Nestes dias, a comovente imagem de uma mãe palestina lamentando a perda de seu bebê, vítima das ações do Estado de Israel, ganhou grande atenção nas redes sociais. Em meio à dor profunda, essa mãe entoava uma canção de luto dilacerante, enquanto abraçava e dava o último adeus à sua filha.
Mulheres palestinas têm, historicamente, recorrido à música como uma poderosa ferramenta de resistência, como lembra Leila Matar. De fato, os “Tarweed” são expressões musicais codificadas que surgiram durante o período do mandato britânico na Palestina (1923-1948). Criadas pelas mulheres palestinas, essas canções serviam como um meio de comunicação secreto para disseminar mensagens de desafio e resistência, demonstrando a adaptabilidade e a criatividade na luta contra a opressão colonial.
“A criptografia em tarweed envolve inverter as últimas letras das palavras, inserir repetidamente a letra L (“lam” em árabe) ou usar poesia, símbolo e analogia com significados incorporados. Este processo transformou a mensagem original num jargão que nem os ocupantes nem os seus tradutores conseguiram compreender. As mulheres caminhavam ao longo dos muros externos das prisões, entregando mensagens em serenatas que flutuavam pelas janelas gradeadas da prisão. Para os ocupantes, a visão de mulheres palestinianas a passear e a cantar canções folclóricas era inócua, mas revelou-se fundamental para as fugas.”, recorda Matar, em “Women-Led Resistance Movements in Palestine”, artigo publicado na revista Breaking the chains.
Neste mês março, em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, é crucial destacar a força dessas mulheres palestinas, cujas vidas têm sido moldadas por uma luta contínua por justiça e liberdade. Enfrentando as adversidades de um atroz e prolongado conflito, a ocupação, e restrições severas à sua liberdade de movimento, expressão e existência, as mulheres palestinas têm sido pilares de resistência e sobrevivência.
“As mulheres não apenas mantiveram as estruturas sociais e econômicas em meio à repressão e às dificuldades, mas também participaram ativamente de formas de resistência direta e indireta.”
Entretanto, o papel histórico das mulheres na resistência palestina não é apenas a luta pela sobrevivência em meio a um contexto de conflito longo, mas também a assertividade na preservação da identidade e cultura palestina. Ao longo das décadas, essas mulheres têm desempenhado papéis cruciais em diversos movimentos de resistência, desde a Grande Revolta Palestina de 1936-1939 até a Primeira Intifada.
O papel das mulheres na “Grande Revolta”
O envolvimento das mulheres na resistência palestina, especialmente evidente durante a Grande Revolta Palestina de 1936-1939, destaca um capítulo significativo na história da luta em Gaza e Cisjordânia contra o domínio e a ocupação estrangeira. A “Grande Revolta” foi um movimento contra a política britânica na Palestina, culpada de facilitar o aumento da imigração judaica para a região, exacerbando tensões entre comunidades judaicas e árabes e levando a uma resistência armada.
Durante este período turbulento, com muitos homens palestinos presos, exilados ou envolvidos em combates, as mulheres desempenharam funções indispensáveis na sustentação e na continuação da resistência. Essa participação desafiou as normas de gênero tradicionais e ampliou o escopo de seu envolvimento na esfera pública e política. As mulheres não apenas mantiveram as estruturas sociais e econômicas em meio à repressão e às dificuldades, mas também participaram ativamente de formas de resistência direta e indireta.
Além disso, a Nakba (“catástrofe”, em árabe) de 1948, uma época de imensa dor e deslocamento, viu as mulheres palestinas emergirem como guardiãs da cultura e da identidade palestina. Através da preservação e transmissão de tradições como música, poesia e culinária, elas combateram inúmeras tentativas de apagamento cultural. Essa resistência cultural foi um ato de desafio contra as forças de ocupação e um meio de manter viva a esperança de retorno.
“Em cenários marcados por conflitos e opressão, a capacidade reprodutiva se transforma em um poderoso instrumento de resistência.”
Esse período de deslocamento em massa e destruição de vilas e cidades palestinas em 1948, no contexto da criação do Estado de Israel, marcou o início de um longo conflito e da questão dos refugiados palestinos, que continua até hoje. Para o povo palestino, a Nakba não é apenas um acontecimento histórico, mas uma vivência contínua de expropriação, deslocamento e luta pela autodeterminação. Desde 1948, o esforço de preservação cultural das mulheres tem sido um ato de resistência importantíssimo contra as tentativas de apagamento de sua identidade e existência pelo Estado de Israel. O “tarweed”, além de ser um meio de comunicação, tornou-se então um símbolo da engenhosidade feminina na resistência palestina.
O lado feminino na Intifada
Durante a Primeira Intifada em 1987, as mulheres palestinas também desempenharam papéis fundamentais, desde a organização de manifestações até a liderança de comitês de resistência disfarçados de grupos domésticos. Suas capacidades de mobilizar e unificar diversas facções palestinas sublinhou a importância da liderança na luta contra a ocupação israelense. As mulheres palestinas não apenas participaram, mas também lideraram esforços significativos, formando a espinha dorsal do levante, assumindo funções de coordenação em um momento em que muitos homens foram presos ou mortos, mostrando capacidades excepcionais em tempos de crise.
Também é importante destacar que, na Primeira Intifada, mulheres de diferentes contextos se uniram, formando comitês disfarçados como grupos domésticos para burlar a proibição de “afiliação política”. Essa estratégia permitiu que elas organizassem e planejassem a resistência de maneira encoberta, utilizando o espaço doméstico como um verdadeiro “front de luta”. O engajamento ativo das mulheres na Primeira Intifada capturou a atenção global e desempenhou um papel fundamental na pressão política sobre Israel, forçando até mesmo aliados históricos como os Estados Unidos a reconsiderar seu apoio. Isso sublinha o impacto internacional que a resistência liderada por mulheres conseguiu alcançar.
Rhoda Ann Kanaaneh, em sua obra Birthing the Nation: Strategies of Palestinian Women in Israel, destaca que até a reprodução das mulheres palestinas transcende a mera biologia, carregando consigo profundas implicações políticas e nacionais. Em cenários marcados por conflitos e opressão, a capacidade reprodutiva se transforma em um poderoso instrumento de resistência. Especificamente em Israel, a elevada taxa de fertilidade das mulheres palestinas sempre foi frequentemente encarada com desconfiança pelo Estado israelense, que sempre viu nisso uma ameaça potencial ao “caráter judaico” do território. Esse contexto colocou as mulheres palestinas numa situação de resistência a priori, visto que suas decisões reprodutivas acabaram se tornando alvo de intensa politização.
Resistência não violenta
Outra estratégia palestina importante está no conceito de “ṣumūd” (firmeza), que reflete a prática política das mulheres palestinas de “persistir em face da adversidade”. Desde a Nakba, o “ṣumūd” tem sido uma tática para sobreviver à colonização e ocupação, abrangendo desde atos cotidianos de resistência até a criação e manutenção da vida sob condições opressivas. Este compromisso com a sobrevivência e a solidariedade tem sido um pilar da resistência palestina.
Sophie Richter-Devroe, em Palestinian Women’s Everyday Resistance: Between Normality and Normalisation, introduz a ideia de “ṣumūd” (firmeza) como uma forma de “infrapolítica” ou resistência cotidiana não violenta, que se manifesta na insistência obstinada em continuar vivendo e aproveitando cada oportunidade de desfrutar a vida, apesar de todas as adversidades. Ṣumūd representa uma resistência cotidiana mais encoberta, frequentemente individual e não organizada, em contraste com formas de resistência não violentas mais públicas e heróicas. Este conceito abrange uma ampla variedade de atos, desde estratégias de sobrevivência material e resistência cultural até resistência social, sendo particularmente associado às lutas diárias das mulheres para preservar a vida familiar e comunitária.
Richter-Devroe cita, por exemplo, uma mãe de cinco filhos que trabalhava em uma ONG em Ramallah para quem a perspectiva de “ṣumūd” era a importância de manter-se unida e forte diante da tristeza circundante. Isso pontua como a habilidade das mulheres palestinas em liderar e organizar a resistência vem de sua capacidade de operar nas “sombras”, utilizando a subversão para contornar as proibições de ativismo político. Essa liderança “invisível” foi essencial na coordenação de esforços contra a ocupação, mostrando que a resistência não tem apenas uma face, mas muitas.
“A tristeza e o desespero que cercam as mulheres palestinas em meio às atrocidades atuais exigem de nós não apenas empatia, mas uma solidariedade ativa e engajada.”
Através de atos de resistência cultural, as mulheres palestinas continuam a desafiar a ocupação e a promover a identidade palestina. Seja através da música, da culinária, ou da dança folclórica, elas afirmam a continuidade e a riqueza da herança palestina, resistindo a tentativas de assimilação forçada. Assim, mulheres palestinas têm enfrentado e desafiado narrativas ocidentais dominantes que frequentemente as marginalizam. Ao liderar movimentos de resistência, elas sempre refutaram a ideia de serem vítimas passivas dentro de uma sociedade vista erroneamente como unicamente patriarcal, comprovada pela participação ativa nos movimentos de resistência. Entretanto, neste momento, reconhecer isso já não basta.
Diante do atual contexto de massacre, devastação e genocídio, torna-se imperativo nosso papel em demonstrar solidariedade com essas mulheres. Encontramo-nos em um momento crucial em que a apatia ou a passividade não são opções válidas. É nossa responsabilidade amplificar suas vozes, lutas e resistências. Nossa solidariedade deve se traduzir em ações concretas que desafiem as narrativas que buscam minimizar ou ignorar seu sofrimento e sua luta. Isso inclui pressionar governos e instituições internacionais a reconhecer e agir contra as injustiças enfrentadas pelas mulheres palestinas e sua comunidade.
A tristeza e o desespero que cercam as mulheres palestinas em meio às atrocidades atuais exigem de nós não apenas empatia, mas uma solidariedade ativa e engajada. Somos nós que devemos nos posicionar firmemente contra a indiferença, contribuindo para uma mudança significativa que respeite a dignidade, os direitos e a liberdade do povo palestino, pare que este genocídio seja interrompido imediatamente.
Sobre os autores
é jornalista, doutora em literatura pós-colonial comparada e estudos ibéricos e mora na Itália.