Trecho retirado do livro Extinção da Internet (2023) de Geert Lovink, publicado no Brasil pela editora Funilaria.
Há alguns anos, ativistas, pesquisadores, filósofos e intelectuais comentam que a internet não é mais o que já foi. A esperança de construir um mundo mais justo via rede — com menos discriminação e mais respeito aos outros, com todos sendo também mídia, a partir de uma saudável proliferação de pontos de vista causada pela liberação do polo emissor da informação — tem dado lugar a um pesadelo de desinformação. Realidades paralelas são construídas a partir de informações mentirosas proliferadas em dispositivos acessados por, pelo menos, dois terços da população mundial, turbinadas por uma defesa por vezes absolutista da liberdade de expressão e pela plataformização de nossas vidas online.
A consequência tem sido conhecida: circulação de discursos de ódio e espalhamento de desinformação “como nunca na história”; captura ativa de nossa atenção e do nosso olhar, transformados em dados que, coletados em quase todos os lugares da rede, estão a serviço de poucas empresas que lucram cada vez mais oferecendo tudo para o nosso consumo; precarização das relações de trabalho a partir de novas formas de exploração do trabalho digital, atomizada e globalizada também para tentar dificultar qualquer tipo de reação organizada dos trabalhadores; continuação das relações coloniais, agora a partir de um colonialismo digital (ou de dados), criado a partir de um processo de extração de valor que reproduz e amplia o racismo, incrustando também na técnica os vieses de raça (e gênero), em um fenômeno chamado de racismo algorítmico.
Essa exploração também tem levado dados do sul global para o enriquecimento de empresas de tecnologia do norte, especialmente dos Estados Unidos e da Europa, o que também traz consequências para a soberania digital dos países que não constroem uma infraestrutura própria para armazenar e cuidar de suas informações, jogando conhecimento precioso silenciosamente em centros privados para armazenamento de dados que não sabemos bem como funcionam, como nas universidades que adotam nuvens (“Não existe nuvem: é apenas os computadores de outras pessoas” diz o meme) das big techs. E isso é apenas um resumo: poderíamos falar também das consequências ambientais de um modo de vida conectado cada vez mais dependente de energia em um planeta cada vez mais quente e colapsado, ou dos efeitos psicológicos que a hiper exposição as telas e informações rasas que abundam nas redes sociais têm sobre o cérebro humano — mas, por hora, está bom para você entender o que estou falando.
Diante de tudo isso, é inevitável pensar que, de fato, a internet deu ruim — ou, pelo menos, não cumpriu nossas expectativas de melhora global e pode estar acelerando os problemas do planeta. O que nos leva a outro pensamento: o que faremos diante desse colapso? Há alguns anos, muita gente tem diagnosticado esse cenário e tentado apontar caminhos, entre os quais se encontra o autor deste livro. A questão, hoje mais clara do que duas décadas atrás, é muito mais política e econômica do que tecnológica. E quando falamos nestas duas palavras — política e economia —, sabemos que toda e qualquer bifurcação não será fácil nem suave. “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, como disse Mark Fisher, numa frase hoje bastante ouvida e que sintetiza bem a encruzilhada que nos traz o chamado realismo capitalista. Será que outra internet — uma mais próxima à que acreditávamos nos 2000, descentralizada, menos vigilante, mais das pessoas do que de empresas e robôs — ainda é possível?
É a essa pergunta inquietante que buscamos, nesta coleção, tentar responder. Sem a pretensão de trazer respostas definitivas nem únicas, porque não existem. Mas com a esperança de politizar esse mal-estar que nos acomete para jogar luz a bifurcações possíveis — já existentes ou a serem criadas. Falar bastante do problema é um primeiro passo para tentar resolvê-lo, nos ensina a psicanálise.
O livro que você tem em mãos, portanto, é o primeiro desse esforço. Geert Lovink, seu autor, é alguém que faz a crítica da internet tal como ela se tornou há algum tempo; já no final dos anos 1990, a partir do conceito de mídia tática (da qual é o seu principal proponente) e de uma corrente de estudos chamada net-criticism, apontava para os perigos da internet estar diretamente relacionada com a expansão do poder de empresas privadas em sua maioria oriundas de um único país, os Estados Unidos. Em coro com A Ideologia Californiana, ensaio seminal (publicado em 1995) de Richard Barbrook e Andy Cameron sobre a tecnopolítica da rede, Geert aponta, há mais de 20 anos, também para a necessidade de criação de infraestruturas e redes autônomas, organizadas coletivamente e independentes de grandes empresas, para que não deixássemos o desenvolvimento, o controle e a inovação das tecnologias digitais em rede apenas na mão de um punhado de organizações privadas do Vale do Silício.
Professor da Universidade de Amsterdam de Ciências Aplicadas, Geert tem um longo histórico no ativismo midiático e ciberativista europeu. Membro fundador da Nettime — um grupo e uma lista de e-mails sobre cultura digital (ou “networked cultures”), política e tática que, desde 1996, reúne uma série de pesquisadores, professores, teóricos e práticos europeus —, também fundou, em 2004, o Institute of Network Cultures, que trabalha com pesquisas e publicações ligadas a arte digital, cultura da imagem, design e publicação digital a partir de uma perspectiva interdisciplinar e crítica. É autor de livros como Networks Without a Case (2012), Social Media Abyss (2016) e Organization after Social Media (com Ned Rossiter) – todos sem edição brasileira, mas traduzidos para o alemão, espanhol e italiano. Nos últimos anos, Geert tem reforçado sua posição crítica ao que a internet se transformou em livros como Sad by Design (2019) e Stuck on the Platform (2022), nos quais ele analisa o crescimento das plataformas de mídias sociais e a relação do design pela qual foram feitas com a proliferação da desinformação, da circulação de memes tóxicos e discursos de ódio, da fadiga online a partir das telas (explorado durante a pandemia no chamado “zoom bombing”) e da adicção online.
Neste A Extinção da Internet, ele segue nessa análise, agora de modo sintético e dialético, trazendo um resumo de suas principais questões atuais sobre essa “ressaca da internet”, como eu mesmo já a chamei em 2018. Provoca sua plateia — o texto parte de uma aula inaugural dada em 18 de novembro de 2022 na Universidade de Amsterdam — a examinar a posição atual da internet para se pensar, criativamente, em alternativas de bifurcação. Para isso, usa memes, cita fóruns da internet, menciona ativistas conhecidos e chama um time de pensadores que estão, quase todos, se debruçando sobre a relação do capitalismo neoliberal com a tecnologia digital: há Bernard Stiegler, Franco “Bifo” Berardi, Tiziana Terranova, Donatella Della Ratta, Yuk Hui, mas também outros de gerações anteriores, como Mark Fisher, Jacques Derrida, Bertolt Brecht e Walter Benjamin. De Stiegler, vem uma máxima que também percorre as intenções deste livro: “colocar os automatismos a serviço de uma desautomização negantrópica”. De Benjamin, um convite a uma tarefa de hoje: “escovar a história a contrapelo”.
Propor bifurcações é uma forma de lutar contra o imobilismo do “não há nada a fazer”, que a leitura dos primeiros parágrafos dessa introdução pode sugerir. Geert faz, diversas vezes neste livro, perguntas para nos tirar dessa posição exclusivamente niilista e nos chamar à ação. Por exemplo: “Como transformar descontentamento e contra-hegemonia em uma verdadeira transição de poder nesta era da plataforma tardia? O que pode ocupar o vazio em nossos cérebros desfragmentados depois que a internet desocupar a cena? Em que pode consistir a vida depois que nossas mentes frágeis não forem mais atacadas pelos efeitos entorpecentes e deprimentes de rolagem infinita?”
Embora fale em colonialismo, a perspectiva de Geert ainda é a europeia branca. Nesse caso, sua visão nos ajuda a entender os problemas do ocidente em que a internet foi concebida, capturando um zeitgeist de quem – com menos problemas de conexão, mais produção de tecnologias digitais e a caminho (neste 2023) de uma regulação razoável das plataformas — ainda se pergunta o que pode ser feito para reinventar a internet. Nos próximos volumes da coleção, trataremos perspectivas sobre as bifurcações possíveis a partir de pontos de vista do sul global. Acreditamos que nossa região, ainda com todos os problemas de acesso, regulação possível e desigualdade generalizada, tem o potencial real de alternativas novas ao incorporar e incubar soluções desde a fundação, baseadas na inventividade gambiarrística de quem cria porque entende melhor que não há outro caminho para (sobre)viver.
Sobre os autores
é jornalista, doutor em comunicação pela UFRGS e pesquisador na Escola de Comunicação, Mídia e Informação (ECMI) da FGV. Editor do BaixaCultura e autor do livro “A Cultura é Livre: uma história da resistência antipropriedade”, publicado pela Autonomia Literária e Fundação Rosa Luxemburgo em 2021, com prefácio de Gilberto Gil, que discute a ideia da cultura livre da Antiguidade até a internet, passando pela percepção dos ameríndios e chineses sobre a ideia de propriedade intelectual, a vasta discussão em torno da pirataria na internet, do Copyleft, Creative Commons e outros hacks no sistema do direito autoral.