A publicação do livro Capitalismo Carcerário – que chega ao Brasil através do selo editorial Igrá Kniga -, traz para o português os primeiros textos da autora estadunidense Jackie Wang, que é abolicionista penal, poeta, artista e pesquisadora do Departamento de Estudos Africanos e Afro-americanos na Universidade de Harvard, onde se especializou na investigação sobre raça e a economia política da polícia e das prisões nos EUA.
O livro Capitalismo Carcerário, que se encontra agora em pré-venda numa campanha de financiamento colaborativo, faz a atualização das dimensões raciais, econômicas, políticas, jurídicas e tecnológicas do problema do encarceramento em massa nos EUA. Ele é composto por sete ensaios que analisam, entre outras coisas, as transformações no controle biopolítico de jovens infratores a partir da década de 1990, com a consequente adoção da prisão perpétua para menores de idade; a formação de um mercado racializado de dívidas subprime que promoveu a despossessão da população negra nos EUA; a formatação de um esquema oficial da polícia e da justiça criminal que prende e arrecada dinheiro da população pobre, com o intuito de resolver o déficit fiscal dos municípios após a crise de 2008; o desenvolvimento e aplicação de tecnologias preditivas e algorítmicas no policiamento, que afetam mais diretamente a população negra; e um debate poético sobre as possibilidades imaginativas do abolicionismo penal.
O livro de Jackie Wang dá início à coleção “Raça e Capitalismo”, uma série de traduções que relaciona as transformações do capitalismo ao continuum carcerário racializado na história dos EUA. O segundo livro da coleção (que já está em processo de tradução e virá ao público no final de 2022, também pela Igrá Kniga) é o clássico Golden Gulag, da geógrafa e abolicionista Ruth Wilson Gilmore.
O objetivo do texto abaixo é apresentar ao leitor interessado na temática do livro Capitalismo Carcerário uma espécie de “índice comentado”. Separado pelos capítulos que compõem a obra, o texto mistura algumas citações da autora com comentários feitos pelo tradutor, de modo a apresentar, de passagem, o conteúdo de cada ensaio.
A introdução de Capitalismo Carcerário tem dois principais objetivos. Primeiro, criar um fio condutor entre os sete ensaios do livro, de forma a avançar numa discussão mais geral e, ao mesmo tempo, permitir que cada texto mantenha a potência que originalmente lhe trouxe vida. Segundo, expor o cruzamento que existe entre a história de vida da autora e a conformação da atual estrutura de encarceramento em massa nos EUA. O fato autobiográfico que está por trás de todo o projeto do livro é a pena de prisão perpétua de um de seus irmãos, quando ainda era menor de idade. É a partir dessa premissa pessoal, e da observação dos efeitos que a crise de 2008 geraram sobre a carceralidade nos EUA, que Jackie Wang se posiciona criticamente no debate atual.
Ao apresentar os diversos debates teóricos – resgatando inclusive as “contribuições do marxismo negro produzidas pelo Partido dos Pantera Negras” -, ela busca atualizar a análise do capitalismo racial para o contexto contemporâneo. De um lado, autores como Michael C. Dawson focam na questão da exploração do trabalho e na expropriação sobre a população negra para definir as clivagens sociais postas pelo racismo. De outro, intelectuais que usam uma lente afropessimista, como Frank Wilderson e Saidiya Hartman, acreditam que a análise do capitalismo racial deve passar pela consideração da “violência gratuita” como uma característica definidora do racismo antinegro. Ela, entretanto, se coloca entre essas duas correntes, mobilizando teoricamente o eixo principal de cada uma delas. Assim explica Wang:
“Neste livro, sustento que a racialização do negro se dá, ao mesmo tempo, por meio da lógica da descartabilidade e da exploração. Enquanto analiso como o governo e as instituições financeiras se utilizam de mecanismos de extorsão, desenhados para pilhar os estadunidenses negros, também estou ciente de que esse caminho de pensamento pode levar ao entendimento de que o racismo é racional, já que, dessa maneira, ele pode ser reduzido a um conjunto de determinantes econômicas ou à motivação pelo lucro. Uma análise pelo determinismo econômico apenas faria encobrir e suavizar a brutalidade crua do racismo estadunidense.
Para os afropessimistas, não é a esfera econômica que forma a “base” da qual emerge a “superestrutura” da sociedade civil, da política e da cultura, mas a violência antinegro é que possibilita e se torna uma necessidade para o capitalismo global, a liberdade, a sociedade civil e a vida comunitária de sujeitos brancos (e não negros). Em suma, a violência antinegro não é um desvio dos supostos valores liberais estadunidenses de igualdade, multiculturalismo e liberdade – ela é a fundação sobre a qual os Estados Unidos foram erguidos.
[…] Em vez de focar no âmbito da produção, analisando como o racismo opera por meio da diferenciação salarial, este trabalho tenta identificar e analisar o que eu considero as duas principais modalidades do capitalismo racial contemporâneo: o empréstimo predatório e a governança parasitária. Essas formas de governança e as práticas econômicas racializadas estão conectadas na medida em que ambas surgem para protelar, temporariamente, as crises geradas pelo capital financeiro. Assim, o título deste livro, Capitalismo Carcerário, não é uma tentativa de postular a carceralidade como um efeito do capitalismo, mas de pensar sobre o continuum carcerário que existe ao lado e coincidente à dinâmica do capitalismo tardio.”
Acumulação racializada por despossessão na era do capital financeiro
No ensaio que abre o livro, Jackie Wang parte das discussões sobre acumulação primitiva presentes em Karl Marx, e desdobradas posteriormente em Rosa Luxemburgo e David Harvey, para elaborar a concepção de um continuum histórico dos processos de despossessão da população negra dos EUA. Em oposição à ideia de uma violência que teria acontecido “antes” do capitalismo, submetendo todos à condição de trabalhadores assalariados, Wang diz que a racialização do negro nos EUA serve como um processo perene de diferenciação, uma fronteira de expansão interna constantemente posta a serviço da reprodução do capital:
“A racialização do negro, portanto, é a característica que torna os sujeitos ajustados à hiperexploração e expropriação, de um lado, e à aniquilação, de outro. Antes da era neoliberal, a ordem racial foi sustentada pelo Estado e as distinções raciais eram aplicadas por meio de códigos de lei, da segregação do Jim Crow e de outros arranjos formais. No contexto contemporâneo, embora o regime jurídico subjacente à ordem racial tenha sido desmantelado, a raça manteve seu caráter duplo, que consiste não “apenas em uma atribuição probabilística de valor econômico relativo, mas também num indicador de vulnerabilidade diferencial à violência estatal”. Em outras palavras, vulnerabilidade à hiperexploração e à expropriação no campo econômico, e à morte prematura nos campos político e social.”
Entre as décadas de 1930 e 1970, quando há a suburbanização da população branca nos EUA, os negros são barrados das linhas de crédito que permitiam a forma mais comum do acúmulo de riqueza: a casa própria. Estigmatizados em bairros classificados pelas agências de empréstimos como “zonas de risco”, os negros terminam o século passado excluídos dos mecanismos de acesso a crédito e, portanto, da propriedade. Foi somente a partir do inchaço da bolha imobiliária, que culminaria na crise de 2008, e da transformação dos chamados “mutuários de risco” em ativos atrativos para o mercado financeiro, que a população negra ganha acesso aos empréstimos. Isso, porém, não acontece sem contradições:
“Nos anos que antecederam a quebra do mercado imobiliário de 2008, os mutuários negros e latinos que intencionavam comprar casas, tornaram-se alvos de empréstimos hipotecários subprime por parte das instituições de crédito – movimento esse que delimita uma mudança da exclusão financeira para a expropriação via inclusão financeira. Essa transição foi facilitada pelo apoio de soluções “de mercado” para os problemas estruturais: em particular, a crença na ideia de que a distância racial da riqueza poderia ser extinta através da expansão do acesso ao crédito. No entanto, esses empréstimos não foram projetados para que os mutuários pretos e pardos se tornassem proprietários; eles serviram como uma forma de converter o risco em fonte de receita, a partir de uma arquitetura financeira na qual os mutuários acabassem despossuídos de suas casas.”
Na origem da crise de 2008, portanto, está a associação entre negritude e risco e sua consequente transformação em ativo financeiro com taxas de juros flutuantes e lucrativas aos bancos, que levariam seus mutuários, necessariamente, à inadimplência. Assim, para Wang, a crise não está meramente no estouro da bolha de 2008, mas já se vê refletida nos mecanismos financeiros racistas anteriores a ele, que tiveram na falsificação de contas, sobretaxas fraudulentas e taxas de juros abusivas por parte dos bancos a sua principal fonte de receita.
Não bastasse o assédio das instituições financeiras sobre a população negra e pobre dos EUA – que lhe gerou um processo histórico de despossessão -, a polícia, a partir de 2008, passa a cumprir um papel que visa resolver os problemas gerados pela quebra da bolsa. Devido ao colapso do setor imobiliário, as fontes de arrecadação dos estados e municípios despencam e estes entes federativos começam a depender de uma geração de receita vinda dos mecanismos de repressão da polícia e do sistema jurídico para cobrir os rombos nos orçamentos. Não à toa, “no Texas, o espantoso número de 650.000 pessoas está preso por não pagar multas.” Assim, a relação entre a crise orçamentária dos estados e municípios e o aprofundamento da repressão policial se aprofunda.
Policiamento como pilhagem
“Em setembro de 2015, o juiz Marvin Wiggins, do condado de Perry, estado do Alabama, discursou em um tribunal abarrotado de pessoas que deviam taxas ou multas: ‘Bom dia, senhoras e senhores,’ ele começou. ‘Para vossa consideração, há um posto de coleta de sangue lá fora. Se você não tem dinheiro, vá lá, doe seu sangue e traga de volta o comprovante da doação.’ […] O juiz deu continuidade e observou que ‘o xerife [tinha] algemas suficientes’ para aqueles que não quisessem doar sangue e não pudessem pagar as taxas e multas pelas quais estavam sendo cobrados. […] Em troca da doação, eles ‘receberiam um crédito de US$ 100 para descontar de suas multas’.”
Em outra ocasião, ao falar de Barrett, um homem que cumpria a liberdade condicional e tinha que pagar pelos serviços privados ligados a ela, como o aluguel da tornozeleira eletrônica, por exemplo, Wang afirma que a venda do plasma sanguíneo era sua única fonte de renda. Barrett, entretanto, observa:
“‘Você pode doar plasma duas vezes por semana, desde que esteja fisicamente saudável… Eu doei todo o plasma que pude, peguei esse dinheiro e joguei na tornozeleira’. Barrett, que passou a deixar de comer para pagar suas dívidas, acabou se tornando inapto à doação do plasma, pois seus níveis de proteína estavam muito baixos. Depois que sua dívida com a Sentinel extrapolou os US$ 1.000, a empresa obteve um mandado e Barrett foi enviado à prisão por não pagá-la.”
Essa relação vampiresca do sistema judiciário com a população, que literalmente extrai seu sangue em troca do pagamento de taxas e multas judiciais, é a caricatura de um problema social mais amplo que vem atingindo os EUA nos últimos anos. Quando o mercado imobiliário entrou em colapso em 2008, os governos locais perderam uma parcela substancial de um de seus principais fluxos de receita: o imposto sobre a propriedade. Algumas das cidades viram suas arrecadações caírem em mais de 40%. Até a publicação do livro, em 2018, a soma dos títulos das dívidas municipais nos EUA já ultrapassava os U$S 3,7 trilhões. Wang, assim, resume o processo: “o colapso do mercado imobiliário gerou uma crise econômica global que levou à perda de receita dos municípios, catalisando a criação de esquemas fiscais municipais que passaram a se utilizar da polícia para pilhar os moradores.”
Ao contrário de outros serviços públicos (como educação, saúde, moradia), que se viram obrigados a entrar num regime ainda mais austero frente ao rombo orçamentário deixado pela crise de 2008, a polícia, nesse “novo regime fiscal”, vem assumindo o papel de geradora de receita direta, o que garante que seus departamentos não sofram demissões quando há déficit na receita fiscal. Em outras palavras, o equilíbrio do orçamento público vem dependendo da capacidade de usar o poder de polícia e o sistema judiciário para saquear os moradores através da cobrança de taxas e multas, principalmente daqueles que vivem em bairros pobres e negros.
No município de Ferguson, palco das revoltas antirracistas de 2014 após a Justiça resolver não indiciar o policial Darren Wilson pelo assassinato do jovem negro Michael Brown, uma investigação feita no Departamento de Polícia da cidade revelou que as missões, locais e horários de patrulhamento estavam sendo ajustados em função da capacidade de aplicação de multas no maior número possível de pessoas. Após a investigação, também foi observado que as avaliações e promoções dos agentes estavam diretamente condicionadas a sua capacidade de geração de receita a partir dessas práticas predatórias da polícia. Mais de 20% de todo orçamento de Ferguson já havia se rendido a esse esquema oficial de pilhagem.
Wang mostra como esse vem sendo o modelo adotado por diversos municípios dos EUA. Ela recorre ao exemplo histórico da falência da cidade de Nova York na década de 1970 e traz para o debate Marx, Harvey, Kirkpatrick e outros teóricos que discutem o capital portador de juros e o papel do Estado nos orçamentos públicos para entender a quebra de Detroit e Ferguson nos dias atuais. Com a financeirização das práticas contábeis nos orçamentos públicos, que buscam alcançar um maior rendimento através de taxas de juros mais altas em ativos de risco, os mecanismos especulativos da economia de cassino foram injetados nos corredores governamentais. Assim, sempre que uma crise fiscal é declarada, impõe-se sobre a governança um estado de exceção político e financeiro, com a perda da autoridade nas decisões por parte dos funcionários eleitos e sua transferência para os chamados Emergency Managers, que visam garantir a remuneração dos ativos através de práticas austeras do governo, de um lado, e da geração de receita a partir da polícia e do sistema criminal sobre os moradores, de outro. Tamanha é a simbiose entre as necessidades do mercado e o funcionamento da polícia, que após as investigações sobre o Departamento de Polícia de Ferguson revelarem esses mecanismos predatórios da polícia, os títulos públicos da cidade foram rebaixados pela agência Moody’s para a categoria “lixo”, com a declarada justificativa de que isso havia ocorrido devido à “diminuição das principais fontes de receita geradas a partir de taxas e multas”. Na esteira da crise de 2008, é importante analisar a esfera financeira não apenas como um setor “improdutivo”, fora da economia “real”, mas como um campo sobre o qual se dá a “acumulação por despossessão” sobre as comunidades negras a mando do Estado.
Sobre os moradores negros de Ferguson opera uma outra simbiose, resultado direto da que foi descrita acima entre o mercado e a polícia. O cárcere e a vida cotidiana se misturam de tal maneira que a cobrança municipal de multas – criadora de uma atmosfera de medo, perturbação, miséria financeira e imobilidade – se revela muito mais preocupante do que um “mero” método de aumento de receita. Ela personifica o transbordamento da lógica prisional para as ruas e transforma o espaço em que os moradores vivem num espaço carcerário. Um residente de um bairro negro de Ferguson certa vez disse a um jornalista:
“Temos pessoas que têm mandados policiais por causa de multas de trânsito e estão efetivamente presas em suas casas… Elas não podem sair porque seriam presas. Em alguns casos, as pessoas até tinham empregos, mas decidiram que o risco de serem presas não compensava a tentativa de sair de casa para o trabalho.”
“Eles carregam armas em vez de lancheiras”
Em 1994, sob a gestão de Bill Clinton, foi para o Congresso um projeto de lei chamado Crime Bill, que acirraria ainda mais o regime de punição para os estadunidenses. Aprovada também no Senado, a partir da redação do então Senador Joe Biden, o texto ganhou força de lei e incorporou à estrutura nacional 100.000 novos agentes ligados à segurança, acrescentou US$ 9,7 bilhões em financiamento para o sistema prisional e US$ 6,1 bilhões para programas de prevenção, além de ampliar a pena morte e criminalizar pequenas infrações. Já é consenso dizer que essa lei foi uma das grandes responsáveis pelo crescimento exponencial da população carcerária nos EUA testemunhado na década de 1990.
Em 1996, num evento que visava angariar apoio político ao projeto de lei acima mencionado, a então primeira dama Hillary Clinton fez uso do termo “superpredador” para chamar a atenção para uma suposta ameaça. Segundo ela, as gangues estavam repletas de jovens violentos, que não tinham consciência nem empatia e que eram aliciados pelos grandes cartéis de drogas para agir sem clemência nas ruas das cidades. Dando fundamento a esse argumento, estatísticos e criminologistas também anunciaram o problema. Dentre eles, o mais proeminente pesquisador de Princeton sobre assunto na década de 1990, John DiIulio, que afirmou o seguinte em seu artigo A Chegada dos Superpredadores: “Todas as pesquisas indicam que os americanos estão sentados sobre uma bomba relógio inflada pelo aumento de criminosos. E todos aqueles que estão mais próximos do problema ouvem o tique-taque dessa bomba.”
O clima de pânico não se baseava em um problema real, mas na promessa futura de um problema. Como o próprio DiIulio disse certa vez, “o problema do crime negro”. Segundo ele, o crescimento populacional geraria, automaticamente, uma quantidade maior de jovens e, consequentemente, mais jovens delinquentes: estupradores, assassinos e assaltantes. A menção à raça, de acordo com outro artigo seu chamado “Let ‘Em Rot” [Deixe-os Apodrecer], não trazia nenhum componente preconceituoso, senão a mera projeção e análise empírica dos fatos. Aos demais, àqueles que criticavam sua posição, recebia dele a alcunha de “elite anti-encarceramento”. A crescente desse pânico político e social se encontrou com a expansão do sistema industrial-prisional ocorrida na década de 1990 e promoveu o avanço da punitividade sobre o território etário dos menores de idade. O terceiro ensaio deste livro, portanto, é uma investigação sobre a racialização do mito do “superpredador juvenil”, as transformações nas formas de controle biopolítico e o decorrente acirramento das penas para os menores de idade a partir da implementação da cruel juvenile life without parole (JLWOP) sentence [prisão perpétua juvenil sem liberdade condicional].
Mas para o leitor que trava contato pela primeira vez com Jackie Wang, é importante dizer uma coisa. Sua implicação com a temática do livro não parte de um deleite categorial, nem mesmo – o que já seria mais interessante – da escolha voluntária de uma causa alheia que ela decide apoiar. Esse livro se constrói sobre as bases de uma experiência autobiográfica marcante, que lançou a autora, ainda em seus anos de formação, nos tortuosos corredores da burocracia jurídica estadunidense. Logo no começo do capítulo, ela explica suas motivações e dá o tom do que também é encontrado em outras partes do livro. Ou seja, uma mistura entre o resgate de suas experiências pessoais e o mergulho em autores e teorias que a auxiliam na compreensão das grandes questões da sociedade estadunidense, que são, elas também, suas questões:
“Há um nó político no centro da minha vida, um ponto de grande densidade em torno do qual orbitam minhas questões sobre o mundo e sobre a forma como este está estruturado. Tratar dessas questões sem falar do acontecimento que as originou estaria em conformidade com a postura que se espera de um intelectual. No entanto, me parece importante falar da gênese desse ‘nó’ antes de tentar desatá-lo. Este ensaio aborda as dimensões biopolíticas das construções contemporâneas da delinquência juvenil, utilizando-se das teorias de Roberto Esposito, Giorgio Agamben e Michel Foucault. O que me levou a este assunto foi um evento autobiográfico que aconteceu quando eu era adolescente: […] meu irmão mais velho foi condenado à prisão perpétua sem liberdade condicional (JLWOP), na Flórida, por um crime que ele alegadamente cometeu quando tinha dezessete anos.”
Todo esse aspecto político da década de 1990, no qual a autora esteve diretamente implicada, foi responsável por tornar a distinção entre jovens e adultos nos EUA numa zona jurídica cinzenta. A erosão dessa distinção coincidiu com uma reversão da concepção pública do jovem: em vez de ser visto como vulnerável, o jovem (racializado) passou a ser entendido como predatório. Assim, Wang defende que
“o ‘jovem’ – longe de ser uma categoria natural, que corresponde a um conjunto fixo de características – é uma construção biopolítica que delimita a aplicação do direito penal. A construção biopolítica dos jovens, enquanto sujeitos definidos pela irracionalidade, caracteriza este subconjunto da população como um risco calculável que deve ser gerenciado preventivamente.”
Desta maneira, a transformação do jovem em sujeito julgado pelos tribunais de adultos tem como função sua neutralização. Ou seja, sua captura final (sua expulsão) só ocorre, primeiro, porque foi incluído numa legislação capaz de aniquilá-lo. Recebem o direito de ser punidos como adultos. Ou então, como define Esposito, fazendo alusão a um corpo social que precisa se livrar de suas infecções: “o corpo vence um veneno não ao expeli-lo para fora do organismo, mas tornando-o, de alguma maneira, parte do corpo”.
A conquista do corpo jovem pelo sistema jurídico, que partiu de um medo social sobre as expectativas futuras, teve, de antemão, um veredito pronto: a relação entre negritude e criminalidade e a certeza de que a vida deveria ser considerada culpada antecipadamente, independente do crime real. A possibilidade de impingir sobre os jovens, negros em sua maioria, a prisão perpétua sem liberdade condicional, é uma decisão preventiva e não responsiva ao problema. Ela promove uma reversão lógica entre culpa e condenação que pode chegar até mesmo na criminalização do feto.
“Esta é uma história sobre nerds e policiais”
A história recente dos EUA está recheada de levantes, revoltas e distúrbios civis causados pela violência policial contra pessoas não-brancas. Watts, em 1965, é um desses eventos relevantes. Foi seguida por diversos outros menores até que, em 1992, em Los Angeles, após a absolvição dos quatro policiais que lincharam Rodney King, os EUA viram eclodir a revolta que mais marcou a imaginação popular desde a era dos direitos civis. De lá pra cá, Cincinnati (2001), Oakland (2009), Ferguson (2014) e, mais recentemente, Mineápolis (2020), também viram surgir revoltas desencadeadas pela violência policial contra jovens negros.
A legitimidade da polícia sempre foi questionada por aqueles que mais sofrem com o policiamento. As pessoas pobres, pretas e pardas são rotineiramente paradas, revistadas, assediadas, vigiadas e forçadas a viver sob as constantes e violentas incursões policiais nos locais onde moram. No entanto, nos últimos anos, esse descontentamento se generalizou como resultado do aumento da brutalidade e também da rápida disseminação de imagens de assassinatos policiais capturadas por câmeras. Os assassinatos de Mike Brown e Eric Garner (antes mesmo dos recentes acontecimentos em torno de George Floyd) marcaram, segundo a autora, o auge da crise de legitimidade da polícia dos EUA. A polícia, assim, se viu obrigada a passar por grandes transformações, utilizando-se da incorporação de ferramentas algorítmicas (como o Compstat e o Predpol, por exemplo) não meramente como aprimoramento tecnológico dos modelos e práticas do policiamento, mas principalmente para impôr uma revisão de sua imagem pública por meio da implementação da objetividade oferecida pelas análises estatísticas. Como observou Zach Friend – o homem por trás da estratégia de mídia da empresa PredPol [abreviação para Policiamento Preditivo] – “parece meio que ficção científica, mas está mais para fato científico”. Ao apelar para o “fato” e reformular a prática policial como uma ciência neutra, o policiamento algorítmico tenta resolver a crise de legitimidade da polícia. Abaixo, Wang expõe essa estratégia:
“Dado que os críticos da polícia associam o policiamento ao uso arbitrário da força, à dominação racial e ao poder discricionário de tomar decisões sobre quem vai viver e quem vai morrer, a reformulação da polícia – que coloca em primeiro plano a impessoalidade estatística e remove simbolicamente a agência individual dos policiais – é uma maneira inteligente de definir sua atividade como neutra, imparcial e racional.”
Mas como, de fato, funciona o PredPol? Ele é um software que se utiliza de algoritmos – modelados a partir de equações usadas na previsão dos tremores de terra subsequentes ao terremoto – para determinar onde e quando os crimes ocorrerão. Sua base de dados, tratada pela ciência policial da mesma forma que os fenômenos da natureza, é composta pelos antigos dados criminais da localidade onde o software é aplicado. Na sequência, Wang explica como o software chega no dia-a-dia dos policiais:
“Nos departamentos de polícia que usam o PredPol, os policiais recebem impressos os mapas da jurisdição sobrepostos por quadrados vermelhos que indicam onde os crimes supostamente ocorrerão ao longo do dia. Os policiais devem patrulhar periodicamente os quadrados marcados no mapa na esperança de capturar os criminosos ou dissuadi-los antes que cometam os crimes.”
Esse quadrado no mapa serve, segundo ela, como uma espécie de zona de crime temporária: uma área geoespacial gerada por modelos matemáticos inescrutáveis aos policiais, dando a eles próprios e à sociedade a sensação de que, com isso, promovem um policiamento isento. No entanto, essa aparente neutralidade “ignora o fato de que usar dados criminais coletados pela polícia para determinar os locais para onde esses mesmos policiais devem ir, simplesmente envia-os para patrulhar os bairros pobres que eles historicamente já patrulhavam quando estavam guiados por suas intuições e preconceitos.”
A partir da substituição da raça por dados como vizinhança e localidade na programação algorítmica, o PredPol vem impondo sobre as cidades uma forma de controle e vigilância aparentemente neutra, mas que, no fim, leva à calcificação das antigas práticas policiais racializadas. Quando, por exemplo, um policial de Cleveland, em 2014, atirou fatalmente em um menino negro de 12 anos que se divertia com uma arminha de brinquedo, ele viu no menino um homem armado, pronto para reagir. O fato desse encontro ter ocorrido dentro de uma zona de crime temporária definida pelo algoritmo teria diminuído o tempo de ação do policial? Essa criança teria morrido por que o policial “sabia”, a partir dos algoritmos, que um crime ocorreria naquele local, perto daquele horário?
Sabendo que existe uma associação a priori entre crime e negritude, Jackie Wang explora neste ensaio a fusão entre Estado, pesquisas universitárias, investimento do Vale do Silício e polícia no intuito de compreender como essas novas ferramentas de necropoder algorítmico vêm se prestando à manutenção do racismo estrutural nos EUA.
O policial cibernético: RoboCop e o futuro do policiamento
O pequeno capítulo 5 traz a transcrição de um ensaio elaborado para a uma performance multimídia feita pela autora. Originalmente concebida para um festival de cinema em Los Angeles e, posteriormente, reproduzida no MoMA e no Whitney Museum of Art, ela faz o cruzamento do texto com uma camada imagética do policiamento preditivo e algorítmico.
Criando um diálogo entre o filme “Robocop: O Policial do Futuro”, sua infância, os textos do coletivo francês Tiqqun e as transformações da polícia atual, Jackie Wang busca responder a pergunta que aparece constantemente no filme do agente Murphy: Qual é o futuro do policiamento?
Os homens da megacorporação “OCP”, certa vez respondem: “setores públicos que antes não eram lucrativos, como prisões e polícias, são, na verdade, apenas mercados inexplorados.” Jackie complementa: “de um lado, a militarização da polícia. De outro, formas cibernéticas de controle.” A velha e distópica Detroit do Robocop, devastada pelos efeitos da desindustrialização e das políticas econômicas de Reagan, torna-se palco de testes da corporação para as tecnologias de guerra. Nos dias atuais, após a crise de 2008 e a falência da cidade de Detroit em 2013, como demonstrado em outros ensaios deste livro, o futuro anunciado pelo filme mostra a sua cara: “a mineração de dados e a análise preditiva trabalham ao lado desses instrumentos da força bruta.”
Esse diálogo da autora com o filme “Robocop”, revela ainda uma característica observada em outras partes do livro. O constante recurso a filmes e vídeos dá à leitura uma camada imagética que completa a discussão. Para este ensaio mesmo, foi produzido e narrado por ela um pequeno vídeo, que junta parte do texto com cenas do filme de 1987. Você pode vê-lo aqui: The Cybernetic Cop: The Future of Policing.
Contra a inocência
No sul da Califórnia, durante as décadas de 1980 e 1990, os policiais encerravam todas as denúncias de estupro e violência feitas por profissionais do sexo, membros de gangues e viciados, colocando-as em um arquivo com o carimbo “NHE”: Nenhum Humano Envolvido.
“[…] um menino de dezessete anos de Baltimore, chamado Isaiah Simmons, morreu em uma instituição para menores em 2007, quando cinco ou sete conselheiros o sufocaram durante uma imobilização que durou horas. […] No fim de março de 2012, o caso foi arquivado. […] Um artigo que encontrei online sobre o caso intitulava-se: ‘Acusações contra 5 foram retiradas na morte de infrator juvenil’. Ao enfatizar que foi um jovem infrator que morreu, o artigo imediatamente classifica Simmons como um criminoso, sinalizando aos leitores que sua morte é irrelevante e, portanto, indigna de simpatia. […] A notícia sobre o arquivamento do caso mal surtiu efeito. Não houve clamor público, nenhum apelo à ação, nenhuma discussão em torno das inúmeras questões ligadas à morte de Simmons: encarceramento de jovens, racismo, a privatização de prisões e cadeias (ele morreu em uma instalação privada), negligência médica, violência estatal e assim por diante.”
Este ensaio foi o disparador de todo o projeto do livro. Ele foi escrito antes da revolta de Ferguson e do surgimento do Black Lives Matter, num período em que assumir uma posição antipolícia nos EUA, mesmo em alguns círculos da esquerda, era considerado algo escandaloso. A intenção de Wang ao escrever “Contra a inocência” foi dar uma resposta ao que ela entendia ser um impasse político e discursivo, ou seja, “uma asfixia provocada pelo liberalismo na forma como entendemos a natureza do racismo e as táticas consideradas legítimas para combatê-lo.”
Os casos acima são apenas alguns dos tantos exemplos que aparecem ao longo do ensaio. Todas as situações em que a violência estatal é perpetrada sobre pessoas consideradas culpadas (presos, pessoas trans ou racializadas, mulheres, etc) não há apelo público à contestação e os casos mergulham no esquecimento. A busca pela inocência da vítima passou a ser um pré-requisito para a mobilização popular contra a violência do Estado e uma forma de busca por seu reconhecimento. Isso, entretanto, ignora um atributo histórico dos Estados Unidos: a associação axiomática entre negritude e culpa/criminalidade. E embora isso aconteça já há muito tempo – como visto no diálogo que a autora trava com o livro The Condemnation of Blackness, de Khalil Muhammad –, entre as décadas de 1960 e 1990, criminologistas, políticos e legisladores trabalharam vigorosamente para consolidar a figura do criminoso negro no imaginário público. Assim, a tentativa de eleger apenas as vítimas inocentes como sujeitos legítimos para a contestação é uma forma de branqueamento da própria luta antirracista, pois ignora os fatores estruturais do racismo. Wang expõe esse raciocínio:
“Por essa razão, parecia contraproducente construir uma política antirracista fundada na estrutura moral da inocência, através da qual apenas os sujeitos “respeitáveis” são considerados símbolos legítimos para a contestação do racismo. Tal estrutura política garantiria que as formas de violência estrutural e do Estado contra aqueles que não são vítimas “legítimas” continuassem obscurecidas e não fossem registradas como escandalosas. […] Ao mesmo tempo, a estrutura da inocência – que fetichiza a passividade – deslegitima formas mais ativas de revolta que poderiam ser mais potentes para realmente desafiar o racismo.”
As narrativas políticas estruturadas por pressupostos brancos se colam à ideia de pureza e inocência, e relativizam o sentimento antinegro, ignorando as formas de “violência gratuita” que não podem ser atribuídas exclusivamente às forças econômicas. Em conversa com os afropessimistas Frank Wilderson e Saidiya Hartman, Jackie chama a atenção para o fato de que a estrutura política da inocência serve, assim, para criar uma diferenciação entre aqueles que podem ser explorados como trabalhadores pelo capitalismo e os que devem ser rotulados como descartáveis ou supérfluos (como os escravos ou prisioneiros). Por fim, por mais que acionar o dispositivo da inocência possa ser estratégico em determinados momentos de enfrentamento ao Estado, construir uma política em torno da consideração da inocência como único atributo legítimo dos sujeitos, além de deixar de lado todos aqueles que recebem do Estado a alcunha de criminosos, cria-se também a sádica necessidade de se ter “ um menino negro morto para [poder provar] seu ponto de vista.”
O imaginário abolicionista penal
A poesia de Jackie Wang surge no capítulo 7 como a forma necessária para a ideia aqui apresentada. Ao se deparar com as impossibilidades do mundo e a concretude da prisão enquanto forma social, o imaginário se torna o espaço de refúgio onde se constrói, de fato, um mundo novo. O abolicionismo penal é – a partir da assunção de que a “Raça e Capitalismo” compõem dois lados da mesma moeda – o motor para as transformações de todas as relações sociais existentes. Neste ensaio, Wang intercala reflexões, poesias e relatos de prisioneiros que conseguiram, de alguma forma, vislumbrar a liberdade mesmo dentro da prisão. Abaixo, segue uma breve apresentação ao texto, feita pela própria autora:
“O falecido Mark Fisher disse uma vez que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. O mesmo poderia ser dito das prisões: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que um mundo sem prisões. E, no entanto, a prisão moderna, tal como existe nos Estados Unidos hoje, é uma invenção bastante recente. Embora os debates penalógicos sobre sistemas concorrentes de punição e reabilitação tenham ocorrido no Norte no início do século XIX, ao final da Guerra Civil, as instalações penitenciárias ainda eram incomuns em alguns estados fronteiriços. A Flórida – que agora tem um dos maiores sistemas penitenciários dos Estados Unidos – não tinha, ao final da Guerra de Secessão, nenhuma instalação penitenciária e teve que criar seu sistema penal do zero.
Ainda assim, mesmo nesta conjuntura histórica, as prisões foram completamente naturalizadas. Imaginar e trabalhar por um mundo sem prisões – que é o projeto da abolição penal – exigiria que repensássemos não apenas as bases do papel do Estado na sociedade, mas também que trabalhássemos pela transformação total de todas as relações sociais. Um projeto tão imponente e ambicioso como este é fácil de rechaçar sob a acusação de irreal, utópico, impraticável, ingênuo – um sonho irrealizável. Mas e se – ao invés de reagirmos a essas acusações com contra-argumentos que demonstram, persuasivamente, que a postura abolicionista é a única postura sensata – usarmos estrategicamente essas mesmas acusações como um ponto de partida para mostrar como a própria prisão é um problema para o pensamento que só pode ser solucionado se se usar um modo de pensar que não se curva ao realismo do presente? O reencantamento do mundo pode ser um instrumento que usamos para quebrar o realismo da prisão.
O que se segue é uma série de perguntas – conversas com revolucionários, vivos e mortos, sobre a morte, os sonhos, a luta e a experiência fenomenológica da liberdade.”
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Sobre os autores
é mestre em Geografia Humana pela USP, graduou-se em Geografia pela USP e Economia pela PUC-SP. Traduziu o livro "Capitalismo Carcerário", de Jackie Wang.