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Javier Milei e Sergio Massa disputarão o segundo turno na Argentina – Foto: Natacha Pisarenko/ Estadão Conteúdo

Mesmo derrotada no primeiro turno, não podemos subestimar a extrema direita

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Tradução
David Cavalcante

A extrema direita chegou às portas do poder na Argentina e pode ganhar, colocando fim ao “empate hegemônico” que o país vive desde 2001. A esquerda deve se unir e priorizar a luta por todos os meios necessários para evitar um novo desastre político na América Latina.

É difícil exagerar a comoção política que está significando a eleição presidencial deste ano. Mais ainda, não é simples captar todas as suas dimensões. Em primeiro lugar, a extrema direita chegou às portas do poder. O que parecia impossível, agora parece inevitável. Uma força política quase inexistente, que não conta com estrutura partidária, candidatos provinciais, senadores ou governadores, alcançou uma posição surpreendente em um sistema político desenhado para evitar a entrada de forças exteriores. E não obstante, reduzir o terremoto de Javier Milei seria subestimar a magnitude das mudanças em curso. Como costuma acontecer, é apenas o sintoma (“mórbido”, para utilizar a expressão habitual) de mudanças tectônicas que não são detectáveis imediatamente.

O desempenho de Javier Milei está estritamente relacionado com o que provavelmente seja o acontecimento fundamental desta conjuntura: a crise do peronismo, o corpo celeste em torno do qual orbita o sistema político argentino desde 1945. O peronismo não é um partido como qualquer outro. Sua capilaridade social, sua simbiose com as estruturas do Estado, suas redes territoriais (militantes ou clientelistas), seu vínculo com o movimento operário e os movimentos sociais, o tornam uma força política de uma resiliência poucas vezes vista. Entre 1946 e 1983, nunca perdeu uma eleição em que esteve presente (isto é, em que não a tivesse proscrito). Seu piso eleitoral quando se apresentou de forma unificada girou sempre em torno de 40% em eleições presidenciais. No marco do sistema atual de primárias, seu resultado mais modesto foi em 2015, quando alcançou 38% dos votos, mas disputava nessa oportunidade com outra lista peronista que chegou a 14%. No dia 13 de agosto passado, foi às urnas unificado (mas dividido em duas listas internas, o que provavelmente evitou uma queda maior) e sua cauda de votos se reduziu a 27%. Pela primeira vez, o peronismo está a ponto de perder a maioria no Senado e está cedendo o controle de governos provinciais considerados historicamente como seus bastiões (Santa Cruz, San Juan e Chaco são exemplos notáveis).

Diante de cada uma das crises que o país viveu desde a restauração democrática (1989, 2001, 2019), o peronismo apareceu como o “partido da ordem”, com capacidade para pôr um limite ao colapso estatal e restabelecer a governabilidade. Devido a esta capacidade particular, uma crise do peronismo dessa magnitude é em si mesma, até certo ponto, uma crise do Estado.

Todavia, o impacto das mudanças que estão ocorrendo não se limita ao peronismo. A direita tradicional, que se preparava, segura de si mesma, para receber o poder no marco de uma alternância eleitoral convencional, está enfrentando agora seu próprio possível colapso. A vencedora da primária de Juntos por el Cambio foi Patricia Bullrich, a candidata com o programa de ajuste mais agressivo e que respaldou abertamente o uso da repressão contra a mobilização social. Se não fosse pela irrupção de Milei, seria ela quem com justa razão monopolizaria a atenção: pela primeira vez desde o retorno à democracia, um partido majoritário apresenta um candidato de orientação abertamente ultradireitista. Não obstante, Juntos por el Cambio experimentou um retrocesso eleitoral em comparação com a péssima eleição de 2019, ao fim do mandato de Macri. A direita, que confiava em voltar ao poder, encontra-se agora mais perto de uma crise interna do que de alcançar o governo, e corre o risco de ficar excluída do segundo turno e de enfrentar divisões internas.

Por último, a eleição de 13 de agosto registrou o índice de abstenção mais alto da história das eleições presidenciais, com uma participação de 69% do eleitorado registrado. O nível de abstenção aumentou em mais de 6 pontos em relação a eleição de 2019, o que representa um volume de votantes que poderia ser determinante no resultado final.

No contexto de uma provável crise orgânica do Estado, segundo o termo cunhado por Gramsci nos anos 1930, o acesso ao poder da extrema direita levantaria a possibilidade de que se materialize o que as relações de força sociais do período anterior haviam conseguido impedir: uma terapia de choque neoliberal que rompa de forma duradoura o impasse social ao ajuste imposto com a crise de 2001. Esta situação poderia dar lugar a uma saída “cesarista”, seguindo a terminologia de Gramsci, que busque desbloquear o empate social que estamos experimentando mediante uma solução de força.

A economia e seus descontentamentos

Embora haveria muito a analisar em relação às mudanças sociológicas na classe trabalhadora, o impacto ideológico da pandemia ou as tendências a individualização da força de trabalho, há uma explicação dos acontecimentos atuais mais evidente: a longa fase de estagnação que afeta o capitalismo argentino desde 2011-2012, e que se converteu em recessão e crise aberta a partir de 2018. Ao longo de um extenso processo inflacionário, o poder aquisitivo dos salários na Argentina experimentou uma diminuição de 25% entre dezembro de 2017 e 2023, sendo esta redução ainda mais marcante entre os trabalhadores informais. Apesar do ponto mais crítico desta queda ter sido registrado em 2018 durante o governo Macri, o governo peronista continuou a tendência descendente e agravou a brecha entre os trabalhadores formais e informais, diferença que se tornou mais evidente a partir da pandemia.

Nesse período também houve destruição do emprego privado formal e aumento do informal. Isto é, os trabalhadores informais viram diminuir seu poder aquisitivo ao mesmo tempo que ocupavam uma faixa cada vez mais significativa da força de trabalho global. Este novo panorama social da classe trabalhadora faz ranger especialmente o peronismo, que além de tudo se vê afetado por ser governo em um momento de crise e por estar afetando sua própria base social mediante as medidas de ajuste que está implementando. Essa deterioração contínua da vida material da classe trabalhadora, produzida em um período que envolveu governos das duas grandes coalizões políticas, assentou as bases para um crescente mal-estar social que finalmente se transformou em uma crise geral de representação.

É provável que estejamos nos dirigindo em direção a uma crise orgânica do Estado. Gramsci se valia desse termo para ilustrar uma ruptura radical dos laços entre representantes e representados como um sintoma de uma crise hegemônica geral. Embora o colapso dos partidos tradicionais possa ser o sinal mais visível de uma crise orgânica, esta tende a se expandir a todas as mediações da sociedade civil. À medida que esta crise se aprofunda, conduz a uma diminuição da capacidade das classes dominantes em manter a liderança por meios convencionais. Todavia, numa crise desse tipo existe uma relação assimétrica no que se refere à capacidade de intervenção entre as classes dominantes e as classes subalternas, que apenas é compensada em situações excepcionais de ofensiva das massas. Segundo Gramsci:

Os diversos estratos da população não possuem a mesma capacidade de orientar-se rapidamente e de reorganizar-se com o mesmo ritmo. As classes dominantes tradicionais, que tem um numeroso pessoal adestrado, mudam homens e programas e reabsorve o controle que estava escapando das suas mãos com uma celeridade maior do que a que as classes subalternas possuem.

A irrupção explosiva de uma figura alheia ao sistema político, em um contexto de crise política geral, não teria sido estranha a Gramsci, que analisou o processo político da Europa dos anos 1930. Como explica Stathis Kouvelakis:

A crise orgânica desencadeia uma recomposição do pessoal político, que pode tomar diversas formas – desde um bonapartismo que preserva a fachada parlamentar, até diversos cesarismos e o “estado de exceção” -, com o objetivo de resolver a situação em interesse do bloco dominante. Portanto, o campo está aberto a soluções de força, representadas pelos “homens providenciais” de Gramsci.

O “homem providencial” que pode impor uma “solução de força” não necessariamente deve reunir condições pessoais muito destacadas. Recordemos os comentários ácidos de Marx sobre Luís Bonaparte, perguntando-se que circunstâncias excepcionais “permitiram a um personagem medíocre e grotesco representar o papel de herói”.

A longa crise argentina

A crise econômica atual não é um fenômeno inesperado, mas sim algo que se enquadra em uma história de ciclos recorrentes. A Argentina se caracteriza por sua constante instabilidade política e econômica. Como tem demonstrado pesquisas de diferentes escolas econômicas (Piva, Gerchunoff), uma das raízes dessa instabilidade está na força relativa da sua classe trabalhadora, a qual obstaculiza uma reestruturação capitalista de longo alcance que resolva os problemas macroeconômicos mediante um achatamento duradouro dos salários.

Ademais, é necessário considerar uma segunda razão que envolve fatores de caráter internacional, vinculados a transformações na produção a nível global das últimas décadas: a tendência secular do país a um declive econômico e social que começou há quase meio século com a crise do estado de bem-estar peronista, no marco da internacionalização produtiva e da crise dos modelos de desenvolvimento nacional do pós-guerra. Desde então, a sociedade argentina experimentou sucessivos saltos nos índices de pobreza e desigualdade, o que levou a que cada geração tenha sua própria percepção direta de decadência, ainda quando seus pontos de referência, por razões etárias, sejam diferentes. O país passou de uma taxa de 4% de pobreza na década de 1970 para alcançar 40% nos anos recentes, reflexo de uma tendência de regressão social quase constante e com poucos paralelos no mundo. A tendência à crise orgânica se converte, consequentemente, em um traço distintivo de uma sociedade que mescla relações de força entre as classes que impedem uma resolução conclusiva da instabilidade em benefício das classes dominantes, ao mesmo tempo que experimenta uma constante deterioração econômica que alimenta as tensões sociais.

Embora este declive se desenvolva gradualmente e de modo não linear, com períodos de caídas agudas seguidos de recuperações parciais, em momentos críticos o mal-estar social adquire um caráter explosivo, como observamos na crise de 2001. O kirchnerismo surgiu em 2003 como uma resposta política àquela crise, aproveitando condições políticas e econômicas excepcionais. Neste momento, estamos sendo testemunhas da desarticulação desse dispositivo que conseguiu resolver a crise há duas décadas. Ademais, a crise que afeta o kirchenerismo está arrastando consigo uma crise mais ampla dentro do peronismo, cuja magnitude ainda não podemos avaliar completamente.

A particularidade da situação atual se situa no fato de que, pela primeira vez, o peronismo está lidando desde o poder com as crises agudas que periodicamente afetam o país. É difícil exagerar a importância deste fenômeno. Como costuma ocorrer, a formação de uma base de massas para a extrema direita não pode ser entendida sem uma prévia ruptura dos vínculos entre as classes populares e sua representação política tradicional. Se o peronismo historicamente desempenhou o papel de um fator estabilizador que amorteceu a tendência recorrente à crise orgânica, a atual crise do peronismo poderia abrir a porta a uma crise política de maior magnitude.

Uma ideologia popular de direita

Inicialmente, as interpretações sobre a irrupção de Milei focaram no voto de protesto que estava por trás da sua irrupção. Isso explica parte do fenômeno: há um mal-estar social ainda relativamente líquido que encontrou em Milei o instrumento mais eficaz para fazer notar seu descontentamento. Ademais, houve fatores contingentes e conjunturais que influenciaram no seu rendimento eleitoral, como a separação de 17 províncias que levaram a cabo suas eleições em datas diferentes da eleição nacional. Essa separação, impulsionada principalmente por governantes peronistas que desejavam evitar a influência negativa de uma eleição nacional que consideravam desfavorável, teve um impacto decisivo nos resultados. Naqueles distritos onde se celebraram simultaneamente eleições locais, o respaldo a Milei foi 13 pontos percentuais menor do que nas províncias que separaram as datas das eleições. Entre os fatores conjunturais, também é importante o respaldo econômico e logístico que o peronismo brindou a Milei, segundo o cálculo de que fragmentar o voto da direita aumentaria suas possibilidades na eleição.

Todavia, nem o voto de protesto nem os fatores conjunturais são suficientes para explicar os resultados eleitorais de 13 de agosto. Em primeiro lugar, porque a forma que um mal-estar social encontra para se expressar não costuma ser completamente inócua. A natureza até o momento flutuante e heterogênea dessa base eleitoral não deve ocultar um processo em desenvolvimento: a consolidação crescente de uma ideologia popular de direita, com a qual Milei contribuiu ao fazê-la chegar a setores sociais que estavam fora do alcance da direita tradicional. Além disso, o estado flutuante da sua base eleitoral se modifica na medida em que o processo político avança, já que o ascenso de Milei provoca efeitos retroativos sobre sua base. Como costumava dizer Ernesto Laclau, o “representante cumpre uma função ativa” sobre o representado. Os líderes políticos não são apenas o resultado das relações de força e das correntes de opinião presentes na sociedade, mas também as modelam e incidem sobre elas. Não estamos lidando apenas com um mal-estar que irrompe com formas aleatórias, como também com a metabolização reacionária desse mal-estar. Embora essa situação não seja necessariamente irreversível, é um elemento que não podemos ignorar.

Pode ser útil a análise de Nancy Fraser sobre esses temas. Fraser cunhou um termo para explicar o auge global da extrema direita: “neoliberalismo progressista”. Utiliza este conceito para descrever o “bloco histórico” que combinou políticas de “reconhecimento” progressistas. Os políticos da chamada “terceira via” (Clinton, Blair, Schoeder, e mais adiante seus herdeiros: Obama, Hollande, Matteo Renzi etc.) implementaram políticas neoliberais ao mesmo tempo que adotaram de maneira superficial as demandas multiculturais, ecologistas e dos direitos feministas e LGBTQ+. A classe trabalhadora agredida pelas políticas econômicas regressivas, e às vezes incomodada pelos avanços reais ou aparentes de grupos oprimidos (mulheres, LGBTQ+ etc.), começou a reagir contra o bloco neoliberal progressista adotando um perfil “populista reacionário” que unificou demandas de proteção social com o rechaço às políticas de reconhecimento de seu adversário.

O caso argentino encontra um paralelo com esta situação, mas apresenta uma diferença importante. Por um lado, o governo aplicou uma política econômica que continuou o ajuste ortodoxo do mandato anterior, e se presta a deixar o governo com quase todos os indicadores sociais (pobreza, salários, desigualdade) piores do que na saída de Maurício Macri. Por outro lado, adotou um enfoque progressista em vários aspectos, como a legalização do aborto, a promoção da linguagem inclusiva, a implementação de cotas trabalhistas para pessoas trans, entre outros. Mas o caso argentino permite agregar um elemento adicional. A diferença com o neoliberalismo progressista de Fraser é que no caso do peronismo, este realizou o ajuste neoliberal em nome da luta contra o ajuste neoliberal. A isso se refere Pablo Seman quando fala da “mímica do Estado”: a pregação do “Estado presente” foi a cobertura ideológica de uma progressiva deterioração das prestações materiais que o Estado proporciona em nome da redistribuição de renda e da justiça social. Isso é parte das razões que explicam a resposta antiestatal que o neoliberalismo progressista recebeu. Se Trump, Le Pen, Meloni são críticos, pelo menos aparentemente, do globalismo neoliberal, Javier Milei é um extravagante anarcocapitalista que sonha com a eliminação completa do Estado.

A deterioração das condições de vida durante um governo que promove uma narrativa progressista e redistributiva abriu caminho para que um discurso antiestatal encontrasse eco em diversos estratos sociais, inclusive entre aqueles que dependem significativamente da proteção social do Estado para subsistir. O colapso de uma experiência populista, que manteve sua retórica de redistribuição inclusive quando aplicava duras medidas de ajuste, teve como resultado que os custos das políticas ortodoxas não foram atribuídos a seus principais defensores intelectuais. Esse processo desmoralizou e confundiu a classe trabalhadora, o que resultou em que o mal-estar social se inclinasse à direita. A crise do progressismo governamental se estende à crise dos valores e ideias associados a ele, como a redistribuição progressiva da renda, o papel ativo do Estado, os direitos humanos e a mobilização social. Como costuma ocorrer, os escombros do muro que desmorona caem sobre todo o espectro da esquerda e das suas ideias.

De acordo com os estudos de sociologia eleitoral, Milei reuniu apoio em todas as classes sociais e faixas etárias. Em termos ideológicos, os estudos indicam que aproximadamente um terço de seus eleitores correspondem a um perfil de natureza ultradireitista, outro terço representa um voto de orientação neoliberal clássica e o terço restante provém de uma base popular e “pro-Estado”, afetado pela indignação e confusão. Ainda se destacarmos esse último segmento e somarmos o voto, claramente ideológico, que Patricia Bullrich obteve nas eleições primárias (16%), é inegável que existe uma base eleitoral para a extrema direita entre 25% e 30% do eleitorado. São cifras muito altas, que podem proporcionar uma base de massas para um experimento neoliberal autoritário.

Essa base eleitoral encontra-se ainda em um estado fluido e instável. Não obstante, sua mera existência põe em evidência o otimismo excessivo que tem prevalecido na esquerda, que assume que um eventual governo de Milei rompera necessariamente os vínculos com sua base eleitoral. Muitas razões ou sequências de acontecimentos (êxito em um plano de estabilização, desmoralização dos setores populares combativos, desafetação política da classe trabalhadora) poderiam nos levar a uma alternativa oposta, tal como sucedeu no caso de Bolsonaro no Brasil. Apesar de o ex-capitão ter perdido as eleições em um segundo turno muito apertado (51/49), conseguiu coesionar sua própria base, eliminando qualquer lealdade prévia de seus eleitores aos partidos tradicionais.

É inviável um governo de Milei?

Uma forma de diminuir a percepção do perigo que representa a extrema direita é dar como garantido que um governo de Milei careceria de apoio político e se desmoronaria sob a pressão da mobilização popular. Este é o enfoque predominante na Frente de Izquierda (FIT-U). O PTS chegou a comparar Milei com Liz Truss, a primeira-ministra britânica que em outubro de 2022 foi expulsa do poder 45 dias depois de ter assumido. Esta é uma previsão perigosa, em boa medida imaginaria e feita na medida das necessidades políticas, não da luta de classes, mas sim da campanha presidencial da Frente de Esquerda. A candidatura da FIT-U tem o problema de que poderá deparar-se com uma resposta democrática da sociedade que poderá tentar fechar o caminho a Milei recorrendo ao voto útil, que pode ter um impacto prático nesse sentido, isto é, recorrer ao peronismo. Centrar a campanha eleitoral em diminuir o perigo que Milei representa, com o objetivo de influenciar ligeiramente no resultado eleitoral da Frente de Esquerda, é uma estratégia mesquinha e irresponsável.

Não é surpreendente que o PTS minimize a importância da ameaça colocada pela extrema direita, dada a sua atitude em situações prévias similares. Diante do ascenso de Bolsonaro em 2018, o PTS argumentou que “um eventual governo de Bolsonaro já nasce fraco” e, em outro texto, ampliando sua posição, sinalizou que “quando Bolsonaro quiser aplicar privatizações, legislações degradantes das condições de trabalho e de vida da população trabalhadora e popular, entre outros ataques contra os direitos democráticos, das mulheres e das minorias oprimidas, deverá enfrentar à luta de classes (…) Em um contexto de crise política e econômica e de polarização, podemos esperar grandes explosões sociais”. Na sua análise da Turquia de Erdogan ou da Frente Nacional francesa desenvolveram raciocínios similares. Nenhuma de suas previsões se confirmou.

Esses erros de análise não são casuais, mas refletem limitações teóricas e estratégicas, que se manifestam em diversos aspectos: a tendência a subestimar os riscos democráticos que a extrema direita representa, a suposição de que só poderia liderar governos necessariamente fracos, a fantasia de possíveis explosões sociais como subproduto da sua chegada ao poder, o desprezo pelas tarefas unitárias defensivas e a ênfase no combate às correntes reformistas ou progressistas, que frequentemente parecem ser um inimigo mais importante do que a própria extrema direita.

Essa concepção ultraesquerdista fez com que o PTS chamasse o voto nulo em todas as eleições recentes na América Latina que se resolveram em um segundo turno entre uma força progressista ou de centro-esquerda e a extrema direita: Lula contra Bolsonaro, Castillo contra Fujimori e Boric contra Kast. Seus aliados na Frente de Esquerda mantiveram posições similares. A cegueira ultraesquerdista diante do perigo da extrema direita não é uma propriedade exclusiva do estalinismo dos anos 1930.

Governabilidade e “populismo autoritário”

Em qualquer caso, teremos adiante batalhas decisivas. Thatcher só conseguiu avançar depois da grande derrota da greve dos mineiros de 1985 e Menem depois de derrotar as grandes lutas contra as privatizações. O futuro é incerto como poucas vezes. A legitimidade de um eventual governo de Milei será mais frágil do que o resultado eleitoral dará a entender. Não se pode descartar que uma resposta social de grande amplitude e uma instabilidade política e parlamentar leve seu governo a um beco sem saída. Todavia, não se deve exagerar essa possibilidade nem brincar com fogo na beira do precipício.

As condições para dar sustentabilidade política e parlamentar a um futuro governo de Milei podem ser construídas (Bullrich, por sua parte, não teria esse problema). Poderia produzir-se uma fratura da direita que somaria um setor relevante a uma nova coalizão de governo. Também é provável um apoio parlamentar de grande parte do peronismo das províncias do interior do país, que já deu governabilidade a Macri, e que além disso governam territórios onde Milei teve um ótimo desempenho na eleição presidencial. Enquanto se resolve a disputa interna do peronismo em relação ao próximo ciclo, o que poderia levar anos, é provável que uma parte significativa do mesmo chegue à conclusão de que não seria mau negócio suportar um novo governo que pode se ocupar de uma carga pesada que atemoriza a todas as forças políticas (plano de estabilização, reformas estruturais, enfrentamento com o movimento de massas). Nesse sentido, já houve setores que mostraram sinais de aproximação, e inclusive não faltaram dirigentes relevantes da burocracia sindical que tornaram pública sua aproximação. Um eventual governo encabeçado por Milei, especialmente se conseguir superar uma crise de curto prazo, poderia dar início a uma reconfiguração política sem precedentes. Isso implicaria a possibilidade de romper os outros dois blocos políticos e atrair setores de ambas coalizões, obtendo o respaldo parlamentar necessário para consolidar sua gestão.

Tanto Milei como Bullrich parecem não temer, pelo menos da mesma maneira que o governo Macri, a mobilização social. Pelo contrário, como sucedeu, por exemplo, na França de Sarkozy ou no thatcherismo, estão dispostos a utilizá-la a seu favor, respondendo de maneira autoritária e assumindo um perfil que poderíamos denominar populista: o povo representado em seu presidente contra minorias corporativas que defendem seus “privilégios”. Trata-se de uma direita de combate que tentará aproveitar a combinação de erosão parcial da capacidade de resistência, depois de anos de crise econômica e de desmobilização controlada desde cima, para isolar o protesto social, de modo que apareça como um bloqueio para a resolução dos problemas econômicos do país.

Aqui o termo “populismo autoritário”, utilizado por Stuart Hall para caracterizar Thatcher, pode ser útil. Independentemente da sua viabilidade, Milei anunciou que recorrerá ao plebiscito quando o Congresso se opuser a suas medidas. Milei pode reivindicar representar diretamente o povo contra a oposição política ou social que será acusada de antidemocrática e de não deixar governar. Estaríamos frente a um populismo plebiscitário, no qual Milei irá falar em nome do povo contra os interesses setoriais (todos aqueles aos quais se refere mediante o conceito vazio de “casta”: políticos, dirigentes sindicais, piqueteiros etc). Uma construção discursiva desse tipo teria um precedente na crítica macrista aos “privilegiados”. Na linguagem do governo Macri, “privilegiados” eram as máfias e os políticos corruptos, mas também o sindicalismo, o trabalhador formal protegido por direitos trabalhistas que “inibem a geração de emprego” ou quem se localiza “por cima da lei”, por exemplo um piqueteiro que bloqueia um acesso à cidade. Embora não seja necessariamente majoritária, esse tipo de construção ideológica leva anos sedimentando em setores relevantes da sociedade.

Esta é simplesmente uma hipótese, já que em uma situação tão incerta como a atual, ninguém pode ter certeza sobre o futuro. Todavia, trata-se de um cenário possível respaldado por precedentes históricos e condições factíveis. Em um contexto crítico desse tipo, não é razoável tomar riscos desnecessários.

Levar a sério o risco da extrema direita

É curioso notar que existem duas respostas contrastantes por parte dos setores progressistas frente ao ascenso da extrema direita. Por um lado, alguns se veem paralisados pelo pânico, às vezes com caracterizações exageradas e sem senso de proporção. Por outro lado, também é comum observar em um outro setor uma sensação generalizada de incredulidade. O que até 13 de agosto era um prognóstico do tipo “isto não pode passar” (uma vitória da extrema direita) se converteu em alguns casos em um “isso não deve ser tão grave”, que na verdade é uma forma adaptada do primeiro. E o que acontece é uma dissonância cognitiva: o desconforto psicológico gerado pela experêincia de percepções contraditórias, geralmente a contradição entre crenças previamente estabelecidas e a informação proveniente da realidade, se resolve por meio de ajustes secundários que permitem restituir a congruência e o essencial das ideias iniciais.

A extravagância de algumas propostas de Milei facilita a incredulidade: a venda de órgãos, um mercado de menores de idade, a privatização de ruas. Ninguém pensa que essas medidas são exequíveis no planeta Terra. Inclusive sua proposta de destaque, o abandono da moeda nacional em favor do dólar, é altamente problemática em termos de viabilidade. Porém, nas propostas extravagantes não está o problema. Há, no entanto, um pacote de medidas que não está no terreno da fantasia, cuja aplicação exitosa implicaria uma derrota de longo prazo para a classe trabalhadora: uma reforma trabalhista agressiva, como a que levou a cabo o ultraliberal Paulo Guedes no governo Bolsonaro, um ajuste fiscal baseado na privatização de empresas públicas e da demissão massiva de trabalhadores do Estado, um ataque em grade escala à educação e à saúde pública ou uma transformação do regime de previdência que elimine o regime de repartição com o Estado, entre outras coisas. Por outro lado, é evidente que a extrema direita buscaria lançar uma ofensiva ambiciosa no âmbito da igualdade de gênero e contra os direitos LGBTQ+ (ilegalização do aborto, eliminação da educação sexual, das cotas trans, etc.) gerando um aval estatal aos discursos de ódio, homofóbicos e patriarcais, tal como fizeram Trump e Bolsonaro.

Uma política de choque tão antipopular não poderá prescindir de um endurecimento autoritário do Estado: a perseguição judicial aos líderes sociais, um respaldo à violência policial, o livre acesso ao porte de armas, a revitalização das FFAA, o induto aos militares condenados, uma ação para debilitar a influência dos sindicatos nos locais de trabalho e, acima de tudo, o combate à presença dos movimentos sociais piqueteiros nos bairros populares, sujeito social fundamental do último ciclo político. (Esse último poderia ser o inimigo preferido de um futuro governo de extrema direita, que poderia contar com o respaldo de uma parte da burocracia sindical e encontraria algum apoio em um certo sentido comum “antipiqueteiro”, construído pelo governo ao longo dos últimos anos aproveitando o cansaço social provocado pela presença constante de manifestações de rua).

Em resumo, se essas medidas se concretizarem exitosamente, significaria uma grande regressão social e democrática, levando a um endurecimento autoritário do Estado e uma ação de disciplinamento social e desmobilização de protestos. Em outras palavras, representaria uma derrota estratégica para a classe trabalhadora.

Como construir uma base de massas sustentável em meio a uma terapia de choque tão agressiva? A principal fonte de um eventual apoio, passivo ou ativo, é que ao futuro governo lhe anteceda por uma crise econômica catastrófica que ofereça autorização para medidas drásticas. No momento em que se escreve esse texto, estamos muito próximos de uma crise desse tipo. A experiência do menemismo, a hiperinflação de 1989-1991, semeou o desespero a população, liquidou o governo anterior e permitiu que Menem assumisse com uma delegação enorme de autoridade presidencial e com um cheque em branco para tomar medidas impopulares “que impuseram a ordem”. Como mostra Adrián Piva, essa catástrofe econômica ofereceu uma hegemonia débil em torno a um consenso negativo: a estabilidade econômica construída sobre o choque da hiperinflação precedente. Perry Anderson, no mesmo sentido, ao analisar os planos de estabilização na América Latina, escreveu: “Existe um equivalente funcional ao trauma da ditadura militar como mecanismo para induzir democrática e não coercitivamente a um povo a aceitar as mais drásticas políticas neoliberais: a hiperinflação”.

Um governo de extrema direita (nesse aspecto Bullrich e Milei não apresentam diferenças significativas) jogará também com a fragmentação da classe trabalhadora e as contradições entre as vítimas das políticas de ajuste: setores informais contra os “privilégios” da classe trabalhadora sindicalizada, trabalhadores contra desempregados que sobrevivem com a assistência social, trabalhos “uberizados” contra sindicatos, etc.

Em qualquer caso, é importante se prevenir que um processo agressivo de contrarreformas não requer necessariamente do apoio massivo da população. Para remeter ao exemplo clássico do thatcherismo, que já mobilizou uma infinidade de estudos, a ofensiva de Thatcher contra o Estado social, não contou com a adesão majoritária da população (como mostram os textos clássicos de Bob Jessop e outros publicados na New Left Review). A dominação pode aceitar formas que combinem consentimento e coerção, porém, também resignação, apatia ou desinteresse.

Uma saída cesarista ao impasse social

A extrema fragilidade da situação econômica no qual ocorre o surto reacionário é uma característica que diferencia a situação argentina da onda global de governos de ultradireita. Não se pode subestimar o risco que implica essa junção. Não é necessário apontar a hiperinflação alemã dos anos 1920 para ilustrar esse ponto. Esse cenário tem vários precedentes recentes, um deles especialmente expressivo. Durante os anos 1980, o Peru também sofreu os efeitos de uma longa década de estancamento que se acelerou ao fim com um pico hiperinflacionário. Nesse contexto assumiu Alberto Fujimori. É importante lembrar que seu ascenso eleitoral meteórico foi com uma força política marginal (Cambio 90), basicamente eleitoral, sem grandes apoios sociais ou empresariais. A catástrofe econômica o forneceu a legitimidade para aplicar uma terapia de choque: um plano de estabilização, privatização de empresas públicas e liberalização da economia, ao passo que um endurecimento autoritário incluiu o fechamento do Congresso. A remodelação neoliberal da sociedade peruana e a violação massiva de direitos humanos (as vítimas se contam por dezenas de milhares) constituíram um ponto de inflexão histórico do qual a classe trabalhadora peruana ainda não conseguiu se recuperar.

É curioso que essa correlação (crise inflacionária – governo autoritário) não está suficientemente presente no debate público da esquerda, sobre tudo em uma situação onde a inflação mensal chegou a dois dígitos e as reservas líquidas do Banco Central são negativas. Não se pode descartar uma crise bancária em caso de um dos dois candidatos de ultradireita vença, sobretudo tendo em conta que eles parecem ter consciência do benefício que lhes daria detonar o pânico econômico, anunciando propostas radicais “pró-mercado” de efeitos catastróficos em curto prazo (como a saída abrupta do “cepo” bancário1, a eliminação dos limites às exportações, a dolarização etc.). O bom resultado de Milei, em 13 de agosto, já mostrou uma tendência ao pânico nos “mercados”: queda nos títulos públicos, aumento do “risco país”, estagnações das ações.

Em seu livro sobre o último ciclo político, Fernando Rosso retoma o termo “empate hegemônico” dos gramscianos argentinos dos anos 1970, que utilizaram para descrever o longo período de instabilidade na Argentina entre 1955 e 1976. Rosso recupera o termo para caracterizar a dinâmica política durante os últimos vinte anos em que as relações sociais de força impediram que as classes dominantes lançassem uma ofensiva completa. Porém, um impasse desse tipo pode encontrar uma oportunidade de desbloqueio com a combinação de catástrofe e autoritarismo político. Precisamente, a análise de Gramsci conduz a avaliar um cenário desse tipo, daí o caráter “catastrófico” do “empate catastrófico”. Se Rosso se inclina a pensar que Milei voltará a cair no “cemitério dos projetos hegemônicos” que é a sociedade argentina, estaria descartando prematuramente uma alternativa tipicamente gramsciana: que Milei encarne a possibilidade de romper esse bloqueio.

É impressionante a referência a Gramsci para analisar o “empate hegemônico”, porém não para avaliar a hipótese central que o pensador italiano colocava como uma possibilidade de solução para esse tipo de situação. O que Gramsci detectou é que nas situações de empate nas relações de força que se geram condições para uma liderança alternativa que tenha um efeito catastrófico para as forças empatadas. Dizia Gramsci:

“Se pode dizer que o cesarismo expressa uma situação na qual as forças em luta se equilibram de uma maneira catastrófica, ou seja, de uma maneira tal que a continuação da luta não pode concluir senão com a destruição recíproca. Quando a força progressiva A luta com a força regressiva B, não só pode ocorrer que A vença B, ou vice-versa, pode ocorrer também que não vençam nenhuma das duas, que se debilitem reciprocamente e que uma terceira força C intervenha desde o exterior dominando o que resta de A e de B.”

Gramsci em suas análises muito provavelmente consideram em primeiro lucar as condições específicas que permitiram a emergência do fascismo italiano. A esse respeito, é relevante recordar a fórmula de Angelo Tasca, quando definiu o fascismo como uma “contrarrevolução póstuma e preventiva” que surgiu em uma situação intermediária onde haviam sido derrotadas as ameaças revolucionárias, porém o movimento operário ainda não tinha sido completamente suprimido. O fascismo não derrotou diretamente a revolução, mas sim interveio para consolidar seu poder quando as tentativas revolucionárias haviam fracassado. Esta é uma forma de descrever, também, o “empate hegemônico”: a classe trabalhadora já não se encontrava em um período de ascenso com a expectativa de impor seu próprio projeto, porém, ainda conservava força suficiente para frear a ofensiva capitalista global. Nesse intervalo surgiu uma solução de força de características excepcionais do fascismo período do entreguerras.

Também, na atualidade não se vislumbram tentativas revolucionárias (nem ameaças fascistas em sentido estrito no momento), porém, assistimos a uma prolongada situação de empate social que está esgotando as energias dos atores envolvidos. No campo da classe trabalhadora, isso se traduz em uma tendência de desmobilização social e desinteresse político. Ainda que as classes populares tenham mantido capacidade de bloquear o adversário, sua debilidade relativa ao mesmo tempo abre a porta à possibilidade de uma solução “cesarista”. Constatar isso confere a análise gramsciana sobre o “empate catastrófico” uma importância e um sentido precisos, que muitas vezes passa ao largo dos usos atuais.

A análise de Gramsci também serve para evitar a confiança excessiva de uma avaliação simplista da acumulação de forças da classe trabalhadora argentina como um seguro de reserva contra a reação autoritária. As soluções de força surgem precisamente em lugares onde existem forças sociais que bloqueiam uma resolução convencional (o fascismo clássico em países como Alemanha, Itália, Espanha ilustram esse ponto).

É precisamente aqui onde emana a ilusão de ótica que da explicação “instrumentalista” do fascismo, amplamente criticada na literatura especializada. O fascismo não foi um instrumento nem um acessório das necessidades do capital, como acreditou a Internacional Comunista, mas sim o produto de um processo complexo e autônomo, onde confluíram questões ideológicas, dinâmicas políticas e inclusive acidentes inesperados. Porém, a sua maneira, a explicação instrumental capta algo importante da dinâmica de ação e reação em momentos críticos da luta de classes, onde tendem a se configurar as condições específicas que propiciam o avanço de soluções de força. Essas reações autoritárias servem às necessidades funcionais das classes dominantes, não porque são meros instrumentos, mas sim porque representam resultados políticos que se tornam plausíveis em contextos políticos particulares.

Para ilustrar com a história argentina, podemos recordar que a ditadura militar em 1976 ascendeu não porque o país tinha uma débil organização sindical e social, mas o contrário: porque a classe trabalhadora havia conseguido bloquear as intenções ofensivas capitalistas por meio convencionais (o Rodrigazo de 1975 foi o último exemplo). Essa força social, ao ter a capacidade de bloquear o projeto adversário, porém não de impor o seu próprio, gradualmente criava as condições para seu esgotamento: ao não poder resolver a situação ao seu favor, sua capacidade de bloqueio tendia a gerar caos, instabilidade e cansaço social. Isso não só facilitou a formação de uma base de massas para uma radicalização à direita, mas também exerceu uma pressão sobre a própria classe trabalhadora, que passa a sentir que cada vez mais se encontra em um beco sem saída, perde a confiança em sua própria força e começa a se desmobilizar. Nessa conjunção de elementos é que emerge a possibilidade de uma solução de força. Por essa combinação de fatores o golpe de 1976 foi visto por amplos setores da população como um alívio.

Uma vitória eleitoral da extrema direita poderia, então, ter um conteúdo estratégico. As classes dominantes poderiam encontrar uma via alternativa para assumir um combate direto em benefício de uma política ultraliberal. Desde ao menos uma década, as relações de força evitam as contrarreformas que exige o empresariado. Agora as classes dominantes poderiam, pela saída cesarista, delegar a uma figura “externa” o trabalho sujo que as forças orgânicas da burguesia não parecem estar em condições de realizar. Demasiada dependência do consentimento social faz naufragar todos os projetos políticos. Talvez possa ser útil um “louco” com outro passado e sem nenhum medo do futuro, sem uma força própria que lhe exija sustentabilidade, para cortar o nó que bloqueia o capitalismo argentino a décadas.

O momento político das luta de classes

Uma resposta instintiva da esquerda social e política ante ao avanço da extrema direita passa por convocar mobilizações e lutas sociais. Contudo, esta estratégia tem uma debilidade importante: a extrema direta se encontra prestes a ascender ao poder do Estado. É necessária e factível uma resposta no terreno político ou podemos prescindir dessa dimensão?

Geralmente, existem duas formas de subestimar o que está condensado em uma eleição presidencial: por um lado, a negação movimentista de “toda política institucional”, e por outro, o ultraesquerdismo clássico para qual todas as opções burguesas estão no mesmo plano. Em maior consonância com a segunda opção, a estratégia predominante na esquerda se baseia em convocar a luta por reivindicações contra os efeitos da política econômica como forma de enfrentar a extrema direita, segundo um raciocínio, em boa medida correto, de que a extrema direita surge pelo terreno deixado pelos efeitos destrutivos do ajuste econômico. Porém, não estamos presenciando nenhuma luta social relevante e em alguns dias nos encontraremos com a eleição que pode concretizar o acesso ao governo da extrema direita! Uma luta exclusivamente social desvia da necessidade de uma luta política de massas contra a extrema direita. E a semanas das eleições, isso é o que preocupa a setores relevantes da população e que a afeta de tal modo que poderia desatar uma energia social hoje latente.

É fundamental entender que o Estado não é simplesmente um reflexo passivo das relações de força “externas”, que se resolvem unicamente no “poder das ruas”. O Estado é um ator que influe nas relações de força e tem a capacidade de alterar e modificar os equilíbrios políticos estabelecidos. Não compreender a importância de uma eleição presidencial conduz a subestimar o momento político da luta de classes, em favor de um enforque predominantemente “social”, que durante o período eleitoral pode acompanhar-se de uma agitação política abstrata que não enfrenta os dilemas reais que se apresentam na conjuntura.

O que fazer?

Uma singularidade da próxima eleição presidencial está em que não enfrentamos simplesmente uma, mas duas formações de extrema direita, o que poderia desembocar em um cenário de pesadelo, em que ambas cheguem ao segundo turno. Também assistimos a outra particularidade: a divisão do panorama em três grandes blocos poderia levar a uma eleição em primeiro turno de Milei, se consiguir obter 40% dos votos e tenha uma vantagem de 10 pontos sobre o segundo colocado, tal como permite o sistema eleitoral argentino. Estas circunstâncias precipitam para a esquerda radical decisões táticas que normalmente se reservam para o segundo turno.

A ameaça aos direitos democráticos que representa esta situação nos obriga a cumprir um papel sem vacilações no campo de combate contra a ultradireita. Contudo, hoje enfrentamos uma dificuldade adicional. O ciclo político está mudando, o que significa que muitas categorias que utilizamos nos últimos anos estão se tornando anacrônicas. Durante anos, uma tática de unidade defensiva ampla contra a direita estabelecia uma ponte que se comunicava com a sensibilidade majoritária das classes populares, identificada principalmente com o kirchnerismo. Porém, anos de ajustes ortodoxos aplicados pelo peronismo mudaram a paisagem. Agora já não se trata simplesmente de atuar em conjunto com as classes populares contra uma direita tradicional que tem sua linha de flutuação com as classes médias antipopulistas. Agora, até certo ponto, são as classes populares as que estão reagindo, de maneira extremamente problemática, contra o ajuste do peronismo.

Se queremos combater a longo prazo a extrema direita não podemos nos subordinar ao “extremo centro”, o neoliberalismo progressista. Eles são os representantes do status quo frente ao qual se levante a revolta reacionária. Se a esquerda aparece como a “extrema esquerda” do status quo, o descontentamento popular seguirá encaminhando-se para soluções autoritárias. No mesmo sentido, é importante evitar que o “todos contra a direita” se transforme em uma palavra de ordem disciplinante que acabe justificando as políticas ortodoxas levadas a cabo pelas forças políticas tradicionais. Em outras palavras, devemos evitar que o neoliberalismo progressista encontre na extrema direita o antagonista perfeito que lhe permita desmobilizar através do medo a um “mal maior” cada vez mais inquietante.

Apoiar o neoliberalismo progressista contra a extrema direita é equivalente a apoiar a causa para tentar evitar o efeito. E, ainda que pareça paradoxal, existem momentos críticos que obrigam a ações pontuais “com a causa contra o efeito” com o objetivo preciso de ganhar tempo que permita mudar a situação. Nas próximas eleições é necessário votar naquilo que pode ter o efeito prático de fechar o caminho da extrema direita (e nesse caso, o corpo presidencial do peronismo), porém isso não é o mesmo que aceitar a rampa escorregadia do “mal menor”. Os escritos clássicos de Trotsky contra o fascismo seguem oferecendo lições úteis a esse respeito. Trotsky enfatiza que, em circunstâncias críticas, pode-se haver acordos “com o diabo e até sua avó”, porém, “com a única condição de que não se esteja de mãos atadas”. Quer dizer, ele defendia táticas unitárias que não impliquem a subordinação política nem acordos duradouros. Em sua “Carta a um operário comunista”, que faz um chamado urgente a construir uma frente única operária (comunista-socialdemocrata) para derrotar o fascismo, escreve:

“Nós, como marxistas, consideramos tanto Brüning e Hitler como Braum os representantes de um único e mesmo sistema. O problema de saber qual entre eles são o “mal menor” carece de sentido, porque seu sistema, contra o qual nós lutamos, necessita de todos seus elementos. Porém, hoje estes elementos estão em conflito, e o partido do proletariado deve utilizar absolutamente este conflito ao interesse da revolução.”

E prossegue:

“Para os que não compreenderam, tomemos mais um exemplo. Se um dos meus inimigos me envenena cada dia com pequenas doses de veneno, e outro quer me dar um tiro por trás, eu arrancarei primeiro o revólver das mãos do segundo, o que me dará a possibilidade de derrotar o primeiro. Porém, isso não significa que o veneno seja um mal menor em comparação ao revólver”.

E agrega um comentário final, que poderíamos endereçar aos dirigentes do trotskismo argentino:

“Para dizer a verdade, fico um pouco envergonhado de explicar uma coisa tão elementar!”

Se existem condições para impulsionar uma mobilização democrática contra a ultradireita, enfrentamos um problema muito sério. Ainda que pareça surpreendente, os principais agentes políticos que poderiam impulsioná-la não estão interessados, ao menos o momento. Por um lado, a Frente de Esquerda está comprometida em levar a cabo sua própria campanha eleitoral, que concorre com qualquer movimento social que priorize a luta contra a extrema direita, já que esse último poderia ter efeito de desviar apoios eleitorais da esquerda para a candidatura do partido governista. Por outro lado, o setor mais diretamente vinculado a Cristina Kirchner parece estar ausente de qualquer ação contra a extrema direita, incluindo o âmbito da campanha eleitoral mais elementar. Ao que parece, a estratégia desse setor, similar ao que empregou em 2015, se centra exclusivamente em uma estratégia para manter o governo da Província de Buenos Aires. É possível que estejam seguindo a lógica de que seria preferível uma vitória da direita a nível nacional, já que isso permitiria manter a liderança do peronismo, ao mesmo tempo que embelezaria por contraste a herança do kirchnerismo e assentaria as bases para um possível regresso ao poder no futuro. A irresponsabilidade desse cálculo é extrema.

Um grande movimento social contra a ultradireita poderia desempenhar um papel fundamental para mudar o rumo das eleições. Isso não é um lugar comum esquerdista, que se repete rotineiramente em todas as situações. Nesse caso, adquire um sentido e uma importância especiais. Uma polarização entre o movimento de massas democrático e a extrema direita é a chave para modificar o resultado eleitoral, porque nada está mais desautorizado que o próprio governo para dar um sinal de alarme “contra o fascismo”, ou contra “o ataque aos direitos”. Nesse aspecto, a situação se parece menos com o segundo turno de Lula contra Bolsonaro e mais com Macron contra Le Pen. Se a luta contra Milei vai para as mãos de Massa e do governismo, a derrota se torna mais provável. É preciso ligar o sinal de alarme sobre o perigo social e democrático que significa a extrema direita, porém para que seja efetivo é preciso, como corretamente assinalou Ezequiel Ipar, um deslocamento do enunciador desse aviso: deve ocupar o centro do cenário um movimento social e democrático que polarize a situação política.

Inclusive se a extrema direita chegar ao poder, ainda assim será essencial que seja nos marcos de uma ampla mobilização democrática, que se torne ponto de apoio para as batalhas sociais e políticas que virão. Nada é mais importante que esse ponto.

Sobre os autores

é graduado em filosofia, professor da Universidade de Buenos Aires, membro do conselho editorial da Revista Intersecciones e militante da Democracia Socialista.

Cierre

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Published in América do Sul, Análise, DESTAQUE, Extrema-direita, Política and Sociologia

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