Avram Noam Chomsky completa 95 anos hoje. Para além do seu histórico de lutas notório, que começa nas discussões políticas da adolescência, passa pelo choque com a opressão aos palestinos nos anos 1950, testemunhada presencialmente, e alcança a maturidade na resistência à Guerra do Vietnã, que o tornou mundialmente famoso . Mas Chomsky também tem uma ligação grande com nosso país, conhecendo bem a dinâmica das nossas lutas e sendo um presença importante no nosso debate.
Esta Jacobin Brasil teve a honra de entrevista-lo duas vezes, uma delas em 2019, “Lula é o principal preso político do mundo”, tratando do início do governo Bolsonaro e o prolongado cárcere do atual presidente brasileiro que se resolveria só meses depois. A outra, no contexto eleitoral de 2022, tratando do desafio lançado por um Lula já livre contra a extrema direita brasileira, Bolsonaro é um instrumento da guerra de classes global.
A grandeza de Chomsky lhe permitiu se tornar um intelectual público altamente conhecido. Ele é um dos raros pensadores que foi muito além da sua área de estudos, a Linguística, por aliar o rigor com os fatos à profunda vibração militante. Agora, um ponto particularmente interessante no seu trajeto, e é a parte que nos toca, é que ele é um dos raros estudiosos estadunidenses a olhar o Brasil pela lente de suas lutas, não como objeto externo ou exótico.
Chomsky e a brasilidade contra o brasilianismo
No século XX, o brasilianismo se tornou uma espécie de primo pobre da sovietologia. Estudiosos do mundo todo, mas principalmente dos Estados Unidos, se debruçavam nas bibliotecas e ou iam a campo para decifrar o enigma do Brasil. Muitas pesquisas interessantíssimas saíram disso, mas quase sempre tinham um olhar de cima para baixo: era o Norte estudando o Sul que ele deveria dominar, ou pelo menos hegemonizar ao seu modo.
Não é o caso de diminuir um Thomas Skidmore ou um John W. Foster Dulles, mas compreender que o brasilianismo dos Estados Unidos, quase sempre, foi uma obra a serviço da hegemonia daquele país sobre o nosso. Na visão de Chomsky, a conversa entre os dois países tem contexto: “Estamos falando das duas maiores sociedades do hemisfério ocidental, o colosso do Norte e do Sul”. Disso, talvez poucos discordem, mas quase nunca é conveniente comparar as grandezas.
O brasilianismo, como também a sovietologia, é da ordem da “solarística” da ficção científica Solaris de Stanislaw Lem, eternizada pelas lentes de Andrey Tarkovsky no seu filme clássico: “o dilema de uma ciência (“solarística”), que não pode aceitar a existência de fenômenos que superem a sua capacidade de compreensão“, como diria Rafael Raffaelli. Mas no lugar do planeta vivo da ficção, gigantescos países reais que representavam desafios concretos aos objetivos dos Estados Unidos.
O olhar chomskyano sobre o Brasil é da ordem da brasilidade, não do brasilianismo. Para além do detalhe biográfico de sua esposa, Valéria, ser brasileira, é assumir um outro objetivo que era libertação das duas partes da sua condição imperial: os Estados Unidos como guarda da prisão do Imperialismo, o Brasil, um dos maiores detidos nesse esquema. A perspectiva de Chomsky, portanto, é a dos sem-terra, dos sem-teto e demais militantes, os quais lhe remetem às lutas dos Estados Unidos dos anos 1960.
A empatia estratégica como anti-imperialismo
É essa empatia estratégica, como aposta dupla na humanidade, mesmo quando ela recusa a própria salvação, explica a generosidade militante daquele venerável ancião, então aos 91 anos a ingressar nas salas da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) para falar conosco há quatro anos. Ali, não estava claro o que poderia acontecer, mas Chomsky sabia bem pelo quê lutar para superar aquele momento.
Anos antes, algumas daquelas salas eram usadas para grupos de estudos sobre sua obra, mas daquela vez serviam para falar sobre como a prisão de Lula servia ao bolsonarismo, mas como a destruição da Amazônia era uma invenção daquele momento – mas encontrava um lastro no neoliberalismo brasileiro. Libertar Lula era essencial para mudar isso, como de fato acabou se provando verdade, mas longe de qualquer idealismo, a situação, lá como aqui, demandava sua dose de pragmatismo.
O protagonismo, seja na visão de Chomsky em 2019 ou em 2022, depende dos movimentos, sua capacidade organizativa local, cujas lideranças funcionam, tanto mais, como fios condutores, ou “porta-vozes”. Parte do descaminho da esquerda brasileira se deve a isso, como ele avaliou: “Devo dizer que uma das falhas do PT, em meu ponto de vista, foi a falta de organização local efetiva“. E é justamente por isso que organizações como o MST e o MTST ganham destaque e são o motor da esperança aqui.
Impossível não reverenciar a figura de Chomsky, ainda que se possa divergir dele, nesse ou aquele ponto teórico, mas seu exemplo militante nos motiva e inspira. A sua perspectiva a respeito do Brasil é um ponto particular, e digno, desse nonagenário mestre que nunca se calou mesmo diante das difíceis lutas pelos palestinos ou contra a islamofobia, mesmo nos momentos mais delicados.
Sobre os autores
é publisher da Revista Jacobina, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP e advogado.