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Em Reconstrução negra na América, W. E. B. Du Bois afirma que as pessoas escravizadas se libertaram durante a Guerra Civil através de uma extensa e prolongada greve geral. (Corbis / Getty Images)

A Reconstrução negra na América de W.E.B Du Bois é uma leitura essencial

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Tradução
Gercyane Oliveira

O livro Reconstrução negra na América, de W.E.B Du Bois, é um dos maiores estudos modernos de revolução e contrarrevolução. É também um extraordinário exemplo de uma análise materialista de classe e raça sob o capitalismo.

Reconstrução negra na América, 1860-1880, publicado em 1935, é um dos maiores estudos acadêmicos de revolução e contrarrevolução. Merece um lugar na estante ao lado de outros clássicos modernos, incluindo a História da Revolução Russa de Leon Trotsky, Os jacobinos negros de C. L. R. James, A vinda da Revolução Francesa de Georges Lefebvre, e O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, de Karl Marx. Os estudiosos das revoluções, infelizmente, não costumam considerar a Guerra Civil americana como uma das grandes revoluções sociais da era moderna, semelhante às revoluções francesa, russa e chinesa. Muitos leitores, de fato, consideram o livro de Du Bois como uma resposta às histórias de supremacia branca da era da Reconstrução (1865-1876) e, mais particularmente, como uma defesa do papel político afro-americano – e dos eleitores negros que os elegeram – nos governos dos estados do Sul daquela época. Du Bois apresenta tal defesa, mas a Reconstrução negra oferece muito, muito mais do que isso.

A Reconstrução negra não é apenas uma obra imponente da história, mas também uma obra firmemente enraizada na tradição marxista. Du Bois reinterpreta a Guerra Civil como uma revolução social e política “a partir de baixo” – uma revolução operária – que trouxe a derrubada tanto da escravidão quanto do Estado Confederado, abrindo assim uma porta para a democracia interracial no Sul. O livro reinterpreta então o subsequente colapso desta democracia como uma contrarrevolução de classe que destruiu a possibilidade de liberdade para metade da classe trabalhadora do Sul e impôs uma “ditadura do capital” que trouxe “uma exploração do trabalho sem precedentes nos tempos modernos”.

Mas por que se deve ler Reconstrução negra no século XXI? Em resumo, porque Du Bois escreveu sobre questões que permanecem de tremenda importância política, incluindo a natureza da opressão racial e o racismo dos trabalhadores brancos. Ao contrário da maioria dos analistas contemporâneos da raça, além disso, Du Bois aborda estas questões a partir da perspectiva da economia política. Ele rejeita uma abordagem da opressão racial que começa com preconceito, discriminação ou cultura, tentando, em vez disso, cavar por baixo destes e entender como eles estão enraizados nos interesses materiais de diferentes classes. Em vez de insistir na separação entre raça e classe, como fazem tantos liberais, Du Bois insiste em sua conexão íntima.

A Reconstrução Negra é justamente uma obra famosa por destacar a força coletiva das pessoas escravizadas na conquista de sua própria liberdade e por sua contestação acirrada da historiografia racista. O que tem sido menos enfatizado é a forma como Du Bois rejeita muito explicitamente análises da Guerra Civil e da Reconstrução que enfatizam a raça e o racismo como os principais condutores dos eventos históricos. O racismo certamente desempenhou um papel extremamente importante naquela época, argumenta Du Bois, mas era produto de – e geralmente disfarçado – outra força mais poderosa: o capitalismo. Mais especificamente, Du Bois argumenta na Reconstrução negra que duas características do capitalismo – a competição dos capitalistas pela mão-de-obra e a competição dos trabalhadores pelo emprego – são a causa raiz dos conflitos que parecem ser impulsionados pelo racismo.

Esta perspectiva sobre a obra prima de Du Bois contraria algumas interpretações influentes de seu trabalho. Não surpreende que haja resistência em alguns círculos para afirmar claramente que a Reconstrução negra é uma obra marxista. Muitas pessoas que leem a Reconstrução negra pela primeira vez não estão esperando ler um texto marxista. Eles provavelmente já leram a coleção anterior de ensaios de Du Bois, The Souls of Black Folk, que antecede três décadas de sua virada para o marxismo. Enquanto vários autores reconhecem o marxismo de Du Bois, muitos outros negam que a Reconstrução negra ou seus escritos seguintes sejam marxistas. Em 1983, por exemplo, Cedric Robinson descreveu Du Bois como um “simpatizante do marxismo”. O livro de Gerald Horne de 1986 examina em grande detalhe o envolvimento de Du Bois em causas de esquerda (principalmente comunistas) após a Segunda Guerra Mundial, mas ele nunca oferece uma opinião sobre se Du Bois era um marxista. (Mais recentemente, porém, Horne enfatizou o caráter marxista da Reconstrução negra). E o livro de Manning Marable sobre Du Bois, publicado poucos meses depois, retrata-o como um “democrata radical” – embora Marable tenha sugerido mais tarde que Du Bois poderia ser visto de forma positiva como parte da tradição “marxista ocidental”.

Mais recentemente, um grupo de sociólogos “Du Boisianos” reconhece que Du Bois integra alguns elementos do pensamento marxista em sua visão de mundo. Mas de acordo com esses escritores, Du Bois não só não é um marxista como suas ideias transcendem as de Marx. Marx deu prioridade teórica à classe, dizem eles, enquanto Du Bois entendeu a “interseccionalidade” de classe e raça, enfatizando suas conexões ao mesmo tempo em que não deu prioridade teórica a nenhuma delas. De acordo com estes escritores, este movimento teórico permitiu a Du Bois, ao contrário de Marx e seus seguidores, eles afirmam, entender o colonialismo, as formas pelas quais a consciência de classe ” fraturou ” a raça, e a opressão racial em geral.

Neste ensaio, argumento que estes “Du Boisianos” e outros que negam o marxismo de Du Bois estão errados. Du Bois dá, de fato, prioridade teórica ao capitalismo. Tanto na Reconstrução negra quanto em seus escritos posteriores, Du Bois enfatiza repetidamente como a opressão racial é um produto do capitalismo. Além disso, repetidamente, Du Bois se opõe ao que hoje chamamos de “reducionismo racial”, ou seja, tenta explicar os eventos históricos principalmente em termos de raça. Sua rejeição do reducionismo racial só se aprofundou nos anos após a publicação da Reconstrução negra.

Depois de 1935, em resumo, “Du Boisianismo” é o marxismo. O fracasso de Du Bois não foi o fato de ele ter abraçado uma orientação marxista, mas o fato de ele ter vindo a apoiar, sem qualquer crítica, o autoritarismo soviético. Esta foi talvez a maior tragédia, a meu ver, da longa vida de Du Bois. Mas o ponto principal deste ensaio é mostrar que, apesar de todos os esforços para ignorar ou negar seu marxismo, a Reconstrução negra se apresenta como um brilhante trabalho de análise classista.

A Reconstrução negra na América

O giro de Du Bois em direção ao marxismo aconteceu bastante tarde em sua vida, pouco antes da publicação da Reconstrução negra. Sua viagem à União Soviética em 1926, meses antes da consolidação do poder de Joseph Stalin, certamente o empurrou nessa direção. “Nunca antes na vida”, escreve seu biógrafo David Levering Lewis, ” tinha ficado tão agitado como ficaria dois meses na Rússia”. Du Bois viajou mais de duas mil milhas através da União Soviética, “encontrando em todos os lugares . . sinais de uma nova ordem social igualitária que até então ele só tinha sonhado que poderia ser possível”. “Posso estar parcialmente enganado e semi-informado”, escreveu Du Bois na época. “Mas se o que vi com meus próprios olhos e ouvi com meus ouvidos na Rússia é bolchevismo, eu sou bolchevique”. (Du Bois visitaria a União Soviética novamente em 1936, 1949, e 1958).

Du Bois escreveu depois que sua viagem à União Soviética o levou a questionar “nossa crença negra americana de que o direito de voto nos daria trabalho e salário decente” ou aboliria o analfabetismo ou “diminuiria nossas doenças e criminalidade”. Somente uma revolução, necessariamente, poderia atingir estes fins. Du Bois também acreditava que “deixar alguns dos capitalistas negros compartilhar com os brancos na exploração das massas, nunca seria uma solução para o nosso problema”. A libertação negra era impossível, em suma, enquanto os Estados Unidos permanecessem uma sociedade capitalista, e o “capitalismo negro” era um beco sem saída.

Du Bois estava totalmente familiarizado com as ideias marxistas desde seus dias de estudante de pós-graduação em Harvard e em Berlim. Mas foi somente em 1933, no meio da maior crise do capitalismo na história mundial, que Du Bois começou a estudar conscientemente Marx, Friedrich Engels e Vladimir Lenin. Ele tinha então 65 anos de idade. Como Lewis escreve, Du Bois passou por um período complicado para a análise marxista:

Como tantos intelectuais nos anos 1930 que difundiam o marxismo como uma ciência comprovada da sociedade, o professor de Atlanta foi hipnotizado pelo materialismo dialético. Chamando Marx de “a maior figura da ciência da indústria moderna”, Du Bois parecia redescobrir com a avidez de um talentoso estudante de pós-graduação o pensador que Frank Taussing, seu professor de economia de Harvard, havia ignorado de forma presunçosa. Marx fez a história fazer sentido – ou mais sensata, Du Bois passou a acreditar, do que todos os outros sistemas de análise.

Du Bois foi incentivado a aprender a teoria marxista pela ascensão de um grupo dos chamados Jovens Turcos dentro da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP), a organização de direitos civis que ele ajudou a fundar. Estes jovens acadêmicos-militantes, incluindo Abram Harris, Ralph Bunche e E. Franklin Frazier (todos membros ou em breve membros da faculdade da Universidade Howard) “estavam tentando mudar o foco da intelligentsia negra sobre a raça para uma análise econômica de classe”. Todos estavam convencidos de que um poderoso movimento sindical multirracial era necessário para esmagar a opressão racial, e criticaram a NAACP por sua falta de um programa econômico. Os membros deste grupo deram conselhos a Du Bois sobre quais textos eram essenciais para que ele lesse. O livro de Harris, The Black Worker (O trabalhador negro): The Negro and the Labor Movement, co-autor do Sterling Spero, provou ser particularmente influente; não foi por acaso que Du Bois intitulou o primeiro capítulo da Reconstrução negra “O Trabalhador Negro”. (Discuto o significado preciso disto abaixo).

Embora depois ele se aproximasse do Partido Comunista pró-soviético, os guias de Du Bois para a teoria marxista no início dos anos 1930 também incluíam dois anti-estalinistas de esquerda. Um era Benjamin Stolberg, um jornalista que mais tarde serviu na Comissão Dewey (oficialmente a Comissão de Inquérito sobre as acusações feitas contra Leon Trotsky nos Julgamentos de Moscou), que recebeu o nome de seu presidente, o filósofo John Dewey. O outro era um jovem de esquerda com o nome de Will Herberg. Herberg era um imigrante judeu russo que reprovou no City College de Nova Iorque, juntou-se ao Partido Comunista e foi expulso junto com outros colegas a Jay Lovestone por se opor à política externa de Stalin na época. Os Lovestonitas, entretanto, eram ardentes defensores da União Soviética. Herberg trouxe à atenção de Du Bois os escritos de Marx sobre a Guerra Civil, assim como o próprio panfleto marxista de Herberg sobre a Guerra Civil e Reconstrução, “O Patrimônio da Guerra Civil”, que Du Bois citaria na Reconstrução negra.

Du Bois aborda muitas questões na Reconstrução negra, mas o livro tenta principalmente responder a três grandes perguntas: Primeiro, como a Guerra Civil se tornou uma revolução que derrubou a escravidão e trouxe a democracia para o Sul? Segundo, quais foram a natureza e as principais realizações dos governos estaduais da Reconstrução no Sul? Por fim, como devemos entender a contrarrevolução que derrubou a democracia e trouxe uma espécie de semiescravidão para os negros do Sul?

A Guerra Civil e a “Greve Geral”

Os capítulos iniciais da Reconstrução negra não se referem de forma alguma à Reconstrução. Eles tratam do período anterior, dos trabalhadores (brancos e negros), da natureza da escravidão, e da Guerra Civil. Estes capítulos apresentam muitos argumentos e reivindicações importantes, nenhum mais importante do que a ideia de que as pessoas escravizadas se libertaram durante a Guerra Civil através de uma “greve geral” extensa e prolongada. Esta greve, como todas as greves, foi uma demonstração da luta de classes que envolveu a negação de trabalho por uma classe de pessoas, os trabalhadores ou “produtores diretos”, da classe proprietária ou dominante. Como em outras grandes revoluções, a oportunidade para esta luta de classes a partir de baixo foi criada por conflitos internos que irromperam na guerra.

Du Bois insiste que os “trabalhadores escravos” (como ele os chama) devem ser vistos como parte integrante da classe trabalhadora interracial na América, e não como um grupo separado por interesses separados e distintos. Foi o erro trágico dos trabalhadores do Norte e do movimento operário do Norte – e um erro dos futuros analistas que estão cegos para a classe – não compreender isto. Assim, Du Bois intitula o primeiro capítulo de seu livro “O Trabalhador Negro”, não “O Escravo Negro” ou “O Escravizado”. E o segundo capítulo é chamado “O Trabalhador Branco”. É claro que Du Bois está bem ciente da diferença entre o trabalho escravo e o trabalho assalariado livre. “Não importa quão degradada a mão de obra da fábrica”, escreve ele, “ele não é um patrimônio”. Mas Du Bois quer enfatizar, à maneira marxista, que estes dois grupos de trabalhadores, apesar de suas diferentes circunstâncias e apesar de suas diferenças raciais, compartilham os mesmos interesses materiais básicos. Isto era verdade, aliás, tanto antes quanto depois da Guerra Civil.

Mas os trabalhadores brancos não conseguiram ver seus interesses comuns com os trabalhadores negros. “O trabalho branco”, escreve Du Bois, “embora não tenha tentado negar, mas até mesmo expressou uma ligeira simpatia, viu no escravo fugitivo e nos milhões de escravos atrás dele, dispostos e ansiosos para trabalhar por menos do que o salário atual, concorrência por seus próprios empregos”. Foi esta corrida por empregos que alimentou o racismo branco. Entretanto, “o que [os trabalhadores brancos] não conseguiram compreender”, escreve Du Bois, “foi que o negro escravizado era um concorrente ainda mais formidável e fatal do que o negro livre”.

Assim surgiu, Du Bois relata, não um, mas dois movimentos operários na América, um para libertar os trabalhadores escravos do Sul e outro para melhorar os salários e as condições de trabalho da classe trabalhadora principalmente imigrante no Norte. A união destes dois movimentos, aponta Du Bois, teria sido “irresistível”. Mas era “quase impossível”, escreve ele, que os dirigentes dos trabalhadores brancos entendessem isso:

Eles tinham suas queixas particulares e uma delas era a competição do trabalho negro livre. Além disso, eles podiam facilmente visualizar uma nova e tremenda competição de trabalhadores negros depois que todos os escravos se tornaram livres. O que eles não viram nem entenderam foi que esta competição estava presente e continuaria e seria enfatizada se o negro continuasse como um trabalhador escravizado.

Isto explica porque os trabalhadores brancos mantiveram distância do movimento abolicionista, que, por sua vez, não conseguiram “perceber a situação do trabalhador branco, especialmente o trabalhador semi-qualificado e não qualificado”. Esta divisão dentro da classe trabalhadora norte-americana, é claro, enfraqueceu ambos os movimentos operários.

A greve geral durante a Guerra Civil tomou contornos de trabalhadores foragidos que fugiam das plantações para as linhas de frente e acampamentos do Exército da União. Du Bois estima que 500 mil dos 4 milhões de negros escravizados do Sul fugiram das plantações. Estas famílias e indivíduos trabalharam em nome do Exército da União enquanto a guerra durou; eventualmente, cerca de 200 mil pessoas foram armadas e lutaram pela União contra a Confederação. A greve geral foi assim um golpe duplo para o Sul: a retirada de mão-de-obra perturbou e enfraqueceu a economia do Sul e o esforço de guerra – a produção de algodão em particular declinou precipitadamente – e a mão-de-obra disponibilizada para o Exército da União fortaleceu o poder militar do Norte. “Sem a ajuda militar dos negros libertados”, argumenta Du Bois, citando não menos uma autoridade do que Abraham Lincoln, “a guerra contra o Sul não poderia ter sido ganha”.

Du Bois aponta que esta greve geral “foi seguida pelo descontentamento dos brancos pobres”, que viram “com raiva que os principais escravistas estavam escapando do serviço militar; que era uma ‘guerra dos ricos e a luta dos pobres'”. A isenção do serviço militar de homens que possuíam vinte ou mais escravos era desagradável, “e a retirada em massa da classe de detentores de escravos da luta real que esta regra tornou possível, deu origem a uma insatisfação intensa e crescente”. Du Bois também observa o “medo e ciúme dos negros” dos pobres brancos no avanço do exército do Norte: “Se os negros fossem livres, onde estariam os pobres brancos? Por que ele deveria lutar contra os negros e seus amigos vitoriosos? Os pobres brancos não só começaram a desertar e fugir; mas milhares seguiram os negros para os campos do Norte”. Só em 1864, segundo Du Bois, 100 mil pobres brancos abandonaram o Exército Confederado.

Onde o racismo se encaixa na análise de Du Bois sobre a escravidão? Sua discussão sobre o racismo no período anterior à guerra é classicamente materialista: o racismo não produziu escravidão; a escravidão produziu, e reproduziu continuamente, o racismo. A necessidade dos agricultores em relação à mão-de-obra barata – e a extraordinária riqueza que ela produziu – foi sua principal causa. Os proprietários de escravos não podiam aumentar a produtividade de suas plantações, dando mais recursos aos trabalhadores escravos, ou os educando, ou os ensinando habilidades, pois isso prejudicaria a própria instituição. Devido à competição com outros fazendeiros, além disso, o proprietário de escravos “era forçado, a menos que estivesse disposto a obter lucros menores, a continuamente bater o custo de seu trabalho escravo”. Neste contexto, o racismo foi “encontrado, inventado e provado” para justificar os horrores (e ineficiências) da escravidão. É assim que Du Bois coloca a questão:

Se os líderes do Sul, embora tendo em mente o consumidor, tivessem se voltado mais pensativamente para o problema do produtor americano, e tivessem orientado a produção de algodão e alimentos de modo a aproveitar todas as vantagens de novas máquinas e métodos modernos na agricultura, eles poderiam ter avançado com a fabricação e conseguido assegurar uma quantidade aproximadamente grande de lucro… Mas, para manter sua renda sem sacrifício ou esforço, o Sul caiu novamente em uma doutrina de diferenças raciais que afirmava tornar impossível uma maior inteligência e uma maior eficiência para a mão-de-obra negra. Desejando tal desculpa para a comodidade indolente, o produtor facilmente a encontrou, inventou e provou. Seus líderes religiosos subservientes reverteram à “Maldição de Canaã”; seus pseudocientistas reuniram e complementaram todas as doutrinas disponíveis de inferioridade racial; suas faculdades desordenadas e jornais pedantes repetiram essas lendas, até que para o produtor médio nascido depois de 1840 era impossível não acreditar que todas as leis válidas em psicologia, economia e política deixaram de existir com a raça negra.

“A adoção da doutrina da inferioridade negra pelo Sul”, conclui Du Bois, “foi principalmente por motivos econômicos e pelo impulso político interconectado necessário para apoiar a indústria escrava”. (Du Bois tem mais a dizer sobre o racismo dos trabalhadores brancos, que analiso a seguir).

A explicação de Du Bois sobre a vitória da União na Guerra Civil também destaca os esforços dos trabalhadores ingleses para impedir que seu governo reconheça a Confederação e entre na guerra contra a União. As “reuniões gigantescas” de trabalhadores em Londres e Manchester em 1863 tiveram um impacto real, segundo a estimativa de Du Bois. “Karl Marx”, escreve ele, “testemunhou que esta reunião [em St. James’ Hall, Londres, em março de 1863] impediu Lord Palmerston [o primeiro-ministro] de declarar guerra contra os Estados Unidos”. Du Bois cita o trecho de um discurso, escrito por Marx, que foi lido em uma manifestação em Londres, um texto endereçado e enviado ao Presidente Lincoln:

Senhor: Nós que estamos aqui, somos ingleses e trabalhadores. Prezamos como nossa mais querida herança, comprada para nós pelo sangue de nossos pais, a liberdade que desfrutamos – a liberdade do trabalho livre em um solo livre… Regozijamo-nos, senhor, em sua eleição para a Presidência, como uma esplêndida prova de que os princípios da liberdade universal e da igualdade estavam subindo. Vemos com repulsa a conspiração e a rebelião pelas quais se procurou derrubar a supremacia de um governo baseado no sufrágio mais popular do mundo, e perpetuar as desigualdades odiosas da raça.

Estes trabalhadores ingleses abraçavam exatamente o tipo de solidariedade interracial que Du Bois chegaria a ver, 70 anos depois, como essencial para a erradicação da opressão racial e para a libertação de trabalhadores de todas as cores.

A greve geral dos trabalhadores escravos destruiu a escravidão direta, mas também indiretamente, induzindo Lincoln a emitir a Proclamação de Emancipação em 1º de janeiro de 1863. Ela também se mostrou decisiva para a derrota da Confederação por parte da União. O resultado foi, portanto, uma revolução social e também política. Com a erradicação da escravidão individual, a democracia tornou-se, pela primeira vez, uma possibilidade real no Sul. Assim, juntamente com Du Bois, temos todo o direito de considerar a Guerra Civil verdadeiramente histórica: “Sua questão afetou de forma vital o curso do progresso humano. Para o estudante de história, ela está junto com as conquistas de Alexandre; as incursões dos bárbaros; as Cruzadas; a descoberta da América, e a Revolução Americana”. Para Du Bois, “a emancipação da classe trabalhadora em metade da nação [é] uma revolução comparável às convulsões na França no passado, e na Rússia, Espanha, Índia e China hoje”.

Reconstrução: uma “experiência marxista extraordinária”

Após 12 anos da Guerra Civil, o Exército da União ocupou o Sul, e os homens afro-americanos puderam votar e concorrer a um cargo político. Durante esses anos, os afro-americanos elegeram um grande número de representantes negros e brancos progressistas para os governos estaduais em todo o Sul. 16 afroamericanos também atuaram no Congresso dos EUA durante esses anos, incluindo dois senadores. Para as elites brancas, a era da Reconstrução foi um desastre. Eles acabariam criando e distribuindo uma imagem e historiografia da Reconstrução que difamava tanto os representantes negros quanto os eleitores negros como ignorantes, gananciosos, corruptos e vingativos, verdadeiramente indignos de sufrágio ou mesmo de quaisquer direitos que os brancos estavam obrigados a respeitar.

A verdade, como mostra Du Bois em vários capítulos da Reconstrução negra, era bem diferente desta narrativa. Ele acreditava que a democracia, defendida pelas tropas federais, tinha permitido à classe trabalhadora chegar ao poder no Sul – 50 anos antes da Revolução Russa. Du Bois foi tentado a descrever isto como uma “ditadura do proletariado”, embora ele acabou decidindo usar a expressão “ditadura do trabalhador”:

Entre os negros, e particularmente no Sul, estava sendo colocada em vigor uma das experiências mais extraordinárias do marxismo que o mundo, antes da revolução russa, havia visto. Ou seja, apoiado pelo poder militar dos Estados Unidos, uma ditadura do trabalho deveria ser tentada e aqueles que lideravam a raça negra nesta vasta experiência estavam enfatizando a necessidade do poder político e da organização apoiada pela força militar de proteção.

Vários interlocutores dissuadiram Du Bois de usar o termo “ditadura do proletariado”. Como ele explicou no início de um capítulo intitulado “O Proletariado Negro na Carolina do Sul”:

Primeiro chamei este capítulo de “A Ditadura do Proletariado Negro na Carolina do Sul”, mas me chamaram a atenção que isto não seria correto, pois o sufrágio universal não leva a uma verdadeira ditadura até que os trabalhadores usem seus votos conscientemente para se livrarem do domínio do capital privado.

Segundo Du Bois, havia alguns indícios desta intenção entre os negros da Carolina do Sul, “mas sempre foi associada à ideia daquele dia, que a única saída real para um operário era ele próprio possuir o poder do capital”. De fato, a maioria dos ex-escravizados queria terra própria para trabalhar. Du Bois presumivelmente usou a frase “ditadura do trabalhador” para sinalizar que os governos da Reconstrução foram eleitos e apoiados por negros sem propriedade e alguns brancos pobres – e que os representantes assim eleitos representavam os interesses desses trabalhadores.

Du Bois insiste que a Reconstrução não pode ser entendida em termos raciais – ou seja, como uma luta entre as raças negra e branca, alimentada pelo racismo. Ao contrário, a Reconstrução foi um conflito entre classes que estavam lutando para encontrar novas maneiras de sobreviver após o fim da economia escrava. “Reconstrução”, como diz Du Bois,

Não foi simplesmente uma luta entre as raças branca e negra no Sul ou entre dono e ex-escravizado. Era muito mais sutil; envolvia mais do que isso. Houve repetidas e contínuas tentativas de pintar esta etapa como um interlúdio de políticas mesquinhas ou de um pesadelo de ódio racial em vez de vê-la devagar e de forma abrangente como uma tremenda série de esforços para ganhar a vida de formas novas e não testadas, para alcançar a segurança econômica e para restaurar perdas fatais de capital e investimento.

Para Du Bois, os principais atores da era da Reconstrução eram trabalhadores (ainda divididos por raça, como antes da guerra, em movimentos separados) e capitalistas (divididos em duas frações principais). A Reconstrução englobava, antes de mais nada,

um grande movimento de trabalhadores negros incultos, honestos e confusos, cujos rostos haviam sido moídos na lama por três séculos de humilhação e que agora cambaleavam cegamente com sangue e lágrimas em meio a divisões fúteis, ódio e dor, e cercados por todo desastre de guerra e convulsões industriais.

Segundo,

A reconstrução foi um grande movimento de trabalhadores brancos ignorantes, confusos e desnorteados que haviam sido deserdados da terra e do trabalho e travado uma longa batalha com pura subsistência, pendurados na beira da pobreza, comendo lama e perseguindo escravos e agora se voltando à masculinidade.

Terceiro,

A reconstrução foi a virada da migração branca do norte para o sul, para uma nova e repentina oportunidade econômica que se seguiu ao desastre e ao deslocamento da guerra, e uma tentativa de organizar o capital e a mão-de-obra em um novo padrão e construir uma nova economia.

Du Bois está aqui se referindo aos capitalistas do Norte, grandes e pequenos, que se mudaram para o Sul em busca de riquezas após a guerra – os “capitalistas do carpete”, como ele os denomina. “Finalmente”, escreve Du Bois,

A reconstrução foi um esforço desesperado de uma oligarquia e monopólio desalojado, mutilado, empobrecido e arruinado para restaurar um anacronismo na organização econômica pela força, fraude e calúnia, em desafio à lei e à ordem, e em face de um grande movimento de trabalhadores brancos e negros, e em luta amarga com um novo capitalismo e uma nova estrutura política.

Esta, é claro, a classe dos fazendeiros que antes eram proprietários de escravos. Du Bois atribui o tumulto, a corrupção e a violência da era da Reconstrução à “luta feroz” entre essas classes e frações de classe pelo controle do “estado capitalista”.

Quais foram as principais conquistas das “ditaduras do trabalhador” no Sul enquanto elas duraram? O fato de que os negros americanos gozaram de um mínimo de direitos civis e políticos durante esta época é, naturalmente, muito importante. Pela primeira vez em sua história, o sufrágio universal da masculinidade prevaleceu nos Estados Unidos. Para Du Bois, talvez as conquistas mais importantes da Reconstrução tenham sido as escolas públicas e as faculdades negras que foram fundadas naquela época. (O próprio Du Bois frequentou uma dessas faculdades, a Fisk, apenas 10 anos após a Reconstrução). Ele dedica um capítulo inteiro (“Fundando a Escola Pública”) a este desenvolvimento, argumentando que estas instituições eram nada menos que “a salvação do Sul e do Negro”.

Para Du Bois, curiosamente, estas instituições desempenharam um importante papel moderador. “Sem elas”, escreve ele, ” não há dúvida de que o negro teria se revoltado e se vingado e colocado nas mãos daqueles determinados a esmagá-lo”. Du Bois também elogia as novas escolas (e a igreja negra) por criarem “um pequeno grupo de líderes formados”. Ele atribui a esses líderes, e sua moderação política, o mérito de impedir o restabelecimento da escravidão informal após a Reconstrução:

Se não fosse a escola e a faculdade negra, o negro teria, para todos os efeitos, sido levado de volta à escravidão. Sua base econômica na terra e no capital era muito pequena em dez anos de turbulência para poder fazer qualquer defesa ou estabilizar-se. Sua liderança de reconstrução tinha vindo de negros educados no Norte, e de políticos brancos, capitalistas e professores filantropos. A contrarrevolução de 1876 levou a maioria deles, salvo os professores, para longe. Mas já, ao estabelecer escolas públicas e faculdades privadas, e ao organizar a igreja negra, o negro havia adquirido liderança e conhecimento suficientes para frustrar os piores projetos dos novos traficantes de escravos.

Esses líderes, sugere Du Bois, “evitaram o erro de tentar encontrar a força pela força”. Ele elogia sua resiliência e paciência diante de provocações violentas: “Eles se curvaram à tormenta de espancamento, linchamento e assassinato, e mantiveram suas mentes apesar do insulto público e privado de cada palavra”.

No entanto, Du Bois enfatiza que a principal demanda econômica dos libertados nunca foi atendida durante a Reconstrução: a redistribuição de terras, incluindo as grandes plantações, para os ex-escravizados. O típico liberto, segundo Du Bois, tinha “apenas um ideal econômico claro e que era sua demanda por terra, sua exigência de que as grandes plantações fossem subdivididas e dadas a ele como seu direito”. Du Bois escreve que esta demanda era “perfeitamente justa e natural” e “deveria ter sido uma parte integrante da emancipação”. Ele ressalta que os servos e camponeses franceses, alemães e russos estavam, “em emancipação”, “com direitos definidos na terra”. “Somente o escravo negro americano foi emancipado sem tais direitos e, no final, isso lhe deu a continuação da escravidão”. Mais especificamente, a ausência da reforma agrária no Sul abriu a porta para uma contra-revolução que transformaria os libertados sem propriedade em semi-escravos – trabalhadores endividados, trabalhadores forçados e afins.

Du Bois lança alguma culpa pela ausência da reforma agrária sobre os mesmos líderes negros cuja disciplina ele elogia de outra forma. “A própria liderança negra era naturalmente de muitos tipos”, de acordo com Du Bois:

Alguns, como os brancos, eram pequenos burgueses, procurando subir na riqueza; outros eram homens instruídos, ajudando a desenvolver uma nova nação sem considerar apenas as linhas raciais, enquanto um terceiro grupo era idealista, tentando elevar a raça negra e colocá-la em pé de igualdade com os brancos. Mas como isto poderia ser feito? Na mente de muito poucos deles havia um plano claro e distinto para o desenvolvimento de uma classe trabalhadora em uma posição de poder e domínio sobre o estado industrial moderno. E nesta falta de visão, eles não eram únicos na América.

Du Bois parece estar sugerindo aqui que a fraqueza da ideologia socialista entre líderes negros e americanos em geral é responsável por “esta falta de visão”. Dito isto, a origem pequeno-burguesa de tantos líderes negros levanta sérias dúvidas sobre a caracterização de Du Bois dos governos da Reconstrução como “ditaduras do trabalhador”. De fato, como aponta Eric Foner, a maioria dos políticos negros durante a Reconstrução foram conservadores ou omissos sobre a questão da redistribuição de terras. Sobre esta questão particular, a análise de Du Bois teria sido mais materialista do que foi.

A contrarrevolução da propriedade

Du Bois ficou ainda mais preocupado na Reconstrução negra com a contra-revolução que derrubou a Reconstrução do que com a celebração de suas conquistas. Centenas de páginas do livro discutem esta questão, incluindo dois dos capítulos finais do livro, sendo eles: “Contrarrevolução da propriedade” (capítulo 14) e “De volta à escravidão” (capítulo 16). Um dos temas-chave destes capítulos é que esta contrarrevolução foi trazida por uma classe (os agricultores) por razões econômicas, não por uma raça (brancos) por razões de animosidade racial ou ideologia racial. Isto foi verdadeiramente, enfatiza Du Bois, uma contrarrevolução da propriedade.

Du Bois escreve que “a derrubada da Reconstrução foi em essência uma revolução motivada pela propriedade, e não uma guerra racial”. Em outro momento ele acrescenta: “Não era, então, raça e cultura gritando do Sul em 1876; era propriedade e privilégio, gritando para sua espécie, e privilégio e propriedade ouvia e reconhecia a voz de sua própria”. Era uma contrarrevolução burguesa contra as “ditaduras do trabalhador”. É assim que Du Bois resume esta contrarrevolução, também conhecida como o Compromisso de 1876, que incluiu a retirada das tropas federativas do Sul:

O acordo de 1876 foi essencialmente um entendimento pelo qual o Governo Federal deixou de sustentar o direito de voto de metade da população trabalhadora do Sul, e deixou o capital como representado pela velha classe latifundiária, o novo capitalista do Norte, e o capitalista que começou a sair dos brancos pobres, com um controle do trabalho maior do que em qualquer estado industrial moderno em terras civilizadas. Dali surgiu no Sul uma exploração de trabalho sem precedentes nos tempos modernos, com um governo em que todos os pretextos no alinhamento partidário ou no respeito ao sufrágio universal são abandonados. Os métodos de governo não foram criticados, e as eleições são por compreensão e manipulação secretas; a ditadura do capital no Sul é completa.

“A ditadura do capital no Sul está completa” – não uma ditadura de uma raça branca indiferenciada. Na verdade, Du Bois argumenta,

A nova ditadura se tornou uma manipulação do voto dos trabalhadores brancos que seguiram as linhas de controle semelhante no Norte, enquanto que procedeu para privar o eleitor negro pela violência e pela força de qualquer voto. A rivalidade entre estas duas classes trabalhadoras e sua concorrência neutralizam o voto dos trabalhadores no Sul.

A ditadura do capital, em suma, provocou a opressão e a marginalização dos trabalhadores negros, em parte para ganhar o apoio dos trabalhadores brancos. Mas enquanto os trabalhadores brancos mantinham o direito de voto, eles tinham pouco mais poder político do que os negros. O resultado da contrarrevolução de 1876 foi, portanto, a opressão racial dos trabalhadores negros; a destruição da democracia; uma classe trabalhadora dividida; e a exploração “sem paralelo” do trabalho, negros e brancos. Na verdade, a capital do Sul desfrutava, nas palavras de Du Bois, “de um controle do trabalho maior do que em qualquer estado industrial moderno em terras civilizadas”. Sem direitos civis e políticos, além disso, muitos trabalhadores negros acabaram sendo reduzidos ao status de semi-escravos, vinculados aos agricultores por dívidas e violência. Os agricultores continuariam a ser a classe politicamente dominante no Sul até que seu poder fosse finalmente quebrado pelo movimento dos direitos civis.

Isto nos leva à questão do racismo da classe trabalhadora branca. Por que os trabalhadores brancos apoiaram a ditadura do capital e a opressão dos trabalhadores negros? Du Bois considerava tal racismo como extremamente poderoso e extenso, tanto que às vezes duvidava se a solidariedade e o socialismo da classe trabalhadora eram de alguma forma realistas nos Estados Unidos. Du Bois escreveu a Reconstrução negra durante um período em que ele era excepcionalmente pessimista sobre a possibilidade de solidariedade interracial. No ano anterior à publicação da Reconstrução negra, Du Bois escreveu um editorial famoso na Crisis, a revista que ele editou há muito tempo, que pedia a auto-segregação voluntária dos afro-americanos. O editorial provocou uma forte onda de críticas dentro da fortemente integracionista (e interracial) NAACP.

Mas a auto-segregação nunca foi um princípio ou finalidade para Du Bois. Foi uma tática – e que ele abandonou gradualmente durante a década de 1940. Da mesma forma, Du Bois nunca concluiu na Reconstrução negra, ou em qualquer de seus escritos posteriores, que a solidariedade interracial entre as classes trabalhadoras era impossível. Era apenas, em momentos específicos e por razões específicas, muito difícil de ser alcançado. Para Du Bois, o racismo da classe trabalhadora branca era, acima de tudo, um enigma que precisava ser resolvido, não um estado de coisas permanente. Isso o perturbava porque estava convencido de que nem o capitalismo nem a opressão racial que ele produzia poderiam ser derrubados se o racismo impedisse a unificação dos trabalhadores brancos e negros. E Du Bois foi claro na Reconstrução negra que seu objetivo final era unificar “escravos negros, pardos, amarelos e brancos, sob uma ditadura do proletariado”. Não havia outro caminho, como ele viu, tanto para a emancipação do trabalho quanto para a derrubada da opressão racial.

Como aconteceu, os trabalhadores brancos no Sul geralmente apoiavam a derrubada da Reconstrução e a opressão dos negros. Eles apoiaram de modo geral, ou seja, a contrarrevolução burguesa da propriedade que estabeleceu uma ditadura do capital. O que explica este paradoxo? Por que um grupo de trabalhadores teria sido mais forte se tivesse se unido a outro grupo de trabalhadores, em vez disso, apoiaria seus exploradores na opressão desse outro grupo? Durante toda a Reconstrução negra, Du Bois enfatiza que a hostilidade da classe trabalhadora branca em relação aos negros provém da competição por empregos. O capitalismo em toda parte coloca os trabalhadores uns contra os outros, de tal forma que os trabalhadores veem os outros como concorrentes, até mesmo como inimigos. O capitalismo cria uma espécie de guerra de todos contra todos, à medida que os trabalhadores lutam para encontrar empregos e mantê-los. É claro que esta guerra permite aos capitalistas manterem os salários baixos. Para Du Bois, o racismo da classe trabalhadora branca evoluiu a partir do medo de que os capitalistas os substituíssem por trabalhadores negros, incluindo trabalhadores recém-emancipados, que estavam dispostos a trabalhar por salários mais baixos. Foi este mesmo medo de competição, argumentou Du Bois, que levou à formação de dois movimentos trabalhistas no período antebellum.

O medo do desemprego, segundo Du Bois, era particularmente forte antes da criação do estado social moderno. E assim os trabalhadores brancos usavam o poder que tinham para excluir os negros do mercado de trabalho. Assim, os brancos exigiam que os negros fossem banidos de certas ocupações ou locais de trabalho; daí a exclusão dos negros dos sindicatos profissionais; daí a violência dos brancos contra os colegas de trabalho negros e contra os grevistas. O racismo poderia ser “encontrado, inventado e provado” para justificar essas práticas, da mesma forma que os proprietários de escravos tinham anteriormente “encontrado, inventado e provado” o racismo para justificar o seu. Aqui está Du Bois, explicando a violência dos brancos contra os afro-americanos:

Depravação total, ódio humano e Schadenfreude, não explicam plenamente o espírito mafioso na América. Diante dos olhos da multidão é sempre a Forma do Medo. Atrás dos demônios contorcidos, gritantes, de olhos cruéis que quebram, destroem, mutilam e lincham e queimam na fogueira, está um nó, grande ou pequeno, de seres humanos normais, e esses seres humanos têm um medo desesperado de algo. De quê? De muitas coisas, mas geralmente de perderem seus empregos, de serem decadentes, degradados ou realmente desonrados; de perderem suas esperanças, suas economias, seus planos para seus filhos; das verdadeiras dores da fome, da sujeira, do crime. E de tudo isso, o mais onipresente na sociedade industrial moderna é o medo do desemprego.

Os trabalhadores brancos, em resumo, acreditavam que era melhor ser explorado do que não ser explorado (ou seja, desempregado). Eles temiam o desemprego, que significava nenhum salário, mais do que temiam salários baixos. E assim, os trabalhadores brancos se colocavam do lado de pessoas que estavam oferecendo empregos e se pareciam com eles, em vez de com pessoas mais escuras que compartilhavam suas dificuldades. Esta foi uma decisão compreensível, mas um erro, no entanto. Tanto os trabalhadores brancos quanto os negros sofreram – e continuam sofrendo – com sua falta de solidariedade.

Du Bois também enfatiza que a classe dos agricultores estava sempre preparada para encorajar e agravar a hostilidade entre os trabalhadores brancos e negros. “Eles mentiram sobre os negros”, escreve ele, e “os acusaram de roubo, crime, inimizades morais e grotescas ridículas”. O objetivo deles era prevenir “o perigo de um movimento sindical unido do Sul, apelando para o medo e o ódio do trabalho branco e oferecendo-lhes aliança e lazer”. Segundo Du Bois, estes produtores encorajaram os trabalhadores brancos “a ridicularizar os negros e espancá-los, matar e queimar seus corpos” e “até mesmo deram aos pobres brancos suas filhas em casamento, e criaram uma nova oligarquia sobre as fundações cambaleantes e esgotadas dos antigos”.

Du Bois apresenta muito brevemente outra explicação para o racismo da classe trabalhadora branca – na era pós-reconstrução – que se tornou o foco de muita atenção. Sua discussão sobre isto abrange apenas alguns parágrafos, mas às vezes é discutida como se fosse o próprio núcleo da Reconstrução negra. E é a fonte da frase mais popular do livro – embora o próprio Du Bois nunca tenha usado a frase – a saber, “o salário de branquitude”.

Du Bois sugere que os trabalhadores brancos no Sul – mas não os negros – receberam “uma espécie de salário público e psicológico” como um suplemento aos baixos salários pagos por seus empregadores. Em que consistia este salário? Du Bois aponta que os trabalhadores brancos poderiam entrar nos parques públicos, enviar seus filhos para “as melhores escolas” e candidatar-se a empregos nos departamentos de polícia. Os negros não poderiam fazer nada disso. Os trabalhadores brancos também podiam andar nas ruas públicas sem serem abordados ou agredidos; os negros não podiam. Além disso, os trabalhadores brancos tinham o direito de votar, e embora isto não resultasse em nenhum poder político real, os tribunais os tratavam com indulgência porque dependiam dos votos dos brancos. Os negros não podiam votar, então os tribunais os tratavam com dureza.

Du Bois está aludindo aqui principalmente aos direitos civis e políticos dos trabalhadores brancos, e ao exercício desses direitos. Chamar estes direitos de salário “psicológico”, no entanto, é confuso: estes direitos eram reais e aplicáveis; eles não existiam apenas na cabeça ou na mente dos trabalhadores brancos. De qualquer forma, “o salário da branquitude” acaba por consistir principalmente nos direitos civis e políticos desfrutados pelos trabalhadores brancos, mas negados aos negros após a Reconstrução. Os trabalhadores brancos tinham certos direitos além de salários baixos; os trabalhadores negros não tinham direitos e até mesmo salários mais baixos. Esta é uma descrição resumida e útil da era Jim Crow.

Du Bois também inclui ” respeito público e títulos de cortesia” no “salário extra” que os trabalhadores brancos, mas não os negros, receberam. Os trabalhadores brancos tinham um certo status (pelo menos entre outros brancos) que os negros não tinham. E Du Bois observa que os jornais lisonjeavam os pobres brancos enquanto ignoravam ou ridicularizavam os negros. Aqui novamente, estas coisas não estavam apenas na mente dos trabalhadores brancos, então chamá-los de “psicológicos” é estranho. “O salário da branquitude” se refere aos direitos e status dos trabalhadores brancos, além de seus baixos salários.

A pergunta é: Como estes “salários” explicam o racismo? Eles descrevem uma sociedade racista, mas como eles produzem ódio racial ou violência? Du Bois não diz muito sobre isso, mas ele implica que os trabalhadores brancos se sentiram obrigados a resistir a qualquer esforço para estender aos trabalhadores negros os mesmos direitos e deferência que receberam:

Os trabalhadores [brancos]… prefeririam ter salários baixos sobre os quais pudessem ter uma existência do que ver trabalho de cor com um salário decente. O trabalho branco via em cada avanço dos negros uma ameaça às suas prerrogativas raciais, de modo que em muitos distritos os negros tinham medo de construir casas decentes ou de se vestir bem, ou de possuir carruagens, bicicletas ou automóveis, devido a uma possível retaliação por parte dos brancos. Assim, todo problema de avanço do trabalho no Sul foi habilmente transformado por demagogos em uma questão de ciúmes inter-raciais.

Se os negros gozavam dos mesmos direitos e estima social que os trabalhadores brancos, Du Bois parece dizer que os trabalhadores brancos não podiam mais alegar ser superiores a eles ou a qualquer outra pessoa na sociedade – e isso, por implicação, era presumivelmente intolerável para os brancos, mesmo que isso significasse “descobrir uma existência”.

Du Bois apresenta assim duas explicações para o racismo dos trabalhadores brancos: os trabalhadores brancos tornam-se racistas para justificar seus esforços para impedir que os trabalhadores negros os substituam no trabalho, e eles se tornam racistas para justificar seus esforços para impedir que os negros desfrutem dos mesmos direitos e status de que gozam. Há, sem dúvida, alguma verdade nesses dois argumentos. Mas também é óbvio para Du Bois que nenhum dos dois explica adequadamente por que os trabalhadores brancos não poderiam ou não viriam a ver que uma frente unida com os trabalhadores negros contra os capitalistas resultaria em salários mais altos, maiores direitos e um status mais elevado para eles mesmos, bem como para os trabalhadores negros. Esta visão equivocada, entendeu Du Bois, não é inevitável.

Na verdade, Du Bois claramente não acreditava que suas duas explicações funcionassem em todos os momentos e lugares. Como observado anteriormente, Du Bois tinha esperança na Reconstrução negra para a emancipação dos “escravos negros, pardos, amarelos e brancos, sob uma ditadura do proletariado”. Como veremos, ele elogiaria mais tarde certos sindicatos por construir solidariedade interracial, e aconselharia a juventude negra radical que a libertação tanto de negros quanto de brancos dependia de sua cooperação e amizade mútuas. Du Bois nunca desenvolveu uma fórmula ou uma técnica simples para a realização da solidariedade entre as classes trabalhadoras. Evidentemente, não existe tal fórmula ou técnica. Mas a Reconstrução negra nos lembra porque a solidariedade dos trabalhadores é tão importante, e Du Bois pregaria o evangelho da solidariedade interracial para o resto de seus dias. Mais tarde ele escreveu que a Reconstrução negra marca uma ruptura com seu anterior “racialismo provincial” e foi uma tentativa de “considerar os problemas mais amplos do trabalho e da renda como afetando todos os homens, independentemente da cor ou nacionalidade”.

Após a Reconstrução negra

Du Bois permaneceria um socialista e marxista comprometido até sua morte em 1963. A Reconstrução negra, em outras palavras, era apenas uma parte – a parte mais extraordinária, sem dúvida – de um corpo maior de trabalho marxista escrito por Du Bois. Infelizmente, Du Bois também se tornou um estalinista, e ele articulava uma visão do socialismo que era profundamente problemática. Uma breve revisão de alguns dos principais escritos de Du Bois depois de 1935 demonstra que a Reconstrução negra não foi de forma alguma uma incursão única ou incomum na teoria marxista.

Em 1940, Du Bois publicou uma autobiografia, “O crepúsculo do amanhecer”. Ele tinha então 72 anos de idade (uma segunda autobiografia foi publicada postumamente nos Estados Unidos, em 1968). Perto do final deste volume, Du Bois apresenta um “Credo Básico dos Negros Americanos” que ele escreveu originalmente em 1936, como um apêndice de um ensaio no qual, entre outras coisas, ele declarou sua crença no marxismo. “Nós acreditamos”, afirma o Credo, “no triunfo final de alguma forma de Socialismo em todo o mundo; isto é, propriedade comum e controle dos meios de produção e igualdade de renda”. Para este fim, o credo defende que “os trabalhadores negros devem se juntar ao movimento operário e se filiar a tais sindicatos para recebê-los e tratá-los de forma justa”. Acreditamos que os conselhos de trabalhadores organizados por negros para entendimento interracial devem se esforçar para combater o preconceito racial na classe trabalhadora”. E o credo clama “por conferir o poder máximo do Estado nas mãos dos trabalhadores”. Solidariedade da classe trabalhadora, sindicalismo inter-racial, luta contra o racismo, propriedade comum dos meios de produção e controle dos trabalhadores sobre o Estado – este é o programa de Du Bois para os trabalhadores negros e, de fato, para os trabalhadores de todo o mundo.

Vários anos depois, durante a Segunda Guerra Mundial, Du Bois ficaria preocupado, e não pela primeira vez, com a questão do colonialismo. Defensor de longa data do pan-africanismo, Du Bois temia, com razão, que o colonialismo durasse muito depois da Segunda Guerra Mundial, apesar das frases e promessas de alto nível dos líderes europeus durante a guerra. Pouco depois de presidir a V Conferência Pan-Africana em Manchester, Inglaterra, Du Bois resumiu suas opiniões sobre a base capitalista do colonialismo e a sua linha em seu livro Cor e Democracia. “Só quando enfrentarmos o fato”, escreve Du Bois, “de que as colônias são um método de investimento que produz retornos incomuns [isto é, grandes], ou que se espera que o façam, é que perceberemos que o sistema colonial é parte da batalha entre capital e trabalho na economia moderna”.

Du Bois continua criticando a visão do imperialismo centrada na raça quando ele apresenta sua própria perspectiva alternativa:

Acontece, não por razões biológicas ou históricas, que a maioria dos habitantes das colônias de hoje têm peles de cor. Isto não faz deles um grupo ou raça ou mesmo grupos ou raças biológicas aliadas. De fato, essas pessoas de cor variam muito em termos de físico, história e experiência cultural. A única coisa que os une hoje no pensamento do mundo é sua pobreza, ignorância e doença, o que os torna a todos, em diferentes graus, vítimas da exploração capitalista moderna. Sobre esta base foi construída a moderna “Linha da Cor”, com todas as suas superstições e pseudociência. E é este complexo hoje que mais do que qualquer outra coisa desculpa a supressão da democracia, não apenas na Ásia e na África, mas na Europa e nas Américas. Hitler aproveitou-se das características “negróides” para acusar os franceses de inferioridade. A Grã-Bretanha aponta para a miscigenação com raças de cor para provar que a democracia é impossível na América do Sul. Mas cabe à maior democracia moderna, os Estados Unidos, defender a escravidão humana e a casta, e até mesmo derrotar o governo democrático em suas próprias fronteiras, ostensivamente por causa de uma raça inferior, mas realmente para lucrar com a mão-de-obra barata, tanto negra quanto branca.

O racismo, em outras palavras, é a motivação “ostensiva” por trás – e uma justificativa para – a escravidão, a casta e o colonialismo. Mas isto é uma folha de figo – ou “camuflagem”, como Du Bois escreveu em Reconstrução negra. A motivação real é a acumulação de lucros por meio de mão-de-obra barata. Aqui, para Du Bois, é o segredo da “supremacia branca”: o imperativo capitalista de explorar a mão-de-obra é alcançado criando uma linha de cor que oprime os trabalhadores de cor e engana os trabalhadores brancos a acreditar que eles são superiores a eles, dividindo e barateando assim toda a mão-de-obra.

Após a Segunda Guerra Mundial, Du Bois entrou na órbita do Partido Comunista pró-soviético dos Estados Unidos, um grupo do qual ele havia mantido distância por diversas razões, apesar de seu entusiasmo pela União Soviética. Em outubro de 1946, Du Bois foi convidado a falar em Columbia, Carolina do Sul, aos delegados do Congresso da Juventude Negra do Sul, um grupo fundado pelo Partido Comunista. (Paul Robeson e o romancista Howard Fast falaram ao grupo na noite anterior ao discurso de Du Bois). Em seu discurso, “Eis a Terra”, Du Bois aconselha os delegados:

Lentamente, mas seguramente os trabalhadores do Sul, brancos e negros, devem vir a se lembrar que sua emancipação depende de sua cooperação mútua; de seu conhecimento mútuo; de sua amizade; de sua interpenetração social.

Du Bois prossegue dizendo:

O petróleo e o enxofre; o carvão e o ferro; o algodão e o milho; a madeira e o gado pertencem aos trabalhadores, preto e branco, e não aos ladrões que os seguram e os utilizam para escravizá-los. Eles podem ser resgatados e restaurados ao povo se você tiver a coragem de lutar pelo verdadeiro direito de voto, o direito à verdadeira educação, o direito à felicidade e saúde e a abolição total do pai destes flagelos da humanidade, a pobreza.

Du Bois fala então dos trabalhadores brancos, os “pobres brancos”, do Sul. Ele se tornou muito menos pessimista sobre a possibilidade de solidariedade inter-racial do que era uma década antes:

Pode parecer uma luta fracassada quando os jornais o ignoram; quando todos os esforços são feitos pelos brancos do Sul para considerá-lo fora da cidadania e para agir como se você não existisse como seres humanos enquanto eles estão sempre lucrando com seu trabalho, colhendo riqueza de seus sacrifícios e tentando construir uma nação e uma civilização sobre sua degradação. Você deve se lembrar que apesar de tudo isso, você tem aliados, e aliados até mesmo no Sul branco. O primeiro e maior destes possíveis aliados são as classes trabalhadoras brancas a seu respeito, os pobres brancos a quem você foi ensinado a desprezar e que, por sua vez, aprenderam a temer e odiar você. Isto não deve dissuadi-lo dos esforços para fazê-los entender, porque no passado, em sua ignorância e sofrimento, eles foram levados insensatamente a olhar para você como a causa da maior parte de sua angústia.

Esta atitude, sugere Du Bois, “tem sido deliberadamente cultivada desde a emancipação”. Ele insiste que a linha de cores entre trabalhadores negros e brancos deve ser quebrada, uma divisão deliberadamente fomentada pelos capitalistas e seus servos políticos. Esta foi uma ideia à qual Du Bois voltou repetidamente durante suas últimas décadas, uma ideia que remonta pelo menos a seu ensaio de 1920 “Sobre o trabalho e a riqueza”.

Como vimos, Du Bois encorajou os trabalhadores negros a se unirem aos sindicatos em seu “credo” de 1936. Nos anos seguintes, Du Bois continuou a ver os sindicatos, especialmente os sindicatos industriais do Congresso de Organizações Industriais (CIO), como a melhor esperança para criar solidariedade entre as classes trabalhadoras nos Estados Unidos. Em um ensaio de 1948, Du Bois escreve: “Provavelmente o maior e mais eficaz esforço para o entendimento interracial entre as massas trabalhadoras surgiu através dos sindicatos”. Os esforços do CIO trouxeram “uma espantosa propagação de tolerância e compreensão interracial”. Provavelmente nenhum movimento nos últimos 30 anos”, escreveu ele, “foi tão bem sucedido em suavizar o preconceito racial entre as massas”.

Neste mesmo texto de 1948, Du Bois reitera sua crença de que o racismo e o imperialismo – e as guerras de libertação – são gerados principalmente pelos capitalistas e sua busca de lucros:

[O negro americano é parte de uma situação mundial. Os negros estão em um status quase colonial. Eles pertencem às classes mais baixas do mundo. Essas classes são, têm sido e serão exploradas por muito tempo pelos grupos e nações mais poderosos do mundo para o benefício desses grupos. O verdadeiro problema diante dos Estados Unidos é se estamos realmente começando a raciocinar sobre este sentimento mundial de domínio de classe com suas consequentes guerras: guerras de rivalidade pela partilha dos despojos da exploração, e guerras contra a exploração.

É revelador que Du Bois descreve aqui o imperialismo e o colonialismo em termos de exploração e domínio de classe e não em termos de opressão nacional ou racial. É claro que Du Bois compreende plenamente que o colonialismo envolve opressão nacional e racial, mas sua causa principal é a busca de mão-de-obra barata por parte do capitalista.

No auge do “MaCarthismo” nos Estados Unidos, em 1950, Du Bois redigiu um manuscrito de um livro chamado “Rússia e América: Uma Interpretação”. Seu editor recusou-se a imprimi-lo porque era muito pró-soviético e muito crítico em relação aos Estados Unidos. Incrivelmente, ele ainda não foi publicado. Uma seção importante deste livro – que é muito longa para resumir adequadamente aqui – argumenta que a União Soviética é mais democrática do que os Estados Unidos porque os cidadãos soviéticos são capazes de discutir, debater e decidir “assuntos de interesse vital para o povo, isto é, trabalho e condições de salário e de vida – assuntos não simplesmente de interesse, mas de conhecimento pessoal e experiência”. Para Du Bois, claramente, este é o significado central da democracia socialista:

Todos querem falar sobre estes assuntos; todos participam de reuniões duas ou três vezes por semana; discutem as indústrias locais; o abastecimento de água, as escolas e o homem ou mulher mais apto a representar seu pensamento e decisão nas reuniões do condado. Se o delegado selecionado não agir e votar como eles desejam, eles o convocam e substituem outro.

“É um erro”, conclui Du Bois, “pensar que a democracia foi asfixiada nas Repúblicas Soviéticas”. Ele gosta dos sovietes locais nas reuniões da cidade de Nova Inglaterra, um local onde as pessoas comuns “se reúnem para conversar, propor, discutir e decidir; para eleger um delegado para um soviético superior que, por sua vez, elege um ainda superior e assim por diante para o Soviete Supremo”. Aqui está a democracia pura e eficaz”, sugere Du Bois, “tal como quase desapareceu dos Estados Unidos”. Nos Estados Unidos, de fato, “nossa eleição do presidente, nomeação de juízes, representação no Senado e desigualdade dos distritos eleitorais mostram as restrições legais à democracia; enquanto fora da legalidade, mas de comum acordo, são a privação dos negros e dos pobres, o uso de dinheiro nas eleições, e os lobistas bem pagos do Grande Negócio em nossas legislaturas, sem mencionar o monopólio da imprensa e do jornalismo”. Du Bois conclui: “É com a maior dificuldade que o eleitorado americano tem a oportunidade de expressar sua opinião ou receber a verdade sobre a qual se decidir; ou assegurar sanções através das quais possa fazer com que seus legisladores cumpram a vontade popular. Tanto na Grã-Bretanha como na França, e na Alemanha e Itália antes da guerra, e certamente nos Estados Unidos, a vontade do povo tem sido frustrada há muito tempo pela riqueza, privilégio e ignorância.”

Em 1952, Du Bois começou a lecionar na Faculdade Interracial Jefferson de Ciências Sociais em Manhattan, que era dedicada à educação dos trabalhadores. A escola foi criada pelo Partido Comunista para educar a classe trabalhadora e para treinar militantes com consciência de classe. Du Bois deu cursos sobre imperialismo, tráfico de escravizados, África, pan-africanismo e Reconstrução. (A escritora Lorraine Hansberry estava em sua primeira aula). O curso sobre Reconstrução argumentou que a revolução socialista requer solidariedade interracial contra os capitalistas. Du Bois lecionou na Escola Jefferson até 1956, quando foi obrigado a fechar.

A política de Du Bois nunca esteve tão próxima da do Partido Comunista durante estes anos e, como vimos, seu entusiasmo pela União Soviética continuou inabalável. Em 1953, Du Bois escreveu um hino a Stalin – com os insultos obrigatórios a Trotsky – após a morte do líder soviético. Du Bois justificou a ditadura soviética como necessária até que os trabalhadores soviéticos fossem “mais inteligentes, mais experientes e em menor perigo de interferência do exterior”. Foi justamente essa suposta interferência, além disso, que levou Du Bois a apoiar a invasão soviética da Hungria em 1956. Não surpreendentemente, ele negou veementemente que o socialismo deve ser democrático, embora esse fosse certamente seu ideal.

A visão do socialismo de Du Bois é problemática, para dizer o mínimo. Baseou-se em parte em sua crença de longa data de que as pessoas mais inteligentes e mais instruídas – os “dez talentosos”, como ele os chamou – tinham a responsabilidade de liderar pessoas “ignorantes” e sem instrução, que não eram capazes de governar a si mesmas. Du Bois via Stalin (e mais tarde Mao Tse Tung) como líderes instruídos e experientes que puxavam – ou talvez arrastasse – desinteressadamente massas de camponeses ignorantes para o século XX. Seus nobres fins alegadamente justificavam seus métodos muitas vezes brutais. Este tipo de elitismo irrompe, aliás, em uma passagem um pouco notória na Reconstrução negra na qual Du Bois afirma que teria sido “melhor” (mesmo que politicamente impraticável) se tivesse havido uma qualificação de propriedade para votação após a Guerra Civil e apenas um “empoderamento gradual” de trabalhadores negros, enquanto se aguarda o estabelecimento de escolas públicas em todo o Sul.

Du Bois redigiu uma segunda autobiografia em 1958-59 e a revisou um pouco em 1960. A Autobiografia de W. E. B. Du Bois foi editada por seu amigo Herbert Aptheker, um ativista de longa data do Partido Comunista que Du Bois fez amizade após a guerra e que ele nomearia como seu executor literário. Versões resumidas da Autobiografia foram publicadas na União Soviética em 1962 e, pouco tempo depois, postumamente, na China e na Alemanha Oriental. Ela foi finalmente publicada nos Estados Unidos em 1968. Neste texto, Du Bois novamente expressa suas crenças marxistas e se distancia de seu anterior “racialismo” ou pontos de vista centrados na raça. “Acredito no que diz Karl Marx”, escreve ele, “que o fundamento econômico de uma nação é amplamente decisivo para sua política, sua arte e sua cultura”. Du Bois acrescenta que quando jovem, “o que eu queria eram as mesmas oportunidades econômicas que os americanos brancos tinham”. Além disso, eu não estava pensando”:

Não percebi o que os brancos americanos e trabalhadores brancos de todos os tipos enfrentaram no passado, e enfrentariam nos próximos anos. Embora fosse um estudante de progresso social, eu não conhecia o desenvolvimento da mão-de-obra nos Estados Unidos. Eu estava amargo com o linchamento, mas não comovido com o tratamento dos mineiros brancos no Colorado ou em Montana. Nunca cantei as canções de Joe Hill, e a terrível greve em Lawrence, Massachusetts, não me agitou, porque sabia que grevistas de fábrica como estes não deixariam um negro trabalhar ao lado deles ou viver na mesma cidade. Foi difícil para mim superar este isolamento mental, e ver que a situação dos trabalhadores brancos era fundamentalmente a mesma que a dos negros, mesmo que o trabalhador branco ajudasse a escravizar os negros.

Um grupo de trabalhadores que teria sido fortalecido pela união com outro grupo de trabalhadores ao invés disso, ajudou a oprimir esse outro grupo. Esta é a tragédia – e o enigma – do movimento operário americano da época de Du Bois. Mas o racialismo anterior de Du Bois, ele implica, não só o cegou para a exploração dos trabalhadores de todas as raças, mas assim o impediu de compreender a verdadeira natureza da opressão racial dos negros.

Du Bois também fala na Autobiografia sobre o tipo de sociedade que ele desejava: “Eu acredito no comunismo”, escreve ele. “Refiro-me ao comunismo, um modo de vida planejado na produção de riqueza e trabalho destinado a construir um Estado cujo objetivo é o maior bem-estar de seu povo e não apenas o lucro de uma parte”. Du Bois acrescenta que “todos os homens devem ser empregados de acordo com suas capacidades e que a riqueza e os serviços devem ser distribuídos de acordo com as necessidades. Uma vez pensei que estes fins poderiam ser alcançados sob o capitalismo”, observa Du Bois, mas “após sincera observação, agora acredito que a propriedade privada de capital e a livre iniciativa estão levando o mundo ao desastre”. Du Bois acrescenta que o governo democrático nos Estados Unidos “quase deixou de funcionar”, observando que 1/4 dos adultos estão sem direito a voto e a metade não vota. “Somos governados por aqueles que controlam a riqueza e que por esse poder compram ou coagem a opinião pública”.

Du Bois se estabeleceu em Gana em 1961 para trabalhar em uma projetada Enciclopédia Africana multivolume. Ele morreu em 1963 com a idade de 95 anos. Antes de deixar os Estados Unidos, Du Bois candidatou-se a membro do Partido Comunista dos Estados Unidos, ao qual estava próximo desde a Segunda Guerra Mundial. O último grande discurso de Du Bois nos Estados Unidos abordou, sem surpresa, o tema “Socialismo e o negro americano”. Ele foi proferido em maio de 1960 na Universidade de Wisconsin, em Madison. A Folkways Records produziu uma gravação em vinil do discurso nesse mesmo ano.

Neste discurso, Du Bois reiterou sua crença de que “não há dúvida de que o mundo do século XXI será esmagadoramente comunista”. Ele também ofereceu algumas reflexões críticas interessantes, a partir de uma perspectiva marxista, sobre o movimento de direitos civis, que nessa época já estava em pleno andamento. (O movimento estudantil começou em fevereiro de 1960 e se espalhou por todo o Sul em questão de semanas). Vale a pena citar longamente as reflexões de Du Bois:

A luta contra a lei liderada pela NAACP tem sido um sucesso espantoso. Mas seu próprio sucesso mostra as limitações da lei, e da aplicação da lei, a menos que tenha um programa econômico; a menos que a massa do povo negro não tenha simplesmente direitos legais, mas tenha tais direitos ao trabalho e ao salário que lhe permitam viver decentemente. Aqui nos Estados Unidos temos tido uma agitação, na população negra, que enfatizou estes fatos… A experiência em Montgomery, a extraordinária revolta dos estudantes, em todo o sul e começando no norte, mostra uma consciência de nossa situação que é muito encorajadora. Mas ela ainda não chega ao centro do problema. E esse centro não é simplesmente o direito dos americanos de gastar seu dinheiro como eles desejam e de acordo com a lei, mas a chance dos negros americanos terem dinheiro para gastar, por causa do emprego no qual eles podem ganhar um salário decente. Qual então é o próximo passo? É para os negros americanos em número crescente, e cada vez mais amplamente, insistir nos direitos legais que já são seus, e acrescentar a isso cada vez mais uma forma socialista de governo, uma insistência no Estado socialista, que nega a continuação da indústria para o lucro das corporações que monopolizam a riqueza e o poder.

Martin Luther King Jr – que também se tornou um socialista, como Du Bois – diria muito o mesmo sobre a necessidade de salários decentes para os negros apenas alguns anos depois, exigindo, entre outras coisas, uma renda garantida para todos. E como Du Bois, King tornou-se um forte defensor do sindicalismo multirracial e da solidariedade da classe trabalhadora como o melhor meio para acabar com a pobreza e o racismo.

Conclusão

A volta de Du Bois ao socialismo e ao marxismo não implicou em diminuição de seu interesse ou repugnância pelo racismo e pela linha de cor. Du Bois estava empenhado em destruir a opressão racial antes de se tornar um marxista, e permaneceu igualmente empenhado em destruir a opressão racial depois de se tornar um marxista. Du Bois tornou-se um marxista sem desculpas e um socialista comprometido, na verdade, não apesar de seu ódio à opressão racial, mas precisamente por causa desse ódio. Ele foi levado e atraído ao marxismo e ao socialismo por sua busca para compreender a opressão racial e a melhor estratégia para destruí-la. É claro que sua compreensão tanto do racismo quanto de como podemos subvertê-lo mudou radicalmente quando ele se tornou um marxista e um socialista. Esta mudança não é percebida pelos estudiosos que assumem que as ideias de Du Bois foram essencialmente fixadas por volta da época em que ele escreveu As Almas do Povo Negro.

Du Bois passou a acreditar que a exploração do trabalho dos trabalhadores negros, pardos e “amarelos” era a principal base e motivação para a opressão racial em todo o mundo e que a libertação das pessoas de cor, em conformidade – todas as pessoas de cor, e não apenas os trabalhadores – exigia a eliminação dessa exploração, ou seja, do socialismo. Du Bois também olhou para a “linha de cor” de maneira diferente depois que ele se tornou marxista. Para o socialista Du Bois, a linha de cor era problemática porque dividia os trabalhadores, assim como as raças e assim tornava mais difícil a solidariedade da classe trabalhadora e a revolução socialista – e a erradicação da opressão racial como ele a entendia agora -.

Du Bois merece ser lembrado como um crítico eloquente do capitalismo e suas consequências inevitáveis: opressão racial, colonialismo, imperialismo, guerra, pobreza e desigualdade bruta, tanto política quanto econômica. Du Bois viu uma relação clara entre o capitalismo e a opressão racial, ou seja, causa e efeito. Ele está entre os marxistas mais astutos que abordaram a questão da opressão racial, uma tradição incrivelmente rica que inclui figuras de destaque como Hubert Harrison, Claude McKay, José Carlos Mariátegui, Max Shachtman, C. L. R. James, Eric Williams, Harry Haywood, Herbert Aptheker, Oliver Cromwell Cox, Claudia Jones, Frantz Fanon, Walter Rodney, Harold Wolpe, Neville Alexander, Angela Davis, Manning Marable, Stuart Hall, Adolph Reed e Barbara Fields, entre muitos outros. Precisamos reconhecer e creditar não apenas o marxista Du Bois, mas todo este panteão de teóricos marxistas da raça. Du Bois não transcende esta tradição, como alguns têm implicado. Ele estava no coração dela.

Du Bois também poderia ser um eloquente defensor do socialismo democrático – da solidariedade multirracial da classe trabalhadora, do controle do Estado e da economia pelos trabalhadores, e de uma economia baseada nas necessidades humanas. É verdade que a visão elitista do socialismo de Du Bois era profundamente falsa, e suas apologéticas pela ditadura de Stalin e pelo socialismo autoritário são indefensáveis e depreciam seu legado. No entanto, muitos de seus companheiros contemporâneos negam o marxista Du Bois, retratando-o como um teórico centrado na raça ou um “interseccionalista”. Ele não era nem um nem outro. Reconstrução negra na América, conforme tenho mostrado, é um brilhante estudo marxista que explica a opressão racial e o racismo como produtos do capitalismo. Negar o marxismo de Du Bois resulta em uma visão distorcida da vida e das ideias de Du Bois, incluindo, ironicamente, sua análise da opressão racial e de como poderíamos destruí-la.

Sobre os autores

Jeff Goodwin

Jeff Goodwin ensina Sociologia na New York University.

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Published in América do Norte, Análise, História and Livros

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