o conhecimento e a experiência dos idosos são valiosas, mas também como eles ajudam a cuidar das crianças.

Essas e uma série de outras diferenças significaram que os seres humanos podiam se multiplicar mais rápido do que outros símios – e, em certos períodos, eles foram capazes de se espalhar rapidamente ao redor do mundo.

Esta história sobre nossos primórdios se enquadra com os tipos de sociedades que os antropólogos descreveram a partir de grupos de caçadores-coletores quase contemporâneos em todo o mundo. [4]

Nessas sociedades ninguém tem poder sobre ninguém. A chave para isso é a ausência de riqueza ou de excedente. As pessoas se mudam regularmente. Ninguém possui mais do que consegue carregar, junto de uma criança no outro quadril. Os bandos não possuem vínculos prendendo seus membros, as pessoas mudam de grupo o tempo todo, e todos têm parentes reais ou fictícios em vários outros bandos. Quando a tensão aumenta por causa de comida, sexo ou qualquer outra coisa, alguém se muda. Isso significa que nem as mulheres e nem os homens estão presos e, nessas sociedades, não há padrões regulares de desigualdades de gênero. Além disso, a capacidade de conter e restringir os agressores e valentões é outro padrão importante entre os caçadores-coletores recentes.

Vemos isso nos relatos dos antropólogos, mas há também as evidências das mudanças anatômicas partindo de nossos ancestrais símios. Desapareceram os grandes caninos nos machos, utilizados para lutar contra outros machos, assim como sumiram as grandes diferenças de tamanho entre os sexos. Os machos humanos são cerca de 15% maiores que as fêmeas. A comparação com outros primatas sugere que isso pode significar algum nível de dominação masculina, mas não muito.

Os órgãos genitais masculinos mudaram de diversas maneiras. Entre os primatas e muitas outras espécies, o tamanho dos testículos indica quão exclusivas são as parcerias sexuais. O tamanho do testículo humano cai na faixa intermediária, sugerindo formas habituais de monogamia, modificadas por alguns affairs.

As transformações no pênis humano são muitas e incríveis. Cormier e Jones argumentam, em seu livro apropriadamente intitulado O pênis domesticado, que todas essas alterações são o resultado da seleção de parceiros por escolha feminina.

As mudanças na sexualidade feminina são ainda mais marcantes. Em outros primatas, as fêmeas só fazem sexo durante a ovulação, enquanto as fêmeas humanas fazem sexo o ano todo. Isso significa que elas podem fazer mais sexo, mas também significa que a proporção entre homens e mulheres sexualmente ativos é de um para um. Em outros símios e primatas, essa proporção varia de 2 para 1 até 40 para 1. Isso sugere que se tornou mais fácil criar laços de pares e igualdade de gênero.

O primatologista e antropólogo Christopher Boehm apresentou a última peça do quebra-cabeça, em um importante artigo e em dois livros influentes. Boehm defende que a igualdade e o compartilhamento entre bandos de caçadores e coletores foram alcançados de maneira cultural e consciente.

Ele diz que nós mantemos nossa herança símia, que nos encoraja a subjugar, competir e dominar; mas que, para que os seres humanos pudessem sobreviver, tivemos de concordar conscientemente em reprimir o ciúme, a agressão e o egoísmo que transbordavam em nós, e que tivemos de reprimir o egoísmo nos outros.

As ideias de Boehm são agora amplamente aceitas. Tudo isso ocorre não porque as pessoas seriam naturalmente igualitárias ou não violentas – nós temos esse potencial dentro de nós, juntamente do seu oposto, mas entendemos que tínhamos que compartilhar e ser igualitários para sobreviver.

A teoria de Boehm também se encaixa com o fato de termos nossos grandes cérebros. Os cientistas há muito presumiam que estes teriam a ver com mãos, caça, armas e ferramentas. No entanto, com todos os outros primatas, o melhor preditor do tamanho do cérebro é o tamanho do grupo.

Entre a maioria dos primatas, permanecer em uma hierarquia de dominação depende da capacidade de construir alianças em um mundo político complexo e em constante transformação. Além disso, as chances dos machos se reproduzirem dependem de sua posição nessa hierarquia. A inteligência social é uma questão crítica. Em um grupo de dez, há 45 relacionamentos diferentes para acompanhar; em um grupo de 20 existem 1.090 relacionamentos diferentes. Em uma aldeia de 200 – bem, você pode fazer as contas.

E talvez, com as pessoas, as capacidades de conter os valentões, de viver em igualdade e de compartilhar tenham sido as conquistas cruciais de nossa inteligência social. Os cérebros que podem ser usados para competir podem ser usados para cooperar.

***

Em suma, o trabalho de pesquisadores em muitos campos torna possível apresentar um quadro coerente sobre como a adaptação humana a um determinado nicho ecológico evoluiu ao longo de dois milhões de anos e levou ao surgimento dos seres humanos há cerca de 200.000 anos. Contudo, para além de breves discordâncias com Sarah Hrdy e Christopher Boehm, Graeber e Wengrow lidam com essa impressionante variedade de novos materiais simplesmente os ignorando.

De fato, se eles tivessem abarcado esse material, teriam de aceitar tanto o caráter igualitário dessa adaptação quanto a extensão em que ela está intimamente ligada às condições materiais de ambientes específicos, e estes pontos lançariam pela janela os argumentos dos autores sobre como os seres humanos escolheriam a liberdade. Para se agarrar ao seu compromisso com a livre escolha e manter seu projeto político intacto, sua argumentação desvia o corpo e foge dos ataques.

A escrita é densa, cheia de floreios e aparente autoridade. O livro ressoa e avança em ritmo acelerado. A ilustração adequada seria desgastante e é difícil desfazer os non-sequiturs e os deslizes mentais apresentados. O leitor deve estar avisado de que frequentemente o uso de evidências no livro não é confiável e que, no que diz respeito a etnografias, se trata de uma espécie de pilha de rejeitos – então, boa sorte para os não iniciados que nunca tiveram contato os Hadza, os Montagnais-Naskapi, os Shilluk ou os Nuer, pois há loucura nos detalhes.

Agricultura, tecnologia e o conflito de classes

O advento da agricultura

A transformação da igualdade para a hierarquia, e da igualdade de gênero para uma pronunciada desigualdade de gênero, é geralmente associada à agricultura, e isso apresenta problemas consideráveis para Graeber e Wengrow. Devido ao seu interesse na capacidade de escolha, eles parecem determinados a evitar argumentos materialistas ou considerar as formas como o ambiente condiciona e limita as escolhas que as pessoas têm.

A agricultura foi inventada de forma independente em muitos lugares do mundo, começando há cerca de 12.000 anos. Caçadores-coletores compartilhavam sua comida, e ninguém podia possuir mais do que conseguia carregar. Mas os agricultores se estabeleceram e passaram a se dedicar aos seus campos e colheitas. Isso criou um potencial para que algumas pessoas agarrassem mais do que sua devida parte da comida.

Com o tempo, grupos de bandidos e valentões podiam se unir e se tornar senhores. Eles faziam isso de várias maneiras: roubo e pilhagem, cobrança de aluguel, plantio por meeiros, contratação de mão de obra, cobrança de impostos, tributos e dízimos.

Qualquer que fosse a forma assumida, essa desigualdade de classe sempre dependeu da violência organizada. E é disso que se tratou a luta de classes até bem recentemente: quem trabalhava na terra e quem ficava com a comida.

Os fazendeiros eram vulneráveis de maneiras que os caçadores não eram. Eles estavam presos à sua terra, ao trabalho que já haviam feito para limpar e irrigar os campos e aos estoques de colheitas. Os caçadores-coletores podiam ir embora, os agricultores não.

Entretanto, Graeber e Wengrow se opõem a essa narrativa – que os agricultores eram capazes de produzir e armazenar um excedente e que isso tornou possível a sociedade de classes, a exploração, o Estado e, por acaso, a desigualdade de gênero também – e eles o fazem novamente em face a notáveis novos materiais arqueológicos e de outras áreas.

Flannery e Marcus

Em 2012, os arqueólogos Kent Flannery e Joyce Marcus publicaram um livro brilhante sobre A criação da desigualdade. Eles traçam as maneiras pelas quais a agricultura levou à desigualdade em muitas partes diferentes do mundo.

Porém, eles insistem que a associação não foi automática. A agricultura tornou possível a existência de classes, mas muitos agricultores viviam em sociedades igualitárias. Em alguns lugares, o intervalo entre a invenção da agricultura e a invenção das classes foi medida em séculos, e em alguns lugares, em milhares de anos.

Flannery e Marcus também demonstram, por meio de exemplos cuidadosos, que onde bandidos ou senhores locais chegaram a tomar o poder, era bem provável que fossem derrubados mais tarde. Em muitas vilas e cidades, as elites aparecem no registro arqueológico, depois desaparecem por décadas, para reaparecer novamente mais tarde. Com efeito, a luta de classes nunca para. [5]

James C. Scott

O magnífico estudo comparativo de Flannery e Marcus foi antecipado no trabalho de Edmund Leach em seu livro de 1954, Sistemas políticos da Alta Birmânia, que mudou radicalmente a Antropologia e, posteriormente, no trabalho do cientista político e antropólogo anarquista James C. Scott. [6]

Em 2009, Scott publicou The Art of Not Being Governed: An Anarchist History of Upland Southeast Asia (A arte de não ser governado: uma história anarquista dos Altos do Sudeste Asiático, em tradução livre). O livro cobriu séculos por toda aquela região.

Scott está preocupado com as multidões de produtores de arroz nos reinos das planícies que fugiram para as colinas. Lá eles reinventaram a si mesmos como novos grupos étnicos de cultivadores itinerantes praticantes de “corte e queimada”. Alguns criaram sociedades de classes menores e alguns viviam sem classes. Todos eles tiveram de resistir às contínuas tentativas de imposição de escravidão e ataques militares dos reinos e Estados mais abaixo.

Tecnologia

De certa forma, Graeber e Wengrow se baseiam nos trabalhos de Leach, Scott, Flannery e Marcus. Wengrow, no fim das contas, fez parte das transformações na Arqueologia que Flannery e Marcus estão resumindo. A influência de Scott está em toda parte em O despertar de tudo. Entretanto, Graeber e Wengrow não gostam das ligações que os outros autores fazem entre tecnologia e meio-ambiente, por um lado, e mudanças econômicas e políticas, por outro.

Flannery, Marcus e Scott são muito cuidadosos em dizer que tecnologia e meio-ambiente não determinam as transformações, mas tornam as mudanças possíveis. Da mesma forma, a invenção da agricultura de grãos não levou automaticamente à desigualdade de classes ou ao Estado, mas tornou essas mudanças possíveis.

Relações de classe e luta de classes 

As mudanças na tecnologia e no ambiente preparam o cenário para uma luta de classes, e o resultado desse conflito de classes determina se é a igualdade ou a desigualdade que vai triunfar. Graeber e Wengrow ignoram esse ponto crucial. Em vez disso, eles constantemente questionam a forma grosseira da teoria dos estágios que torna tais mudanças imediatas e inevitáveis.

Essa alergia ao pensamento ecológico [[]] é provavelmente uma das razões por trás da sua recusa em lidar com a nova literatura sobre a evolução humana.

Toda essa literatura tenta compreender como os animais que se tornaram a humanidade construíram uma adaptação social ao ambiente que habitavam – os corpos que eles tinham, os predadores que competiam com eles, a tecnologia que podiam inventar e as formas como construíam seu sustento. Acontece que eles construíram sociedades igualitárias a fim de lidar com essa ecologia e essas circunstâncias. Não foi um resultado inevitável, foi uma adaptação.

Graeber e Wengrow, por outro lado, não são materialistas. Para eles, pensar em ecologia e tecnologia ameaça impossibilitar as escolhas e a revolução que eles desejam. É por isso que, por exemplo, eles não gostam do livro de Scott sobre a antiga Mesopotâmia, já que ele enfatiza as razões materiais pelas quais a agricultura de grãos especificamente levou à desigualdade.

Não se trata de uma questão trivial. A crise climática que estamos enfrentando traz à tona a questão de como a humanidade pode mudar a sociedade para se adaptar a uma nova tecnologia e um novo ambiente. Qualquer visão e ação política sobre igualdade ou sobrevivência humana precisa agora ser profundamente materialista.

A ausência do gênero

Vimos que Graeber e Wengrow têm pouco interesse no meio ambiente e nas bases materiais da existência humana.

Da mesma forma, eles guardam quase religiosamente uma rejeição ao conceito de classe, a discussões sobre relações de classe e conflito de classes. Graeber certamente (e presumivelmente, Wengrow também) possuía uma compreensão das relações de classe e da luta de classes. Eles sabem o que a classe faz e, de fato, de qual classe fazem parte, mas não podem, ou não querem, tratar as relações de classe como um motor de mudança social.

Igualmente impressionante é a falta de interesse de Graeber e Wengrow na construção social do gênero. De passagem, eles quase reproduzem um discurso do tipo de Bachofen sobre o matriarcado na Creta Minóica, por um lado, e, por outro, espalham estereótipos patriarcais nos quais as mulheres são nutridoras e os homens, valentões.

Como eles sustentam que a desigualdade sempre esteve conosco, Graeber e Wengrow não têm quase nada a dizer sobre as origens da desigualdade de gênero entre os seres humanos.

Existem basicamente três escolas de pensamento sobre a evolução das relações de gênero. Primeiro, há os psicólogos evolucionistas cujos argumentos são profundamente conservadores. Jared Diamond, Napoleon Chagnon e Steven Pinker argumentam que desigualdade, violência e competição seriam fundamentais para a natureza humana. Eles dizem que isso ocorre porque os homens teriam sido programados pela evolução para competir com outros homens, para que os mais fortes possam dominar as mulheres e gerar mais filhos. Tudo isso seria lamentável, diz Pinker, e felizmente a Civilização Ocidental teria domado parcialmente tais sentimentos primitivos.

A grande bióloga e ativista trans, Joan Roughgarden, descreveu corretamente essas ideias como sendo “narrativas de estupro mal disfarçadas”. Esses argumentos são de fato repulsivos e certamente foram rejeitados por Graeber e Wengrow apenas por esse motivo.

Por muito tempo, uma segunda escola de pensamento foi dominante entre as antropólogas feministas. Essa escola também essencializava as diferenças entre mulheres e homens e aceitava alguma forma de desigualdade entre mulheres e homens como um algo dado em todas as sociedades.

A terceira opção é aquela à qual subscrevemos. Há uma característica marcante no registro histórico, antropológico e arqueológico. Em quase todos os casos, onde as pessoas viveram em sociedades econômica e politicamente igualitárias, as mulheres e os homens também eram iguais; e onde quer que tenha havido sociedades de classes com desigualdade econômica, também ali os homens dominaram as mulheres.

A pergunta que tem nos obcecado é: por quê?

Graeber e Wengrow não abordam essa questão. Eles não têm explicação para o sexismo, nem estão interessados em como ou por que as relações de gênero são alteradas. Mas eles não são sexistas, eles mencionam exemplos de opressão das mulheres muitas vezes, mas de passagem. Simplesmente não se trata de algo central às suas preocupações. Portanto, aquilo que para nós parece uma congruência impressionante, para eles trata-se de uma miragem.

Forrageiros complexos

Em sua determinação de minimizar as conexões entre agricultura, desigualdade de classes e o surgimento de Estados, uma parte fundamental da explicação de Graeber e Wengrow se concentra em grupos de caçadores-coletores que de fato apresentaram desigualdades de classe, guerra e até escravidão. Os arqueólogos os chamam de “caçadores e coletores complexos” ou “forrageiros complexos”.

Graeber e Wengrow consideram esses povos como evidência de que os povos pré-históricos podiam ser igualitários e sem Estado ou violentos e desiguais. Não é isso que as evidências demonstram. [7]

Os exemplos clássicos são os Kwakiutl, estudados por Franz Boas, e seus vizinhos na Costa Oeste do Canadá e nos rios Columbia e Frazer.

Os rios e a Costa apresentavam enormes cardumes de salmões. Quem controlasse um número limitado de pontos de estrangulamento e locais de pesca poderia acumular um enorme excedente. Os galles no rio Columbia são um exemplo: havia dias em que um pequeno grupo de pessoas conseguia pescar quase 45 toneladas de salmão.

Esses números eram excepcionais, havia variação de local para local. Porém, ao longo da Costa e dos rios, quanto melhores os estoques de salmão, mais a desigualdade de classe se revela nos registros arqueológicos e nos relatos escritos.

Essas desigualdades de riqueza frequentemente eram extremas. Esses povos também possuíam tecnologias militares complexas, com grandes canoas de guerra que transportavam um grande número de guerreiros e que levavam muitos meses para serem construídas por vários homens.

Com efeito, esses povos ficavam presos aos locais de pesca, da mesma maneira como os agricultores ficavam presos aos seus campos de plantio. E, assim como com os agricultores, o armazenamento era um elemento essencial para esses pescadores de salmão. Por muito tempo no registro arqueológico, o exame de seus ossos e dentes mostra que entre 40% e 60% de sua dieta anual vinha de salmão. A temporada de deslocamento dos cardumes durava apenas algumas semanas, de modo que a maior parte dessa dieta deve ter vindo de salmão seco.

Assim como com os agricultores, restrições ambientais e novas tecnologias estavam abrindo a possibilidade para uma sociedade de classes. Nenhum desses processos é visível em O despertar de tudo.

Em vez disso, o que obtemos é a descrição padrão dos Kwakiutl para estudantes universitários de cinquenta anos atrás, como sendo o povo das esbanjadoras e gananciosas festas do potlatch. Esta descrição ignora a grande quantidade de conhecimento construído  desde então.

Hoje sabemos que aqueles banquetes caóticos eram uma celebração da vida tradicional administrada por uma classe dominante que tentava desesperadamente manter seu poder, entre pessoas que haviam perdido cinco sextos de sua população para a varíola e a sífilis, que haviam sido conquistadas e depois invadidos por garimpeiros de ouro e cujas festas de potlatch acabaram sendo proibidas pelo governo canadense. Uma tragédia profundamente material é contada como se fosse uma farsa irracional.[8]

Os pescadores da Costa Oeste do Pacífico não eram os únicos “forrageiros complexos”. Existem outros exemplos em todo o mundo, mas é notável como são poucos. Além disso, os arqueólogos não encontraram nenhum exemplo com mais de 7.000 anos antes do presente, e nenhuma evidência de atividades de guerra antes de 14.000 anos atrás.

O pequeno número e a origem recente dos forrageiros complexos pode ter a ver com uma questão tecnológica. Certamente, os Chumash ao longo da costa da Califórnia não desenvolveram desigualdade e atividades de guerra antes de 600 D.C., quando aprenderam a construir grandes canoas oceânicas na forma de pranchas, o que lhes permitiu caçar grandes mamíferos marinhos e dominar militarmente as aldeias costeiras.[9]

Graeber e Wengrow ignoram os Chumash, pegando ao invés deles o exemplo dos menos compreendidos Yurok, mais para o interior do continente.

Eles de fato escolhem um terceiro exemplo de “forrageiros complexas”, os Calusa do sul da Flórida. Em certo sentido, estes também eram pescadores com chefes no poder, guerreiros, desigualdades de classe, escravidão, caras canoas de guerra e uma dependência da pesca de mamíferos marinhos, crocodilos e peixes grandes.

Graeber e Wengrow descrevem os Calusa como sendo “um povo não agrícola”. Porém, como eles reconhecem, os pescadores Calusa eram o grupo dominante em uma unidade política muito mais ampla. Todos os outros grupos eram agricultores e pagavam tributos aos dominantes Calusa na forma de grandes quantidades de alimentos, ouro e cativos europeus e africanos escravizados. Essa comida permitia que a elite Calusa e seus 300 guerreiros em tempo integral vivessem sem trabalhar. [10]

Contra o Estado

Seguindo Flannery e Marcus, Scott e outros, para nós, a luta política central em todas as sociedades de classes até recentemente era sobre quem trabalhava na terra e quem obtinha a comida.

Graeber e Wengrow enxergam as coisas de maneira diferente. Para eles, a questão central é o poder, e o inimigo central é o Estado. Isso os leva a ignorar a classe de várias maneiras. Isso não ocorre porque eles são anarquistas. A maioria dos anarquistas sempre foi capaz de manter a classe e o poder em foco, simultaneamente.

Mas as omissões em O despertar de tudo são importantes. Graeber e Wengrow parecem tão interessados em forçar um argumento a favor de assembleias participativas e baseadas em consenso que acabam nos deixando com uma série de quebra-cabeças para resolver. Quatro breves exemplos podem ilustrar o problema.

Os indús, Natchez, sacrifícios humanos e as assembleias

Os autores não estão interessados no crescimento da desigualdade de classes nas aldeias, que tantas vezes precede os Estados nas cidades, e rejeitam a literatura sobre o tema. Também não estão interessados nos pequenos reinos, senhorios e baronatos. Contanto que não haja Estados grandes e centralizados, tudo bem.

Já vimos alguns contorcionismos que isso criou em sua descrição dos forrageiros complexos. Estes reaparecem em vários outros exemplos.

Os indús

Eles apontam, com razão, para o surpreendente e importante exemplo da antiga cidade de Moenjodaro, no Vale do Rio Indo, onde cerca de 40.000 pessoas viviam sem desigualdade de classes ou Estado.

Eles então sugerem, como fazem os historiadores da ideologia Hindutva, que Moenjodaro na verdade era organizada seguindo as linhas de castas do sul da Ásia. Só que, dizem Graeber e Wengrow, essas seriam linhas de casta igualitárias. Inicialmente a mente chega a entrar em parafuso, mas o que eles querem dizer na verdade é que a desigualdade de castas sem reis seria aceitável. [11]

Natchez

Eles consistentemente minimizam o poder de reinados tradicionais. O reino nativo de Natchez no Mississippi é um bom exemplo. Graeber e Wengrow dizem que o poder e a crueldade sanguinária do rei sol não se estendia para além de sua aldeia. Todavia, na verdade, Natchez foi uma grande força regional no comércio de escravos a serviço dos brancos donos de plantações.[12]

Sacrifício humano

Graeber e Wengrow enfatizam corretamente o importante fato de que cruéis festivais públicos de sacrifícios humanos são encontrados nos primeiros Estados ao redor do mundo. Dezenas ou centenas eram sacrificados, muitas vezes cativos de guerra, mulheres jovens ou pobres.

Eles se indignam, e com razão. Porém, eles também sentem que o objetivo desses sacrifícios era aterrorizar os inimigos, as pessoas de outros Estados. Nós pensamos, por outro lado, que o objetivo principal era aterrorizar o público assistindo ao derramamento de sangue, os súditos do cruel Estado local.

De fato, é provavelmente por isso que tal crueldade é característica dos primórdios da história de cada Estado. Essa era a época em que a legitimidade do Estado ainda era fraca e na qual o terror era mais necessário. Provavelmente também é por isso que os espetaculares sacrifícios públicos desaparecem à medida que o poder do Estado se consolida, embora a guerra e os inimigos continuem a existir.

Assembleias

As assembleias em si são um importante exemplo final. Graeber e Wengrow apontam com razão para o poder das assembleias da cidade em reinos e Estados na Antiga Mesopotâmia. Eles dizem que isso seria evidência de que os reis não eram completamente todo-poderosos. Nisso eles estão certos. Seria preciso ser muito ingênuo para acreditar que a luta de classes havia parado naqueles reinos.

Só que então Graeber e Wengrow dão um salto e sugerem que essas assembleias municipais se assemelhavam às assembleias do Movimento Occupy e de outros movimentos pela justiça social, com democracia participativa.

Não há evidências nem à favor e nem contra qualquer forma de democracia participativa na antiga Mesopotâmia, mas temos evidências enormes de assembleias municipais e nacionais em outras sociedades de classes. Todas eram dominadas pelos homens mais ricos e pelas famílias poderosas. Na antiga Esparta, os proprietários de terras dominavam, e o mesmo acontecia no senado romano e com o Rei John e os Barões. Além disso, até bem recentemente o eleitorado de todos os parlamentos da Europa estava limitado aos ricos.

Essa miopia é importante. Como muitos outros, nós entendemos reinos e Estados como a forma como as classes dominantes em sociedades desiguais se unem para consolidar e impor suas regras. Em O despertar de tudo, esse processo é invisível.

***

Graeber e Wengrow estão furiosos. Há uma energia nessa raiva que agradará aos leitores que, como nós, se desesperam com a desigualdade global, odeiam a política da elite global e temem o caos climático. De muitas maneiras, seu livro é um vento uivante repleto de ar fresco. Além disso, nós compartilhamos da hostilidade deles contra todos os Estados existentes. No entanto, seguindo em frente, a fim de deter as mudanças climáticas, vamos precisar de uma compreensão da condição humana que inclua a importância central da classe e do ambiente.


Notas

[1] Fredrich Engels, 1884, A origem da família, da propriedade privada e do Estado. O livro foi revivido como um texto-chave por feministas socialistas e marxistas em debates sobre a libertação das mulheres. Discordando do darwinismo social do século XIX (que nitidamente seguia uma linha deixada no Antigo Testamento), hoje está bastante claro que tanto o pastoreio quanto a agricultura de corte e queimada apareceram depois, e não antes, do advento da agricultura sedentária.

[2] Franz Boas, A mente do ser humano primitivo 1911; Claudia Ruth Pierpoint, The measure of America (“A medida da América”), 2004; Ned Blackhawk e Isaiah Lorado Wilner, Indigenous Visions: Rediscovering the World of Franz Boas (“Visões indígenas: redescobrindo o mundo de Franz Boas”), 2018; Rosemary Lévy, Franz Boas: The Emergence of the Anthropologist (“Franz Boas: o surgimento de um antropólogo”), 2019.

[3] Exemplos muito bons desse trabalho incluem Sara Hrdy, Mothers and Others: The Evolutionary Origins of Mutual Understanding (“As mães e as outras: as origens evolutivas da compreensão mútua”), 2005; Elizabeth Marshall Thomas, The Old Way (“O jeito antigo”), 2001; dois artigos de Steven Kuhn e Mary Stiner: “What’s a Mother To Do” (‘O que uma mãe tem de fazer“), 2006 e “How Hearth and Home Made us Human” (“Como a vida familiar e o lar nos tornaram humanos”), 2019; Loretta Cormier e Sharon Jones, The Domesticated Penis: How Womanhood has Shaped Manhood (“O pênis domesticado: como a feminilidade moldou a masculinidade”), 2015; um artigo fundamental de Joanna Overing, ‘Men Control Women? The “Catch-22” in the Analysis of Gender’ (“Os homens controlam as mulheres? O ‘mato sem cachorro’ da análise de gênero”, em tradução livre), 1987; dois livros de Christopher Boehm: Hierarchy in the Forest and the Evolution of Egalitarian Behavior (“Hierarquia na floresta e a evolução do comportamento igualitário”), 1999, e Moral Origins (“Origem da moral”), 2012; todos os livros do primatologista Frans de Waal; os dois capítulos de Brian Ferguson em Douglas Fry, ed., War, Peace and Human Nature (“Guerra, paz e a natureza humana”), 2013; Richard Wrangham, Pegando fogo: Por que cozinhar nos tornou humanos, 2010; e dois livros da bióloga trans Joan Roughgarden: Evolution’s Rainbow: Diversity, Gender and Sexuality in Nature and People (“O arco-íris da evolução: diversidade, gênero e sexualidade na natureza e nas pessoas”), 2004, e The Genial Gene: Deconstructing Darwinian Selfishness (“O gene genial: desconstruindo o egoísmo darwiniano”), 2009.

[4] Nossas etnografias favoritas sobre os caçadores-coletores semi-contemporâneos são Marjorie Shostack, Nisa: The Life and Words of a !Kung Woman (“Nisa: a vida e as palavras de uma mulher !Kung”), 1981; Jean Briggs, Inuit Morality Play: The Emotional Education of a Three-Year-Old (“Brincadeira de moralidade inuíte: a educação emocional de uma criança de três anos”), 1998; Phyllis Kaberry, Aboriginal Women: Sacred and Profane (“Mulheres aborígenes: o sagrado e o profano”), 1938, Karen Endicott e Kirk Endicott: The Headman was a Woman: The Gender Egalitarian Batek of Malaysia (“O chefe era uma mulher: o igualitarismo de gênero entre os Batek da Malásia”), 2008;  Richard Lee, The !Kung San: Men, Women and Work in a Foraging Society (“Os !Kung San: homens, mulheres e tabalho em uma sociedade forrageira”), 1978; e Colin Turnbull, Wayward Servants: The Two Worlds of the African Pygmies (Servos desobedientes: os dois mundos dos pigmeus africanos), 1978.

[5] Kent Flannery e Joyce Marcus, The Creation of Inequality: How Our Prehistorical Ancestors Set the Stage for Monarchy, Slavery and Empire (“A criação da desigualdade: como nossos ancestrais pré-históricos prepararam o cenário para a monarquia, escravidão e o império”), 2012; e James C. Scott, The Art of Not Being Governed: An Anarchist History of Upland South-East Asia (“A arte de não ser governado: uma história anarquista dos Altos do Sudeste Asiático”), 2009; Scott, Against the Grain: A Deep History of the Earliest States (“Conta os grãos: uma história profunda dos primeiros Estados”), 2017. Martin Jones, Feast: Why Humans Share Food (“Banquete: porque os seres humanos compartilham a comida”), 2007, também é bastante útil.

[6] Edmund Leach apresentou uma argumentação semelhante em 1954 em Political Systems of Highland Burma (“Sistemas políticos da Alta Birmânia”), e transformou radicalmente a Antropologia. Para uma brilhante etnografia de um grupo de rebeldes anti-classe das colinas no final do século XX, ver Shanshan Du, Chopsticks Only Work in Pairs: Gender Unity and Gender Equality Among the Lahu of Southeastern China (“Hashis só funcionam em pares: unidade de gênero e igualdade de gênero entre os Lahu no Sudeste da China”), 2003. Para a recente extensão da argumentação de Scott para a Antiga Mesopotâmia, ver Against the Grain.

[7] Isso está descrito de maneira sucinta em Brian Hayden, ‘Transegalitarian Societies on the American Northwest Plateau: Social Dynamics and Cultural/Technological Changes,’ (“Sociedades transigualitárias no planalto noroeste-americano: dinâmicas sociais e mudanças culturais/tecnológicas”) em Orlando Cerasuolo, ed., The Archaeology of Inequality (“A arqueologia da desigualdade”), 2021.

[8] Começar com Philip Drucker e Robert Heizer, 1967, To Make My Name Good: A Reexamination of the Southern Kwakiutl Potlatch (“Fazer bem ao meu nome: um reexame do potlatch dos kwakiutl do sul”); e Eric Wolf, Envisioning Power: Ideologies of Dominance and Crisis (“Visualizando o poder: ideologias de dominação e crise”), 1999, 69-132.

[9] Jeanne Arnold, ‘Credit where Credit is Due: The History of the Chumash Oceangoing Plank Canoe’ (“O crédito onde o crédito é devido: a história da canoa oceânica de pranchas dos chumash”), 2007; e Lynn Gamble, The Chumash World at European Contact: Power, Trade and Fighting among Complex Hunter-Gatherers (“O mundo chumash e o contato europeu: poder, comércio e conflito entre caçadores-coletores complexos”), 2011.

[10] Sobre os Calusa, ver The Dawn (“O amanhecer”), 150-2; Fernando Santos-Cranero, 2010, Vital Enemies: Slavery, Predation and the Amerindian Political Economy of Life (“Inimigos vitais: escravidão, predação e economia política da vida ameríndia”), 2010; e John Hann, Missions to the Calusa (“Missões com os calusa”), 1991.

[11] Rita Wright, The Ancient Indus: Urbanism, Economy and Society (“Os antigos hindus: urbanismo, economia e sociedade”), 2010; e Andrew Robinson, The Indus: Lost Civilizations (“Os hindus: civilizações perdidas”), 2015.[12] Robbie Ethridge e Sheri M. Shuck-Hall, Mapping the Mississippian Shatter Zone (“Mapeando a zona de estilhaços do Mississippi”), 2009; e George Edward Milne, Natchez Country: Indians, Colonists and the Landscape of Race (“O país natchez: colonos e a paisagem da raça”) em French Louisiana, 2015.

Sobre os autores

Nancy Lindisfarne

é antropóloga e professora aposentada da Faculdade de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres (SOAS London), onde também se formou. Publica suas reflexões no blog annebonnypirate.org junto de Jonathan Neale, com quem está publicando um livro sobre evolução humana, sociedades de classes e violência sexual, <i>Why men? A human history of violence and inequality</i> ("Por que os homens? Uma história humana sobre a violência e a desigualdade" - Hurst, 2023). Seu livro anterior foi <i>Afghan village voices</i> ("Vozes de um vilarejo afegão"), com Richard Tapper.

é escritor. Seus livros são "People’s History of the Vietnam War", "Tigers of the Snow", "What’s Wrong with America" e "Stop Global Warming". Ele bloga com Nancy Lindisfarne no Anne Bonny Pirate (annebonnypirate.org).

Cierre

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