Santiago, Chile: Na véspera do 50º aniversário do golpe que derrubou o governo democraticamente eleito do presidente Salvador Allende, vi um pai com sua filha sentados em silêncio no Museu de Memória e Direitos Humanos. Eles olhavam solenemente para uma parede enorme, à sua frente, com centenas de fotografias de pessoas mortas ou desaparecidas durante a ditadura militar no Chile.
Ali próximo, crianças eram convidadas a desenhar – a traçar suas mãos e escrever mensagens nas palmas de papel. Com uma caligrafia vacilante, letras flutuando em alturas diferentes, um desenho tinha escrito: “Justiça! Membros da minha família foram torturados” – algo que eu também aprendi quando era criança.
Eu passei o 50º aniversário atravessando toda Santiago, em protesto e vigília – com a minha mãe, uma caravana de outros brasileiros ex-exilados e uma foto da minha avó materna, Tércia Maria Rodrigues Mendes, na minha mochila. Foi ali, há cinquenta anos, que ela perdeu seu país pela segunda vez.
Em 11 de setembro de 1973, aos 22 anos de idade, ela já era mãe, viúva e refugiada. No início daquele ano, depois que agentes da ditadura militar no Brasil torturaram e assassinaram seu esposo, meu avô, Jarbas Pereira Marques, ela fugiu de ônibus do Recife, passando pelo Rio, até chegar no Chile de Allende, a capital de uma nova esperança política.
O Chile efervescente dos anos 1970.
Naquela altura, havia cerca de 12.200 refugiados do Brasil, da Bolívia, do Uruguai e da Argentina que viviam no Chile – muitos deles, como a minha avó, esquerdistas que fugiam da repressão. Foi aí que ela se mudou para uma casinha de madeira com jornais que serviam de isolamento do frio; aí que ela se reencontrou com minha mãe, uma bebê de apenas 16 meses de quem ela foi forçosamente separada; aí que ela se juntou a uma nova resistência.
Em junho, depois do Tanquetazo, tentativa de golpe fracassada, ela marchou com trabalhadores chilenos demandando que o governo distribuísse armas para que o povo pudesse se defender caso houvesse nova tentativa de golpe – pedido que Allende não atendeu. Quando o novo golpe veio, em setembro, ela morava numa población em Peñalolén chamada Lo Hermida – um assentamento urbano associado com o Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR); suas políticas estampadas com orgulho nos nomes dos seus bairros, como ‘Vietnã Heróico.’ Naquele setembro, com apoio do Pinochet, os militares tiveram sucesso. As forças armadas destruíram partes do Lo Hermida e minha avó sobreviveu a um segundo golpe – sua vida agora em risco por ser uma estrangeira, por ser pobre, por apoiar Allende e por não ter uma casa para se abrigar durante o toque de recolher.
Por toda Santiago, os militares apoiados pelos Estados Unidos e pela CIA juntavam milhares de pessoas e os detinham, torturavam e assassinavam no Estádio Nacional. A aeronáutica bombardeou o palácio do governo, La Moneda. O Presidente Allende morreu, e seu governo socialista democraticamente eleito morreu com ele. Pessoas se amontoavam em embaixadas lotadas como as do Panamá, do México e da Argentina para pedir asilo e escapar. Muitos não conseguiram.
A ditadura de Pinochet seguiu torturando dezenas de milhares de pessoas e matando ou forçando o desaparecimento de outros milhares. Durou cerca de 17 anos, até 1990, e os seus vestígios ainda assombram o Chile e o mundo. Apesar da campanha para elaborar uma nova Constituição no ano passado, a em vigor ainda é a do Pinochet. No deserto do Atacama, famílias continuam buscando os restos mortais de seus entes queridos desaparecidos.
Mas, dias depois do golpe, minha avó, morando em um abrigo chamado Padre Hurtado, buscava fora dele uma alternativa – que chegou, apressada, na forma de um carro preto com placa diplomática. Desesperada, ela se jogou no veículo e uma voz de dentro dele prometeu que logo haveria vagas na embaixada da Suécia. Ela escreveu um pedido de asilo; foi aprovada. Em outubro, minha avó, minha mãe e dezenas de refugiados viajaram para Estocolmo.
Não me lembro da minha avó me contando essa história ela mesma – acho que ela queria me proteger – mas a minha mãe escreveu sobre isso nas suas memórias, Nasci Subversiva, um livro que ela dedicou a mim. Sua narrativa dolorosamente pessoal também é um relato de uma era de repressão na América Latina apoiada pelos Estados Unidos – e uma carta para um conjunto amplo de vítimas e sobreviventes, seus filhos e netos. “Talvez”, minha mãe escreve, “você viveu [minhas] vidas em um outro tempo. Talvez, você as viveu em outro país ou em outro idioma. Temo que minha história é mais comum do que eu pensava.”
De fato, entre 1930 e a década de 90, muitos países da América Latina (inclusive a Argentina, a Bolívia, o Brasil, o Chile, El Salvador, Guatemala, Honduras, o Paraguai, a República Dominicana, e o Uruguai) sofreram ditaduras brutais direta ou indiretamente motivadas por intervenções dos Estados Unidos. Quando criança, eu tracei uma cicatriz dessa violência – a ferida no abdômen do meu segundo avô, resultado de uma facada desferida por autoridades uruguaias quando ele esteve preso no país tentando escapar do Brasil.
Perdas em toda parte
Para mim, a compreensão das perdas pessoais é difícil o bastante. Tentar entender a escala da perda continental é debilitante. Centenas de milhares de pessoas torturadas, presas, mortas e desaparecidas. Na Guatemala e no Brasil, comunidades indígenas inteiras foram abatidas. Na República Dominicana, haitianos foram massacrados. Um número incalculável de pessoas perderam seus companheiros, pais, filhos ou entes queridos. Crianças adotadas naquela época, ainda hoje, descobrem que seus pais foram assassinados e suas origens foram escondidas.
Por décadas, esse tipo de apagamento era comum e as vítimas eram silenciadas – tanto pelos governos quanto por elas mesmas, para sobreviver. “Não sou de falar muito,” minha mãe escreve. “[Eu fui] ensinada…a ficar calada”, a “rasgar e queimar documentos, papéis e fotografias.” Só depois de 35 anos foi que ela conseguiu escrever – só quando ela reconheceu que a sobrevivência agora demandava que ela falasse.
Em 2023, histórias de violência continuam a ser reescritas por aqueles no poder. Cinco anos atrás, Jair Bolsonaro foi eleito presidente mesmo depois de saudar um oficial militar que dirigiu a prisão na qual foi torturada a ex-presidenta Dilma Rousseff, além de elogiar diversas vezes a ditadura. Mais de 57 milhões de pessoas votaram nele – um fracasso não só da política eleitoral, mas também da educação.
Durante sua presidência, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDEP) – órgão estabelecido para investigar os crimes da ditadura—negou pedidos legítimos de familiares que buscavam o reconhecimento por parte do governo que seus entes queridos foram mortos ou desaparecidos. Mais tarde, Bolsonaro desmantelou a Comissão totalmente e o presidente Lula ainda não a reinstalou – apesar das demandas de familiares e das promessas do Ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, de que a Comissão seria reinstalada em 25 de outubro deste ano.
Essa promessa, por acaso, foi feita inicialmente no Chile, lugar que Bolsonaro declarou não ser “uma Cuba graças aos que tiveram a coragem de dar um basta à esquerda em 1973.” Devastadoramente, ele não é o único a pensar assim. No dia 9 de setembro, dias antes do aniversário do golpe, grupos da direita balançavam bandeiras com imagens de Pinochet na frente do La Moneda. No dia seguinte, eles interromperam uma vigília no cemitério onde está enterrado o cantor e militante Victor Jara. “Chilenos proeminentes e poderosos continuam a insistir que Pinochet era um ‘estadista’ [e] negar as realidades de um regime bárbaro,” escreveu o arquivista Peter Kornbluh em Agosto.
O trabalho de preservar a verdade e a memória social tem sido deixado a cargo dos familiares, manifestantes e museus – mas o estado precisa apoiar e educar mais,— tanto no Chile quanto no Brasil. De fato, comparado com o Chile, o Brasil está bastante atrasado. Militares torturadores andam pelas ruas com impunidade. Não temos um museu nacional da memória— algo que também foi prometido pelo Ministro Flávio Dino no Chile em setembro. Tortura e execuções continuam sendo práticas generalizadas da policia— o Brasil é um dos países onde a policia mais mata.
Não que o Chile tenha alcançado um ideal–o país está bem longe de um reconhecimento coletivo sobre o terror da ditadura. Em 2013, apesar das reformas que incluíram a ditadura no currículo escolar, poucas escolas ensinavam o tema. Desde então, o percentual de chilenos que acredita que o golpe foi justificado aumentou em 20 por cento – de 16% para 36%. Mais que nunca, a memória continua a ser essencial para a política de resistência. Compartilhar história é reconstruir as fotos que foram rasgadas e as verdades que foram enterradas – para presidentes como Gabriel Boric, nascido mais de uma década após o golpe, para jovens adultos que felizmente só conhecem regimes democráticos e para crianças. À medida que o tempo passa, a necessidade de preservar as memórias em primeira pessoa se torna mais urgente e universal.
Testemunha da História
Minha avó, Tércia, faleceu este ano. Um ex-colega escreveu em seu obituário que “uma memória essencial morreu com ela.”
Após escapar do regime do Pinochet, ela morou na Suécia e, depois, em Cuba – onde conheceu meu segundo avô, que fugiu do Brasil pelo Uruguai, do Chile para o Panamá e, eventualmente, para Havana. Ele adotou minha mãe e foi pai de outros dois filhos com minha avó. Nos últimos anos da ditadura no Brasil, eles foram alguns dos primeiros a retornarem do exílio ao seu país de origem.
Tércia foi e continuou tornando-se muitas coisas. Ela foi professora, artista e poeta; mãe de três, avó de cinco e, eventualmente, viúva duas vezes – ambos os esposos perdidos para a ditadura do Brasil. Um deles, Jarbas, ativista estudantil assassinado pelos militares ainda jovem, e o outro, Sebastião Mendes Filho, morto com mais idade quando as sequelas da facada que sofreu se desenvolveram em um implacável câncer no pâncreas. Minha avó falava em escrever um livro com o título Os Meus Dois Amores. Ela não teve essa chance.
Cinquenta anos depois do golpe no Chile e quase sessenta depois do golpe no Brasil, eu lamento a perda de suas histórias. Estou tentando lembrar e escrever tudo o que sei agora e preencher as lacunas do que está faltando. Foi essa necessidade – essa missão – que me levou a Santiago. E é essa necessidade que reforça os meus laços com o Brasil e sua luta pela verdade e memória.
Por toda a América Latina, temos a tradição de declarar que aqueles que sofreram violência política e que perdemos ainda estão conosco; que nós carregamos seu legado e continuamos sua luta. Após dizer seus nomes, respondemos ‘presente’.
A todas as vítimas da ditadura— no Chile, no Brasil, na América Latina: Presente.
Tércia Maria Rodrigues Mendes, presente! Agora e sempre!
Sobre os autores
Mara Marques Cavallaro
é uma escritora baseada na Costa Leste dos Estados Unidos. Atualmente, ela trabalha com fact-checking e é estagiária editorial no The Nation.