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Oolong e Goku na primeira série de Dragon Ball. (Reprodução)

O elo ancestral entre o Dragon Ball e o maoismo

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O criador da série Dragon Ball, o japonês Akira Toriyama, faleceu semana passada, rendendo homenagens no mundo inteiro. Uma delas foi do Ministério das Relações Exteriores da China. Entretanto, isso se deve a questões que vão muito além de política de boa vizinhança, mas de uma inspiração e raízes em comum entre a obra dele e o marxismo chinês.

A obra de Akira Toriyama revolucionou os quadrinhos, encontrou fãs entusiasmados no mundo inteiro e atravessou gerações. Não à toa, sua morte repentina na semana passada, uma vez que ele se encontrava ativo e produzindo, emocionou o mundo, despertando memórias afetivas e atestando a grandiosidade de suas criações — a maior delas, a série Dragon Ball, um fenômeno como mangá e depois como anime.

Em tempos de hostilidades globais gravíssimas, pareceu uma simpática política de boa vizinhança o Ministério de Relações Exteriores da China reverenciar Toriyama. Mas para além disso, é interessante notar como a obra dele tem, objetivamente, uma profunda ligação com a China: Dragon Ball é uma série inspirada em um dos maiores romances da literatura chinesa: a Jornada ao Oeste (Xī YóuJì 西遊記).

Não se trata de uma grande jornada qualquer. Jornada ao Oeste, publicada por volta de 1570,  é um dos chamados “romances clássicos da China” e inspirou ninguém menos do que Mao Zedong. A obra, uma narrativa fantástica baseada em um fato histórico ocorrido séculos antes, diz muito sobre a difusão do budismo no Extremo Oriente, e estabelece um elo profundo entre chineses, japoneses e coreanos — ainda ajudando a construir o marxismo na China.

Jornada ao Oeste, a obra primordial

Na obra original, atribuída a Wu Cheng’en, o monge Tang Sanzang parte para o Oeste em busca de relíquias perdidas do budismo. Junto dele, seguia Sun Wukong, o Rei Macaco, um ser com poderes especiais de transmutação, super-força e outros dons, que irá lhe proteger na acidentada viagem rumo à Ásia Central. Sun Wukong, por sinal, é escrito 孙悟空 em caracteres chineses, cuja leitura em japonês é, não por acaso, Son Goku.

Embora tenha sido publicado no século XVI, os fatos do livro se passam no século VII, durante a Dinastia Tang — especificamente sob o reinado do imperador Taizong –, essa ficção fantástica se refere a uma história real, na qual o monge se chamava Xuanzang — o que se insere no contexto da chegada do budismo à China e sua busca por afirmação e autonomia formal.

O budismo chega à China por volta do século II, pelo Oeste, especificamente a partir de um centro de difusão pela região da Gândara, cujo território hoje é parte do Paquistão no Afeganistão. Contudo, a enorme diferença da língua chinesa para a língua gândara, ela própria aparentada do sânscrito, fez com que os chineses recorressem a elementos de sua própria cultura e filosofia para traduzir os escritos budistas.

É esse budismo, que termina representado em caracteres chineses e chega, depois, à Coreia e ao Japão em suas variantes. O périplo de Xuanzang no século VII se explicava no sentido de estabelecer as bases próprias de um “budismo chinês”, embora o próprio budismo já consistia, naquele momento, em uma grande variedade de escolas e ramos no próprio subcontinente indiano e adjacências.

Ironicamente, a obra literária é produzida em outro contexto, onde o budismo já estabelecido na China e difundido pela Coreia, Japão e Vietnã, convive sincreticamente com o daoismo e formas de pensamento como o confucionismo e tantas outras escolas de pensamento chinesas — a necessidade de uma autonomização por meio da busca de raízes já não existia mais no século XVI.

Outra relação evidente de Dragon Ball com essa mistura de culturas é que o Rei Macaco, na trama de Wu Cheng’en, era referente em parte à deidade Hanaman da tradição védica — absorvida pelo budismo –, mas era apresentado como uma criatura nascida de um pedra mágica, que ganhou seus poderes ao aprender as práticas daoistas. Nada mais sincrético, portanto — com o agravante de que já havia inúmeras lendas com macacos antes da chegada do budismo no país, a começar pela própria astrologia chinesa.

O presidente Mao e o Rei Macaco

Pelo menos uma grande obra de Mao Zedong trata da Jornada ao Oeste: Sobre a contradição (1937), onde o líder revolucionário chinês pontua que a dialética, pelo menos como a imaginada por Hegel, não era estranha aos chineses — e, nesse contexto, ele cita as 72 metamorfoses de Sun Wukong/Son Goku como um dos exemplos da presença da noção da identidade de contrários na literatura chinesa.

Mao se refere à obra também em sua primeira entrevista, dada ao jornalista americano Edgar Snow, e publicado no livro A estrela vermelha brilha sobre a China, citando um fato normalmente ignorado: como o romance chinês era mal-visto e praticamente proibido, uma vez que os jovens estudantes, que ansiavam com os concursos públicos, deveriam se concentrar na memorização dos clássicos ortodoxos do confucionismo.

Nesse sentido, Mao relembrou a Snow que lia os romances: 

Enquanto ainda muito jovem, apesar da vigilância de meu velho professor, que odiava esses livros proibidos e os chamava de malignos. Costumava ler eles na escola, cobrindo com um Clássico quando o professor passava. Bem como a maioria dos meus colegas de escola. Sabíamos a maior parte das histórias de cor, discutíamos e as rediscutíamos diversas vezes. Conhecíamos mais delas do que os homens mais velhos do povoado, que também as apreciavam e costumavam compartilhar histórias conosco. Acredito que eu possa ter sido bastante influenciado por tais livros, lidos em uma idade tão impressionável.

A proibição não era aleatória. O romance chinês contava histórias de rebeldia e aventura, despertando o imaginário popular para muito além da lógica de manutenção do Império. Em um país com um histórico de revoltas como a China, essas tramas eram, ao mesmo tempo, tradicionais e subversivas — embora como percebeu Mao mais tarde, “havia algo de peculiar nessas histórias: a ausência de camponeses que lavravam a terra”.

“Para Mao, Bruce Lee era um verdadeiro herói, pois com suas performances inesquecíveis no cinema o povo chinês passou a ser representado como um sujeito capaz de lutar e resistir ao imperialismo.”

A juventude revolucionária chinesa do início do século XX, contudo, se dedicou a leitura dessas obras que se tornaram canônicas a partir de 1949, quando eles, finalmente, tomaram o poder — e junto disso, veio também a alfabetização das massas, tornando pela primeira vez na História, aqueles camponeses capazes de ler e escrever no seu próprio idioma.

A criação de Dragon Ball e a universalização de signo pop

Em 1983, quando estava terminando a série de Dr. Slump, Toriyama foi pressionado pelo seu editor, Kazuhiko Torishima, a criar uma série nova. Depois dos testes nos mangás de uma história só, Dragon Boy e As aventuras de Tongpoo, ele chegou à forma final que desembocou em Dragon Ball, cuja série durou de 1984 a 1995, ganhando já em 1986 sua primeira fase como anime.  

As referências de Toriyama, em vez de ser os Estados Unidos ou o Ocidente, foram para a China, e enquanto ele buscou na Jornada ao Oeste a inspiração para a narrativa, a estética da ação era inspirada nos filmes de kung-fu de Bruce Lee e Jackie Chan — responsáveis nos anos 1970 e 1980 em acabar com a farsa colonial do chinês como o “homem doente da Ásia”, uma pecha xenofóbica e racista que não deixava de afetar também os japoneses.

Aliás, para o presidente Mao, Bruce Lee era um verdadeiro herói, pois com suas performances inesquecíveis de artes marciais no cinema o povo chinês passou a ser representado como um sujeito capaz de lutar e resistir ao imperialismo. A imersão de Toriyama no mundo chinês, como uma matriz cultural comum ao Japão e ao Extremo Oriente, produziu um indiscutível ponto de encontro e convergência asiática.

“A Jornada ao Oeste, carrega várias camadas e sutilezas, mas cuja mensagem mais poderosa é um chamado à luta e à afirmação dos orientais e dos povos oprimidos.”

Ainda hoje na China, o Rei Macaco causa frisson e é uma figura que emerge continuamente. Seja na forma de uma animação recente, depois de tantas versões — inclusive a icônica série em live action para a televisão chinesa de 1986 ou mesmo como o álbum da banda punk chinesa Oh!Dirty Fingers, que tem o brasileiro Alê Amazônia, autor do livro Mil olhos, mil braços, na bateria.

América Latina, Ásia e a luta anti-imperialista na onda de Dragon Ball

Se o livro original de Jornada ao Oeste significou um ponto de convergência entre budismo e daoismo — e o pensamento chinês tradicional –, Dragon Ball serviu como um ponto focal entre China e Japão que se irradiou pelo mundo, como uma obra pop e universal, arrebatando, naturalmente o Brasil e a América Latina, como referência incontornável de uma época.

No Brasil, a série em mangá de Dragon Ball foi publicada pela editora Conrad, que também lançou mais tarde a versão chinesa em quadrinhos do texto clássico da Jornada ao Oeste — ambas pelas mãos do icônico editor Rogério de Campos. O anime, que passou na televisão aberta, deixou um imenso legado — principalmente entre a geração que cresceu nos anos 1990.

Parece curioso que os chilenos tenham usado Dragon Ball na iconografia dos protestos dos anos 2010, e que os dubladores locais do anime inclusive tenham emprestado suas vozes em prol das manifestações. Mas a aparente ingenuidade e simplicidade de Dragon Ball e sua matriz, a Jornada ao Oeste, carrega várias camadas e sutilezas, mas cuja mensagem mais poderosa é um chamado à luta e à afirmação dos orientais e dos povos oprimidos.

O imperialismo sempre demandou a demonização e desumanização dos oprimidos e colonizados, o que fez de Fu Manchu o protótipo de supervilão moderno: o colonizado sempre é apresentado, paradoxalmente, como débil e fraco, mas também pérfido e perigoso em uma narrativa pouco coerente. Portanto, giros estéticos como Dragon Ball podem parecer pueris, mas eles possuem um poder tremendo de mudar as situações através de um novo imaginário.

O racismo contra orientais, os “amarelos”, é uma das chagas de uma ordem imperial que ainda não acabou. Não é por acaso que os japoneses foram bombardeados com armas nucleares — ou mantidos em campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial nos Estados Unidos e no Brasil, enquanto foram perseguidos nos anos 1960 para não se aliarem com os Panteras Negras na Frente Unida contra o Racismo.

Em um mundo no qual a sinofobia grita, talvez a chave para, pelo menos, a questão do imperialismo na Ásia seja uma reconciliação entre chineses e japoneses – e o reencontro dos nipônicos com sua matriz asiática. Se hoje isso parece um sonho distante na política, a morte de Toriyama e os ecos do seu legado parecem oferecer um caminho possível para essa etapa da libertação internacional.

Sobre os autores

é publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP, advogado e diretor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia (IHUDD).

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Published in América do Sul, Análise, Ásia, Cultura, DESTAQUE, História and Livros

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